quinta-feira, fevereiro 28, 2008

RECUERDO 30 - O COVEIRO ADVOGADO


Hugo Caldas

Muito bem pessoal, voltei. Meio atrasado mas seguro, como sempre, acho eu. É que deu um belíssimo de um creu, espécie de catapora braba na minha computadora. Tive que comprar uma máquina nova em suaves dez prestações. Está aqui na minha frente pretinha e linda. Sem ofensas, por favor, xiítas. Quem esperava se ver livre de mim, enganou-se. Afinal tenho que prestar contas aos meus três ou quatro leitores que seguramente sei que os tenho. O Anco Márcio, uma namorada do tempo do ginásio no Liceu, Elpidio Navarro e eu mesmo. Após o intróito justificante passsemos ao que realmente importa.

Este país é realmente a terra da galhofa, graças à Deus. Muitas loucuras acontecem, dão mil e uma voltas e terminam por dar certo no final.

Vocês sabiam por acaso que o Zé Bonitinho é nas horas vagas um renomado advogado chamado Jorge Lorêdo, especialista em previdência social? Digam aí, em sã consciência, se teriam coragem de entregar algum pleito ou ação judicial, uma pendenga qualquer, ao distinto causídico? No meio da audiência eis que ele toma seus ares altivos e soberbos, saca de um enorme pente, cofía as sobrancelhas e joga o bordão conhecido: "Câmaras Close!" Àquela velhota surda da Praça da Alegria, o Ronnie Rios, já falecido, era um renomado médico veterinário de grande prestígio em São Paulo. Sabia que o Renato Aragão, por exemplo, além de formado em direito foi também oficial do exército, segundo tenente do CPOR? Dá pra acreditar?

Todo esse papo aí em cima é para justificar o fato que ora relato.

Na década de 70, já aposentado e morando no Recife, meu pai, sabe-se lá por qual razão, comprou um jazigo em um simpático cemitério que estava para ser inaugurado. Durante anos ele falava sobre o belíssimo negócio que fizera, ao mesmo tempo em que nos exibia fotos e folders persistindo no própósito de ser sepultado no novo cemitério quando sua hora chegasse. A gente, claro, sempre fazendo ouvidos de mercador, sem querer entrar em detalhes, até porque ele tinha uma saúde muito boa.

Eis senão quando, por obra e graça das reviravoltas que este mundo de meu Deus dá, meu pai adoece e termina falecendo em 21 dias. Arrasado, praticamente devastado, você vai encontrar forças não sabe onde, para tomar as medidas necessárias. Uma das primeiras tarefas seria, naturalmente, providenciar o sepultamento no Cemtitério Parque das Flores onde ele havia comprado o tal jazigo.

Para aumentar a nossa aflição, os anos haviam passado e graças como sempre, ao descaso das autoridades e a irresponsabilidade de muitos, o cemitério ainda estava por inaugurar. Teve o meu pai o supremo azar de falecer 10 dias antes que o governador ou o prefeito arrumassem um tempinho extra para se deslocarem até lá a fim de cortar ridículas fitinhas, arengar um improviso qualquer, como soem acontecer em qualquer inauguração "neste país."

Meu irmão Guilherme, amigo da esposa do prefeito de então, tentou por todos os meios, contando com a sua ajuda, efetuar o enterro mas não conseguiu. A lei não permitia e quando algum chefete se dá a importância que não tem, aí é que está o busílis, o xis da questão. O fato é que somente poderíamos fazer o traslado para o novo cemitério após a devida inauguração. Quem manda morrer antes do tempo? Agora só após dois anos do falecimento.

Esperei pacientemente os dois anos de carência e finalmente um belo dia me dispus a ir ao antigo cemitério de Santo Amaro para tratar da transferência dos restos do meu pai. Fui só. Não chamei ninguém para este segundo enterro. Achei o sofrimento desnecessário.

As coisas começaram a tomar ares surrealistas quando o coveiro, muito cheio de prosa alegou, "na quinta-feira não posso porque vou fazer provas na universidade." Ao notar o meu espanto, disse-me ele com a maior sinceridade deste mundo:

- "Professor, há dois anos eu não tinha terminado o primário. Tentei o Supletivo, Artigo 99 e por desencargo de consciência também tentei o vestibular da Católica. Hoje estou terminando o segundo semestre do primeiro ano. Em todas as provas sempre me valí de um bozó para acertar as múltiplas escolhas."

Coisas de Pindorama.

Pergunto novamente: Teriam vocês, meus caros, a devida isenção de ânimos para também confiar nos préstimos advocatícios do personagem em questão? E se, ao invés de advogado ele fosse médico? Marcariam uma consulta, hein?

Uma coisa vem me ruminando o miolo. O título desse Recuerdo deveria ser: "O Coveiro Advogado ou O Advogado Coveiro"?

Cartas à Redação

hucaldas@gmail.com

SÓ NA PARAÍBA!!!

Do amigo Luiz Gonzaga Lopes, Lula, (esse eu asseguro é boa gente) recebo o texto abaixo. Divirtam-se. H.C.

Oi, Hugão, esta matéria me foi enviada por um primo meu, de Campina Grande. É um fato tão ridicularmente cômico, que, talvez interesse ser reproduzido no Blog do Hugão.
Abraços. Lula.


