Maria Lucia Silva Rosas Ribeiro - nome pomposo não acham? Pois é o nome da minha amiga de longas datas e aventuras, paraibana da gema, como eu exilada no Recife há décadas. Curiosamente somente fomos nos conhecer aqui na Mauricéia. Morávamos perto, nos freqüentávamos, nossos filhos ainda pequenos e amigos. O mundo rodou, a fila andou e nossos caminhos foram em direção oposta. Até que, não mais que de repente "Lucia Cravo" me reaparece e como podem verificar em muito bom estilo. Não sei se a chamo de Lucia Rosas ou Lucia Cravo, como eu a chamava, até porque ambas são flores, que nem ela. Seja bem-vinda, Lucinha. HC
Maria Lucia Silva Rosas RibeiroTudo ocorreu nos idos de 80. Era Carnaval. Nessa época todos os carnavalescos que nem eu, “enlouqueciam” ao ouvir os primeiros acordes de Vassourinhas. Fantasias eram encomendadas, cantis comprados, planos traçados. A questão maior era brincar “de leve” ou “pra valer”. Isto, no bom português da época, significava beber, namorar, dançar e realizar outras peripécias, com pouca ou muita intensidade. Na prática, nunca, nada era de leve. Donde sempre se concluía que não valia a pena planejar. Fosse o que Deus quisesse. Como se o nosso Pai Celestial tivesse algo a ver com aquela coisa pecaminosa. Mas, era assim que os incautos pecadores pensavam.
Cecília não era diferente nesses aspectos. Mas, em outros, seria quase que uma estranha no ninho. Era inexperiente e ingênua. De boa fé, melhor dizendo. Separada do marido há muito pouco tempo, estava querendo refazer toda a sua vida, principalmente a afetiva. E, entre uma prévia carnavalesca e outra, conheceu Arnaldo. Rapaz de aparência boa, jeitoso com as mulheres, bom de “papo”. Vinha bem a calhar. Principalmente pela carência acumulada da moça. Ela, bonita, inteligente e muito agradável, despertou grande interesse no jovem que, por sua vez, também estava solteiro. Aí, como se diz, juntou-se a fome com a vontade de comer. Literalmente.
Acontece que, naquele tempo, não havia essa prática de hoje: “ficar”. Até porque moça que “ficava” no primeiro encontro era “mulher fácil”. Ficava mesmo era “falada”, comentada para todo o sempre. Sendo assim, Cecília marcou encontro, para o sábado de Carnaval, à noite, no Clube Atlântico de Olinda. “Point” do que havia de melhor em matéria de intelectuais, artistas, profissionais liberais e assemelhados.
A partir daí, todos os seus pensamentos, palavras e obras passaram a existir em função daquele dia. Todos os detalhes eram planejados. Na vestimenta, desde as externas às mais íntimas, tudo teria que combinar em perfeita harmonia, de forma a impressionar e, claro, incentivar os instintos masculinos do desejado mancebo. O batom, que cor teria? A sombra, mais ou menos carregada? Com ou sem carmim? E o perfume, suave ou forte? Tudo teria que ser na medida certa para não dar impressão equivocada. O importante era estar bonita, muito bela. Charmosa como uma Rainha.
Finalmente chega o dia tão sonhado. Combinaram, ela, Anacléia e Risolene. Se encontrariam à tarde para assistir ao desfile das Agremiações, ir à concentração do “EU ACHO É POUCO”, dar uma esticada até as “CONCUBINAS DO SULTÃO”.Tempo mais do que suficiente para chegar ao baile do Atlântico. Em meio a tudo isso, encontrariam outros amigos e fariam um lanche para renovar as energias. Assim foi feito.
Cecília tinha uma preocupação saudável e prudente, que valia para ela e para os amigos, a de não beber de estômago vazio. Assim evitaria o inconveniente efeito do álcool, quando ingerido sem antes dar uma “forrada”. Pensando nisso chamou as “meninas” para uma rápida refeição, em uma das muitas barracas instaladas na Praça do Carmo.