Bessânger Abrantes

Prefeito faz acordo com a justiça para receber o próprio salário!!

No sertão da Paraíba, em várias cidades da região de Sousa é comum nas conversas de esquina atribuir todo episódio bizarro, pitoresco ao município de Lastro. Entretanto um fato envolvendo o prefeito lastrense, José Vivaldo Diniz, pareceu cômico, mas se tornou sério verdadeiro.

Eis os fatos:

Atualmente José Vivaldo Diniz é prefeito do Lastro, porém no último mandato exercia o cargo de vice-prefeito do médico Erasmo Quintino de Abrantes Filho. Passados alguns anos da administração Erasmo, Vivaldo rompeu e depois de algum tempo, o prefeito deixou de efetuar o pagamento do vice-prefeito.

Sem receber seus vencimentos, Vivaldo Diniz ingressou com uma ação na justiça do trabalho para cobrar o dinheiro devido pela prefeitura. Com o passar do tempo, algumas audiências foram realizadas e o mesmo tempo reservou ao eleitor escolher o ex-vice como prefeito da cidade.

Em 1º de janeiro de 2005, José Vivaldo assumiu o Poder Executivo lastrense e, assumia consigo a dívida dos seus salários deixada pelo ex-prefeito Erasmo Abrantes Filho. Passados dois anos e dois meses de sua administração, o prefeito é convocado para uma audiência final acerca do caso.

Numa das salas da Vara do Trabalho da cidade de Sousa, deveriam sentar-se reclamante e reclamado, contudo uma só pessoa representava as duas partes: advinha quem? Resposta: José Vivaldo Diniz.

- A magistrada que presidiu a audiência quando pediu a presença do reclamante, ficou surpresa ao solicitar de um oficial de justiça que trouxesse a parte reclamada. Vivaldo diante da juíza, disse:

- Doutora, eu sou também o reclamado.

Com ar de riso, a ilustre magistrada deu seqüência ao feito jurídico. E falou:

- Então vamos começar a encontrar uma solução sobre o valor da causa que era de R$ 17.000,00.

Para surpresa de todos os presentes, o reclamado (Vivaldo prefeito) disparou:

- Doutora, a prefeitura não tem condições de pagar este valor.

A frase arrancou risos das partes. E a meritíssima perguntou:

- Mas o reclamante (Vivaldo ex vice-prefeito) quer receber.

E o reclamado (Vivaldo prefeito) voltou a falar:

- Eu proponho ao reclamante (Vivaldo ex-vice-prefeito) um acordo.

Sem ter como perguntar a parte reclamante se aceitaria ou não o acordo, a juíza trabalhista se viu diante de uma situação de ela ter que aceitar a proposta de acordo, e, qual foi, para mais um momento de surpresa e risos? Vivaldo disse que só poderia pagar seus salários de forma parcelada e em dez prestações.

Final da estória? Não! A magistrada fez um último pedido ao reclamado (Vivaldo prefeito) para os últimos risos da audiência.

- Senhor prefeito, espero que como gestor não atrase nenhuma das parcelas acordadas nesta instância de justiça trabalhista ao reclamante (Vivaldo ex-vice-prefeito).

terça-feira, fevereiro 26, 2008

NO MUNDO DA FICÇÃO


Elpídio Navarro

Um historiador francês levanta uma hipótese para a origem do teatro: entre os povos primitivos, a morte era um fato um tanto fantástico que mexia com a compreensão do homem carente de uma explicação.

Imaginou o historiador, que um vivente da época, mais perspicaz e criador, reuniu a tribo e declarou com toda a autoridade: recebi uma mensagem do "deus da morte" encarregando-me de explicar os mistérios da vida após a morte, para onde vamos e o que seremos. Por isso ele me nomeou seu representante aqui na terra para vos preparar para a grande viagem. E o homem caiu na conversa dele.

Assim surgia o primeiro sacerdote, ou seja, o primeiro ator de uma tragédia improvisada. Respeitado, obedecido e acreditado tanto, que durante muito tempo foi temido. Assim nasceu o teatro: a arte de inventar histórias que não aconteceram, pelo menos como elas são contadas.

Como não acredito que após a morte exista uma outra dimensão, o andar de cima ou de baixo, uma outra vida espiritual, começo a pensar em inventar um outro mundo para onde desejo partir após o ultimo sopro: o mundo da ficção. Começo a acreditar que esse possa existir.

Lá, encontraria Brecht rindo do papo inteligente entre Vinícius, Nelson Rodrigues e Otto Lara Resende. Mas passarei ao largo para não incomodar. Mais adiante estão dois senhores idosos conversando em voz baixa uma conversa em inglês e espanhol. Precisei me aproximar mais para perceber Shakespeare e Cervantes se entendendo e Lorca desfrutando da discussão. Continuarei a minha busca e muitos outros habitantes daquele mundo vão surgir: Augusto dos Anjos sozinho, num canto, contemplativo. Camões declamando e ajeitando a venda do olho direito e, um pouquinho adiante, Bocage contando anedota de brasileiro. Mais ao lado uma discussão intelectual entre Zé Américo e Zé Lins atentamente escutada por Zé de Lima Penante, sobre a transposição das águas do Rio São Francisco e uma maior produção de cana de açúcar para a perpetuação do combustível brasileiro: o álcool. Certamente pensarei numa boa cachaça. Seguirei meu caminho procurando mais gente e, de repente, a emoção aflora: lá está a turma! Numa mesa formada por Paulo Pontes, Virgínius da Gama e Melo, Raimundo Nonato e Pedro Santos, estão fazendo uma homenagem e dando boas vindas a Altimar Pimentel. Na primeira fila da platéia diviso Cilaio Ribeiro, Eugênio Carvalho, Augusto e Luzia Simões, Nautília Mendonça, Arlindo Delgado, Zé Porto e Zé Souto, Marcus Siqueira, Orley Mesquita e Elcir Dias, Lucy Camêlo, Edinaldo do Egípto e Mirócene Amorim e num canto assim um tanto tímido o recém-chegado João Balula, mais adiante Marcos Ramalho, Coqueijo e esbanjando beleza e simpatia Márcia Guedes Pereira. E nos camarotes especiais Walter Oliveira, Clênio Vanderley, Joel Pontes, Alfredo Oliveira, Elpídio Câmara, Luiz Mendonça, Luiz Marinho, Hermilo Borba Filho e outros. Irei me aproximar e serei barrado:

- Não pode. Aqui só fica quem vive na memória coletiva. Vá criar, criar muito mais para ter esse direito. No mundo da ficção só fica quem criou para a eternidade. Também não adianta alegar que criou este mundo porque ele sempre existiu. Alguém sempre o recria. Volte quando estiver pronto...

Ao mundo que recriei não sei se vou chegar. Mas vou tentar.

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terça-feira, fevereiro 19, 2008

SAUDADE e AUSÊNCIA x TEMPO e DISTÂNCIA


Katia Dias

O relógio já marcava dezenove horas, e lá estava eu sorvendo suco e devorando enroladinhos na lanchonete do aeroporto. Novamente consultei o relógio, fiz meus cálculos, vi que estavam perfeitos. Dispunha de alguns momentos para uma passadinha na toalete, uma escovadinha nos dentes e um retoque na maquiagem.
Finalmente chegara o horário confirmado dos vôos.

Enquanto dava mais uma olhada na tela da sala dois de desembarque, pensava nos efeitos que a saudade e a ausência das pessoas queridas provocam em nossas vidas. Pensava como a saudade pode ser doída e como a expectativa da volta pode iluminar nossas almas. Em situações dessa natureza, o calendário é um medidor mal aferido, pois cada dia de ausência parece corresponder a dois ou três de espera. E se há “algo” interessante, então... o tempo desaba. Quase chego a pegar o telefone para ligar, mas meus queridos amigos não estão aqui.

Era de se aceitar, em tempos de apagão aéreo, ser natural o atraso. Mas o vôo já está com mais de uma hora além do previsto e o pouso nem ao menos foi anunciado. Entre apertados abraços e carrinhos sendo empurrados, algumas pessoas se interpõem entre mim e a tela. Estica daqui, entorta dali, finalmente meus olhos conseguem avistar o que ansiosamente procuravam. Entretanto, constato, desolada, nada de confirmação do pouso. Então continuo meus devaneios.

Penso em como é curiosa a medição das distâncias. Embora meus amigos estivessem há algum tempo do outro lado do mundo, muitas vezes senti-os perto. No caso de minha amiga, é claro, sua presença é mais marcante, pois mesmo considerando a grande distância, controla tudo: “você viu como ficará a festa das crianças?”; “e o amigo secreto, está tudo certo?”; “compraram tudo o que precisava?”; “e a Maria, está melhor?”; “têm cuidado bem dela?”.

Nessa hora, quem me olhava imaginava que eu era louca, pois sorria sozinha. De fato, é muito engraçado como até de longe pessoas queridas acabam por encher nossas vidas. Nem que seja de atividades, pensei, sorrindo novamente. Finalmente, após duas horas de atraso, o avião pousou.

Agora o sol ilumina minha alma ansiosa de amiga que espera. A distância, mesmo que relativa, acabou. Finalmente vamos conversar, contar as novidades, marcar eventos, atividades, juntas estaremos novamente. Falta pouco para nos abraçar, só a fila da Receita Federal.

Enquanto isso, meu pensamento voa. Admiro-me de como os sentimentos aumentam ou diminuem as distâncias. Lembrei-me do meu amigo do Recife, que, embora afastado a tantos e tantos quilômetros, está sempre tão perto, tão assíduo com suas adoráveis surpresas, periodicamente enviando-me livros com doces cartas e dedicatórias, sempre ressaltando o sentimento nobre da amizade. Sorri novamente.

Como podem o espaço e o tempo ser tão relativos? Tão longe e tão perto, em contraposição ao ditado "tão perto, porém tão distante", o que reforça a relatividade da distância e do tempo.

Enquanto eu sonhava acordada, pensando em meus amigos e na relatividade do tempo e da distância, eis que finalmente explode a festa em meu coração: abrem-se as portas do desembarque e olhos excitados procuram um rosto querido após tanto tempo e tanta distância. Finalmente nos encontramos. Agora somente abraços, sorrisos, lágrimas de felicidade. A grande amiga está de volta. Mais uma vez lembrei-me de meu amigo do Recife, e com toda a emoção acumulada pensei: só falta eliminar a distância. Vou cuidar disso. Farei uma visita a ele...