Como estavam, as três, tomando uma cervejinha esperta, optaram por comer um espetinho de churrasco. Gostoso, sem dúvida, embora de absoluta suspeita quanto à sua origem e higiene. Mas. Como dizíamos todos nós: “ triste do bicho que outro engole” E, foi com base nessa sábia, mas irresponsável teoria que começaram a degustar o apetitoso”tira-gosto”quando, de repente, ouviu-se um terrível grito, misto de dor e indignação. Na ânsia de saborear o tal churrasquinho, Cecília quebrou o dente. E, logo o frontal, aquele que formata a expressão do sorriso, do rosto. Que define a fachada da criatura. E agora, como iria ao encontro do tão esperado príncipe?
Horrorizadas e sensibilizadas com a desgraça da amiga, Anacléia e Risolene tiveram, imediatamente, a idéia de procurar um dentista. Mas, àquela hora, sábado de carnaval, onde achariam uma alma caridosa e, sobretudo sóbria, que tirasse Cecília daquele “sufoco”? Movidas pela solidariedade, mas, sobretudo pelo já razoável grau de teor etílico, resolveram sair à procura de um consultório odontológico. Seguindo a intuição feminina, subindo e descendo ladeiras, ouvindo indicações de moradores da cidade baixa, empurradas por foliões inspirados por frevo, aguardente e cerveja, chegaram à casa de Dona Odete, numa das ruas de Bonsucesso.
Àquela altura, todo o visual de Cecília, tão meticulosamente produzido, já tinha ido suor abaixo. Mas, não fosse por isso, o importante era consertar o dente. Portas fechadas resolveram arriscar. Bateram palmas, chamaram, na esperança que Dona Odete as atendesse. Quando, desesperadas, já pensavam em desistir a porta se abriu. Eis que aparece uma figura pra lá de exótica. Aproximadamente 1.70m de estatura, com peso estimado em 140kg. Seria uma pessoa como tantas outras que circulam por esse mundo de Deus, não fosse o estranho visual: vestido longo, confeccionado em tecido dourado, todo bordado em paetês, minúsculas pedrinhas vermelhas, verdes e azuis. A maquiagem puxa vida, deixou a pobre da Cecília completamente humilhada. Perfeita, com mil tonalidades de brilho. Sobrancelhas bem definidas e pintadas com cor preta carregada. Complementadas com longos, enormes cílios postiços. Sem esperar qualquer pronunciamento das visitantes – sequer desejou-lhes Boa Noite – foi logo dizendo:
- “meu expediente de hoje acabou. Estou de saída para o baile”.
Levou um copo americano à boca, bebendo com imenso prazer o líquido nele contido, comentando ser “de primeira” o "Pau do Índio" preparado pelo marido. Depois de tudo que haviam enfrentado e com a perspectiva de ver todo o sonho da amiga descer pelo ralo, “as meninas” sentaram no batente da porta e começaram a chorar. Ao mesmo tempo em que contavam a Dona Odete a terrível tragédia.
Mas, Deus é Pai, diziam elas depois. A profissional do subúrbio compungida, visivelmente sensibilizada com tudo que ouviu, deu mais um gole, olhou longamente para os olhos lacrimejantes de Cecília, para o dente que segurava entre o polegar e o indicador, dizendo: ”sente ali naquela cadeira, vou ver o que posso fazer por você”. Apanhou, na gaveta de um pequeno móvel localizado no corredor, próximo à cozinha, um tubinho minúsculo. Uma gotícula do milagroso líquido gelatinoso resolveu, como num passe de mágica, o problema.
Ainda disse: ”minha filha, você pode comer todos os churrasquinhos que quiser. Esse dente não cai mais. Só se for outro”.
Feito o pagamento – que em moeda de hoje equivaleria a aproximadamente, dois reais – e devidamente recompostas, correram para o Clube Atlântico. A tempo de assistir a entrada das principais personalidades e autoridades convidadas. E, como não poderia deixar de ser, a chegada de Arnaldo fantasiado de Pierrot Apaixonado.
Bem, o final é de fácil e óbvia conclusão. O que pode contou às amigas. O censurado ficou por conta da imaginação.
E Viva a grande Dona Odete que realizou obra tão competente. O dentista de Cecília que o diga. Na Quinta-Feira seguinte teve um enorme trabalho para desfazer o improviso. Nem a broca resolveu. Foi obrigado a lançar mão de outros instrumentos.
Esta crônica é para as minhas velhas amigas Vilna Serpa, Graça Barreto e Cléa Wanderley, também, grandes companheiras de antigos carnavais. Aqui e alhures.
Recife - Final do Século XX