Recebi do amigo Luiz Gonzaga Lopes, escritor e poeta dos melhores o bilhete abaixo. Será preciso acrescentar mais alguma coisa? Lula sabe das coisas.

Oi, Hugão,
Num vôo de Paris a Lisboa, Sílvia e eu conhecemos no avião uma moça de São Paulo, muito simpática, muito interessante. Durante todo o tempo conversamos muito sobre diversos assuntos, especialmente Literatura. Ela gosta de escrever, enviou-me um conto que achei bastante razoável. Lembrei-me que poderia ser matéria para o já internacional Blog do Hugão. Pelo sim e pelo não, estou fazendo-o chegar a você, com a melhor de minhas boas intenções. Abraços de sincera amizade.
Lula.

sábado, fevereiro 16, 2008

Recuerdo 29 - O "RARA AVIS"


Hugo Caldas

Estava eu posto em sossego uma certa tarde de verão, lá pelos idos de 1988, terminando de preparar uma das minhas aulas, quando me chega o filho mais velho do primeiro casamento, querendo ter "uma conversa de homem para homem." Com 21 anos à época achava-se, dizia, cansado de tentar viver decentemente neste país.

- "Pode tirar o cavalinho da chuva pai, disse-me. Não vou fazer vestibular nenhum. Botar canudo debaixo do braço e sair por aí penando por um trabalho? Não é comigo." Sentia na carne o exemplo da irmã, formada há dois anos e até aquela data não havia conseguido um emprego decente. "Estou decidido a deixar o país. O que acha?"

Ora, o que eu achava! Um suor frio correu pelas minhas costas. Não achava nada. Sempre fui meio "pãe" querendo, que nem um enorme galináceo ter os meus rebentos eternamente protegidos embaixo da asa. Mas tratava-se da sua vida. Ele estava ali na minha frente pronto a seguir seu destino, decidir os seus caminhos. Eu não tinha o direito de interferir nos seus planos. Era já maior de idade, eu não poderia fazer nada em contrário à sua decisão. Mesmo se pudesse, não o faria. Jamais fui de proibir o que fosse. Havia ele feito um curso de mergulhador da marinha, era bom fotógrafo e bom músico. Essa a sua bagagem. Silencioso, voz presa na garganta aceitei o que me era jogado na cara.

Lembro até hoje o dia da partida do meu filho, em um pequeno barco chamado "Rara Avis" uma escuna, talvez um iate? Quatorze metros por quatro. Não, não era lá tão pequeno assim. Tenho e guardo com o maior carinho uma foto do iate indo embora. Fiquei, ali na praia, a olhar o barco se afastando, eu me fazendo mil perguntas, me imaginando no lugar dele. Muitas preocupações, até pedi que ele se amarrasse numas cordas que havia visto no convés, em caso de tempestade, e que usasse sempre um casaco de couro que lhe havia dado, para se abrigar.

O barco se afastava, e vinha-me à cabeça as coisas que nunca fiz e que nunca iria fazer, provavelmente por falta de coragem mesmo, neurose, provincianismo. Admiro muito o meu filho, por sua ousadia, pelo seu empreendimento. É, nunca tive a coragem dele. Quando cheguei ao Recife constatei à maneira de Cícero Dias, que o mundo começava aqui, e por esta razão ainda havia muito por descobrir. Fiquei. Hoje, passados os anos é frustrante constatar que estamos na reta final. E não fizemos absolutamente nada. Que chegamos ao fim da jornada. Agora, não há mais tempo. No final das contas, a gente se arrepende mesmo é do que deixou de fazer.

Para ele, tudo começou com um barco encalhado em Olinda. O comandante do "Rara Avis", um argentino, queria porque queria, desencalhar a embarcação e para isso contratou os serviços de um rebocador no cais do porto. Ao cabo de algumas horas de infrutíferas tentativas, terminaram por desistir ao constatarem que baldados seriam todos os seus esforços. Melhor seria mesmo seguir o conselho daquele rapazola de ar inteligente que havia assegurado que o barco se descolaria sozinho na maré alta do dia 15 de agosto. Estavam ainda em final de julho. Teriam que esperar.

Foi o tempo que o gringo aproveitou para voltar a Argentina na busca de mais numerário. As operações com o rebocador lhe haviam dado uma grande quebra de orçamento. Ele teria que levar o barco para a venda em Miami. Meu filho ficaria então encarregado de tomar conta da embarcação, espécie de imediato e procurar alguns amigos que se dispusessem a seguir viagem como tripulantes. E assim foi!

A vida nos prega muitas peças. Quando ele era pequeno, vivíamos mais perto mais intensamente, nos víamos praticamente a qualquer hora. Hoje, tinha um filho homem que não convivia comigo. E agora aquilo era uma despedida. O barco se distanciava. Silhueta da vela cortando o horizonte. Momento para sempre eternizado. Naquele instante eu sabia que o meu filho estava ali, dentro daquela casca de noz. Quando iria vê-lo novamente? O medo de algum acidente. O barco se afastando. As cordas do convés. O barco a se afastar mais ainda. Tudo zunia na minha cabeça. Desabei. Era demais. Fui embora, chorar em casa. Para o meu filho Trajano foi o início de uma vida inteiramente nova. O "Rara Avis" cumpriu o seu destino.

hucaldas@gmail.com

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

No meu tempo eu vi tudo que tinha direito



Anco Márcio de Miranda Tavares

Eu vi Aldrin, Collins e Armstrong pisarem na Lua numa noite em que tomamos um banho no tanque da construção do Viaduto Damásio Franca. Vi Joâo Pessoa sendo agitada pelas filmagens de Menino de Engenho, vi e participei das saudosas Semanas de Teatro do tempo do teatro sério.

Vi os quatro rapazes de Liverpool fazendo música como até hoje ninguém fez, vi as saias subirem sob as ordens de Mary Quant, vi as jovens tardes de domingo da Jovem Guarda sob o comando de Erasmo e Roberto, vi o mestre Chacrinha buzinando as massas, vi Gil e Caetano aparecendo para o Brasil.

Vi Brigitte Bardot quase nua sob a direção de Roger Vadin, vi o nascer e o morrer da nouvelle vague do cinema francês, vi Sophia Loren dançando feito uma cobra em "A Mulher do Rio," o primeiro filme censura 14 anos que assisti escondido no cinema Rex. E vi todos os cinemas.

Conheci Plaza, Municipal, Rex, Santo Antonio, Felipéia, Brasil, Astória, Bela Vista, São José, São Pedro e mais alguns outros. Vi o Ponto de Cem Réis sendo destruido para dar origem a esse monstrengo de hoje, vi a minha pátria sendo tomada pela extrema direita e sendo dominada pelas botas dos generais.

Vi Rita Cadillac balançando a grande bunda em preto e branco sob as ordens do Velho Guerreiro, Abelardo Barbosa, lembro do crime do playboy Ronaldo praticado contra Aida Curi, vi Antony Quinn como "O Corcunda de Notre Dame," vi Antony Perkins em "Psicose", vi, com medo, "O Exorcista"

Vi a praia de Tambaú sem tantos edifícios, alcancei o auge dos bares de meu tempo, Elite, Bambú, Hawai, Luzeiro, Casa dos Frios, vi a farsa que foi a morte de Tancredo, cuidadosamente preparada para acontecer no dia 21 de abril...

Meninos eu vi o Sputnik ser lançado no espaço.

Vi e conversei e bebi com o poetinha Vinicius e seu amigo Toquinho, na casa de Creuza Pires. Esses meus olhos e óculos que um dia vão se acabar, quando se fecharem e forem guardados no estojo, terão visto tanta coisa que eu certamente me irei desse mundo com um sorriso de felicidade nos lábios...

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

PIERRÔ APAIXONADO - Histórias de velhos carnavais


Elpidio Navarro

“Um pierrô apaixonado
que vivia só cantando...”

João que amava Rita, Rita que amava Pedro. Pedro que amava Rita e não amava Maria. Maria que era uma incógnita. Pedro que nunca descobriu se era amado por Maria. De Maria e João, nunca se soube de nada.

“Por causa de uma colombina
acabou chorando, acabou chorando...”

Pedro e Rita brincavam um eterno carnaval de amor. No bloco dos escondidos, não tinham hora nem dia. Acontecia. Sempre pulando um com o outro. E cantavam felicidade e desejos. Rita era uma linda mulher. Trocava de penteado toda vez e continuava linda, mesmo disfarçada. Uma fantasia de colombina. Pedro não! Fazia questão e não temia ser ele mesmo. Azar de Maria se ela soubesse!...

“A colombina entrou num butiquim
Bebeu, bebeu, saiu assim, assim...”

A vontade de Pedro de ficarem juntos para sempre contrariava Rita. Ele vivia sonhando em pedir a separação de Maria com Rita se livrando de João. Até estava disposto a se separar de Maria antes dela se separar de João. Mas Rita era taxativa: “Nunca faça isso... Com você solteiro não brinco mais no seu bloco. Acaba o carnaval para nós dois. Jamais brincarei carnaval com um homem solteiro!”

“Dizendo: pierrô cacete
Vai tomar sorvete com o arlequim...”

Mas a idéia de separação não saía do juízo de José. Então começou a imaginar: seria Maria um poço de inocência? Talvez não fosse, pensava, até o dia em que teve a certeza: flagrou ela com um José qualquer noutro bloco. Pensam que achou ruim? Que nada! Agora tinha uma perfeita razão para agir. Não resistiu ao entusiasmo e pediu a separação, esquecendo o aviso de Rita. “Não danço mais com você. Procure outra para a sua dança.” Foi o que ouviu quando contou o sucedido. “Eu avisei. Agora, adeus!"

“Um grande amor tem sempre um triste fim
Com o pierrô aconteceu assim...”

Pedro sentiu-se traído pela sua própria paixão. Que bobagem tinha feito! Bastava continuar com a farsa: fingia amar Maria e amava Rita que não amava João. Se Maria amava José, ela que pedisse a separação e ele não teria descumprido a promessa que fizera a Rita. Simples! Sua falta de amor por Maria fazia com que ele nem se sentisse traído!...

“Levando esse grande chute
Foi tomar vermute com amendoim”.

Ficou só e passou a freqüentar os bares buscando aventuras encontradas e nunca amadas. Não dançavam a mesma música, não pulavam no mesmo bloco do amor. De Rita soube de vários carnavais em outros blocos de casados de um carnaval só. Mas ela permanecia fiel a João: nada de homem solteiro. Maria mandou-se com José sem deixar saudades. Pedro pensou, pensou, pensou e feito um “cavaleiro de triste figura” imaginou ter encontrado a solução: casar de novo. Era isso! Botou o bloco na rua, vestiu a fantasia de Pierrô e Rita voltou de Colombina e com ela pulou. Pulou, mas só mais uma vez. Ele já não era o mesmo... Ela já não tinha a animação de antigamente. Já não pulavam com as mesmas energia e alegria. Já não conseguiam dançar todos os ritmos. Não deu mais. Foi o último carnaval que brincaram juntos. Hoje quando avista Rita lembra da fantasia guardada no armário do passado. Mas lembra, com muita saudade...

"Relembro com saudade o nosso amor
O nosso último beijo e último abraço"

Até mudou o verso de Mario Lago que dizia "sem saudade" porque cantou que a saudade existia. Não cantou que foi um fracasso porque foi bonito, foi bonito e foi bonito e plagiou outro poeta: "foi eterno enquanto durou".

"Um pierrô apaixonado... "

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domingo, fevereiro 10, 2008

ECOS DE MOMO


Hugo Caldas

Semana do carnaval para velhotes nada serelepes que nem eu, é para ficar em casa vendo televisão a cabo. Assistindo o que? Documentários, ora. Ah, vi uma porção deles, cada um mais interessante e instrutivo: Vi, por exemplo, um sobre os eunucos da Índia. Pode haver assunto mais excitante? Outro, sobre Oscar Niemeyer e seu endeusamento. Pois é, nem tudo são pérolas. Mais outro sobre sobrevivência na selva amazônica, que me será de grande ajuda se algum dia eu me encontrar perdido no emaranhado da floresta tropical. Cada um mais edificante. Só faltou mesmo um filme sobre "El Misterio Fenomenal Y Surrealista de la Mesita de Noche". Ah, desencavaram do fundo do baú, "Limite," filme de Mario Peixoto que vi mais uma vez e mais uma vez detestei.

No meio disso tudo pegava o controle e ia de vez em quando à Sapucaí. Se estivessem reprisando o carnaval de 1981 seria a mesmíssima coisa. Tudo igual, que nem caminhão carregado de japoneses. Samba enredo, então é aquela eterna ladainha repetitiva. Custa a crer que os cariocas realmente gostem daquilo. Tenho cá minhas dúvidas. Masoquismo puro.

O balanço do carnaval do Recife que foi divulgado na tarde da quarta-feira ingrata pela Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos é esclarecedor. No tocante à depredação de veículos coletivos, a totalização mostrou alguns itens que foram alvo de vandalismo. Alçapão de teto, borracha das janelas, chapa da carroceria externa, quebra-vento, etc. Por essa razão, houve aparentemente um aumento de veículos danificados em relação aos anos anteriores. No ano passado, foram 170 ônibus avariados, 1.210 itens depredados com prejuízo de 84 mil. Este ano, 295 ônibus foram depredados na Região Metropolitana. O número de peças avariadas foi de 965, perfazendo um prejuízo de mais de 70 mil, o que chega a equivaler a 44 mil passagens nos principais itinerários.

A Polícia Rodoviária Federal divulgou também o seu balanço. Da meia-noite da Sexta-Feira Gorda até a meia-noite da Quarta-Feira de Cinzas foram registradas oito mortes nas estradas, número inferior ao do mesmo período do ano passado, quando dez pessoas morreram. No entanto, o número de acidentes passou de 84 em 2007 para 91 neste ano. O número de feridos também cresceu: 84 feridos no ano passado e 90 neste carnaval. Ao todo, quinhentos policiais estavam de serviço durante a Operação Carnaval.

Para arrematar digamos que no último dia:

Tivemos duas mortes conhecidas. Nove veículos roubados. Quatorze lesões corporais. Onze assaltos. Cento e vinte e dois furtos. Um arrombamento. Quatro acidentes de automóveis. Um atropelamento. Uma tentativa de estupro. Uma invasão domiciliar. Queimaduras graves em sete pessoas. E de leve, 350 toneladas de lixo.

Pensam que a fuzarca acabou? Ledo engano. O fôlego dos foliões pernambucanos é que nem as sete vidas do gato. Não termina nunca. Neste domingo, dia 10 por exemplo, a Zona Sul do Recife ainda mostra tradicionais desfiles programados para elevar a moral de quem ainda não se conformou com o final da farra. Em Boa Viagem, vai sair entre outras, o Camburão da Alegria, troça formada por policiais que trabalharam durante o reinado de Momo, e que arrasta uma multidão de pelo menos 250 mil almas perdidas.

Aqui, mercê do carnaval "Multicultural," temos também Escolas de Samba. Se é que se pode chamar aquele constrangimento de escola de samba. Uma pobreza franciscana. Mas "Gigantes do Samba" foi a campeã este ano. Dava pena ver as alegorias, passistas, porta-estandarte, e até uma rainha de bateria gordinha que só ela mesma.

E por fim, mas não menos importante:

Trinta e uma mulheres serão devidamente excomungadas pelo Arcebispo Dom José Sobrinho por haverem usado a Pílula do Dia Seguinte.

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sexta-feira, fevereiro 08, 2008

O DIA EM QUE EU CONHECI O "LÁPIS-TINTA"


Breno Grisi

Bertino, Everardo e eu caminhávamos rapidamente pela Av. João Machado, em direção à escola de D. Tércia. Era dia de prova e já estávamos atrasados. Eu segurava uma folha de papel-pautado, enrolado e dentro dele levava uma caneta-tinteiro Oxford (esta funcionava bem, dia-sim, oito-não). Com os passos apressados e a mão que conduzia o papel-pautado enrolado, indo para frente e para trás em movimentos rápidos de quem caminha apressado, vi minha caneta voando à minha frente ... e cair de ponta na calçada. Nem a tampa conseguiu evitar que a pena se “escarrapichasse,” tamanho foi o impacto. E ao tentar juntar as partes escarrapichadas da pena, uma delas "torou". Acho que fiquei amarelo de desespero, abafando o verde de raiva!

Estávamos em frente à Maternidade Cândida Vargas, longe ainda de chegar na Rua das Trincheiras. Foi aí que meus amigos Bertino e Everardo me socorreram, quando o primeiro disse: vamos lá em casa buscar um "lápis-tinta" que papai (Dr. Otacílio Nóbrega de Queiroz) trouxe da viagem (se não me engano, de Recife). Eles moravam pertinho dali, na Av. Maximiano Figueiredo. Fui assim salvo por essa maravilha da tecnologia do ano de 1954, que realmente era um misto de lápis (por ser de madeira) e caneta (por usar tinta). Hoje conhecida por caneta esferográfica, mas que muitos paraibanos continuam chamando de lápis-tinta.

Durante a prova, o dito lápis-tinta produzia uns borrões, mas o mata-borrão que eu tinha trazido no bolso, companheiro inseparável da minha "recém-falecida" caneta Oxford, resolvia esse pequeno problema. Era verdade que a tinta desse "lápis metido a bêsta" cheirava à barata e a tinta vazada que atingia os dedos, só saía depois de alguns banhos; aliás, não muito freqüentes aos 10 anos de idade. Mas salvou-me do olhar fuzilante de D. Da Luz e da cara de ceticismo de D. Tércia se para a prova eu tivesse comparecido sem caneta e contando essa estória estapafúrdia da "caneta voadora".

sábado, fevereiro 02, 2008

CARNAVAL - CARNAVAIS


Hugo Caldas

O amigo Anco Márcio instou-me há poucos dias a tecer alguns comentários sobre o reinado de Momo em terras pernambucanas. Não poderia o meu dileto conterrâneo ter escolhido pior encarregado para levar a efeito uma empreitada desse porte. Péssima idéia, vos asseguro. Para bem falar sobre Carnaval imperioso se faz ter um passado carnavalesco pelo menos sofrível. Considero-me o mais desditoso, o mais desengonçado dos foliões. Uma lástima. O carnaval pernambucano é realmente uma coisa única no mundo inteiro. Merecia relator bem melhor.

O desfile dos Maracatus, com os seus reis, rainhas, passistas, lanceiros, é algo absolutamente impressionante. Jamais vou esquecer quando ainda há pouco tempo na cidade fui surpreendido pelo estrondo do baque virado de um Maracatu que ensaiava na Rua da Imperatriz. Já os Maracatus Rurais, se vestem diferentemente, cantam, e dançam em uma cadência distinta. Nos dias da folia, blocos e préstitos de toda naureza desfilam pela cidade. Milhares de Marchinhas e Frevos cada um mais irresistível. Pequenas agremiações, La Ursa, o Boi, sem falar dos Bonecos Gigantes de Olinda, incontestável herança Ibérica. Multicultural, (argh) belíssimo de se ver.

A segunda-feira de carnaval é dedicada à "Noite dos Tambores Silenciosos," quando vários Maracatus se reúnem no Pátio do Terço e juntos fazem um minuto de silêncio em memória dos escravos que morreram sem brincar o carnaval. A volta, ao tocarem novamente seus tambores (alfaias) é de arrepiar. Não é à-toa que o pernambucano da gema enche o peito e brada aos quatro ventos, "O Melhor Carnaval do Mundo."

Quanto a mim, pobre agregado, nunca entendi muito dessa historiada toda. Alguns primos pernambucanos, bem que insistiam, bem que tentavam me colocar no olho do furacão quando a brincadeira era o mela-mela correndo solto no mais animado entrudo. Jogava-se água, talco, farinha e às vezes até tinta e goma nos foliões. Havia longo desfile de carros, jipes e caminhonetas formando animadíssimo corso. Que era bonito, lá isso era. E empolgante.

Mesmo sem me considerar habilitado para pular os tres dia de folia, quase sempre participei e brinquei o Carnaval dos bons tempos da década de setenta em Olinda. O carnaval de Boa Viagem era de uma animação sepulcral. A cretinice era tal que vez por outra aparecia um Trio Elétrico da Coca-Cola estrondeando os jingles do nefasto xarope e a massa ignara caía inteiramente no passo. Pode? Podia.

Passei a freqüentar, por causa dos rebentos, e da cara-metade, o carnaval de Olinda de quem falavam maravilhas. Saí, se não me falha a memória, no segundo ano de vida do famoso bloco, Grêmio, Lítero, Recreativo, Carnavalesco, Misto, "Eu Acho É Pouco," que, diziam as más línguas, ser de tendência esquerdizante. Como sempre, tudo começou com quatro gatos pingados, para com o passar dos anos ir aumentando o número de foliões, até ficar em certos momentos, absolutamente impraticável se pular. Havia a ala infantil, o "Eu Acho É Pouquinho," onde a meninada brincava na parte da manhã. Zelávamos pelo bloco. Eu mesmo consegui que o compositor carioca Mauricio Tapajós compusesse um hino para a agremiação. Infelizmente nunca conseguimos gravar. Tenho ainda, acho eu, um fita cassete gravada com voz do autor. Uma relíquia, agora que o Mauricio já se foi.

O senador Marcus Freire saiu no maior passo conosco um ano, em flagrante desafio aos donos do poder de então. Para nós foi a glória. Breno Mattos, artista e paraibano dos bons, deixava a Paraíba e sempre aparecia montado numa burrinha confeccionada por ele próprio. Era religiosa a sua presença.

Existia, na Praça da Preguiça, em Olinda, a barraca "O Bêbado e o Equilibrista" que diziam ser uma célula dos foliões do PC, onde se bebia cerveja e devorávamos na hora da fome uns pastéis horrorosos. A comunistada aproveitava para faturar uma graninha por fora. Percebam vocês que estou enrolando pois me considero um zero à esquerda quando o assunto é Carnaval, Tríduo Momesco, etc. Paciência, então.

Subir e descer ladeiras até que ainda era possível naqueles tempos. Junto com mulher e dois filhos era realmente uma festa inesquecível. Para eles, evidentemente. O fato é que apesar de morar já há bastante tempo no Recife, nunca deixei de me sentir um forasteiro na cidade ou nas pernambucanidades. Carnaval é coisa de pernambucano ora, eu sou de uma terra onde não existia nem sombra da loucura que acontece nas ruas do Recife e Olinda.

O Galo da Madrugada. Ah, esse Galo! Motivo do maior orgulho aqui na Mauricéia, pois até já está lá registrado no Livro dos Recordes. O "Maior Bloco Carnavalesco do Mundo". Não tem a tradição que se espera, trinta anos não significam nada em comparação com outros folguedos mais tradicionais. Apenas uma boa idéia que deu certo e começa a se desfigurar, graças ao mesmo gigantismo que está vitimando as Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Milhões de pessoas, maior insanidade. Entrei no bloco uma vez e saí na metade do percurso. Nunca mais. Há quem goste. No Galo você não dança. Faz ginástica.

Já o carnaval da mui sestrosa Filipeia de Nossa Senhora das Neves era um arremedo de folia para uns quatro ou cinco. Recordo do Bloco do major Ciraulo, o "Empresa Tração Luz e Força, "E.T.L.F." com ele próprio e mais um bando de marmanjos em cima de um caminhão a distribuir um simpático jornal, acho que com notas carnavalescas.

Afora acontecimentos isolados de foliões que brincavam a sós, como o capitão Falcão (Cancão), que mais tarde viria a se transformar em professor de educação física do Liceu e uns poucos caboclinhos, que dançavam numa cadência absolutamente diferente dos caboclinhos do Recife, sempre em eterno desfile na Rua Direita, para onde eu menino, ia com a minha mãe à casa de umas tias, e ficava à janela como se estivesse na Marquês do Sapucaí. Lembro de um Bloco chamado "Esquadrilha V," com os desfilantes fantasiados de aviadores. Quando eu morava no Miramar não existiam muriçocas. Hoje, não só elas existem como formaram um bloco carnavalesco. Sinal dos tempos.

Rua da Concórdia, centro da cidade, recém-chegado ao Recife, certo domingo de carnaval um bloco, desses com orquestra de "pau e corda" (não se tocam instrumentos de metal) apareceu de repente na esquina e a rua toda se apressou em vir para a calçada a fim de assistir ao cortejo. Eu, dedos indicadores de ambas as mãos apontando para o alto, fui junto na melhor empolgação que um paraibano poderia demonstrar. Pois bem, o bloco desfilou lindamente. Pastoras afinadíssimas cantavam a marchinha do bloco. De repente, como se algo de mágico acontecera, todas as pessoas que estavam nas calçadas sairam acompanhando, correndo atrás do bloco, ficando eu absolutamente sozinho no meio da rua a contemplar o folguedo, que se perdia de vista ao dobrar a próxima esquina. Música diminuindo de intensidade, até parar de vez. Lembrava cena de filme do maluco do Fellini.

Lança perfume Rodouro, de metal ou de vidro, era ferramenta obrigatória para esguichar nas costas suadas das garotas que apareciam e fingiam não gostar do jato gelado da brincadeira, quando na realidade adoravam. Jânio Quadros, na sua demência alcoólica veio acabar com a festa da lança. Esse o carnaval dos bons tempos. De uma certa inocência que ficou para sempre esquecida em algum escaninho da vida. Agora só resta esperar pela quarta-feira ingrata e conferir nos jornais o estrago causado pela violência.

Que o Grande Espírito nos guarde.


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