domingo, março 16, 2008

AULA DE ALEMÃO


Hugo Caldas

O idioma alemão é relativamente fácil. Todos nós que falamos e conhecemos as línguas neolatinas tiramos de letra quaisquer conjugações de verbos, seja qual for o idioma e ainda podemos nos dar ao luxo de aprendê-lo rapidamente. Isso sem falar na ousadia, diria mesmo petulância, que nós brasileiros temos de sobra, no tocante ao aprendizado de idioma estrangeiro. Sobram-nos imaginação.

Dizem os professores de alemão, logo na primeira aula que tudo é muito fácil. Precisa apenas coragem e boa vontade. Fiquem, portanto, novéis discípulos de tedescos grunhidos, à vontade aí na vossa cadeira predileta, deixem de ver o Big-Brother-Brasil por alguns instantes e sintam como tudo flui na maior tranqüilidade.

Passemos então à singular tarefa de apanhar um livro em alemão, no caso, um magnífico volume com capa dura, recoberto pela pátina dos anos, publicado em Stuttgart no ano da graça de mil e oitocentos e preto e branco, que trata de um assunto bastante edificante: “Usos e Costumes dos Aborígines Australianos,” em alemão, "Hottentotten". Começamos bem, não?

Reza o livro em sua primeiríssima lição, que os cangurus "Beutelratten" são capturados e colocados em jaulas "Kotter", cobertas com uma tela "Lattengitter" para protegê-los dos elementos. Estas jaulas, chamam-se “jaulas cobertas com tela” "Lattengitterkotter" e quando possuem em seu interior um canguru, chamamos ao conjunto todo de, “jaula coberta de tela com canguru dentro”: "Lattengitterkotterbeutelratten".

Um dia, os Hotentotes prenderam um assassino "Attentäter", acusado de haver assassinado a mãe "Mutter" hotentote "Hottentottermutter", de um garoto surdo e mudo "Stottertrottel". Esta “mãe de um garoto surdo e mudo”, em alemão, diz-se "Hottentottenstottertrottelmutter" e a seu assassino chamamos, facilmente,

"Hottentottenstottertrottelmutterattentäter".

Na lição, os aborígines o capturam e, sem ter onde colocá-lo, puseram-no numa jaula de canguru "Beutelrattenlattengitterkotter". Mas, o preso conseguiu escapar. Após incessante busca, chega aos berros um guerreiro Hotentote:

- Capturamos o assassino "Attentäter"

- Qual? Pergunta o chefe aborígine.

- O "Lattengitterkotterbeutelrattenattentäter", comenta o guerreiro.

- Como? O criminoso que estava na jaula de cangurus coberta de tela? Pergunta o chefe dos Hotentotes.
- De fato, responde aflito o indígena.
O "Hottentottenstottertrottelmutteratentäter", assassino da mãe do garoto surdo e mudo.

- Ah, com os diabos, diz o chefe, você bem que poderia ter dito desde o início que haviam capturado o

"Hottentotterstottertrottelmutterlattengitterkotterbeutelrattenattentäter",
“o assassino da mãe do garoto surdo e mudo que estava na jaula de cangurus coberta de tela.”

E assim, com a ajuda do exemplo acima, e ao cabo da singela primeira lição, chegamos à conclusão que o aprendizado da língua alemã é facílimo e simplifica muito as coisas. É só ir juntando as palavras e pronunciar tudo de "carreirinha" como dizia o Zeca Diabo.

Forçoso será lembrar:

Quem tem língua presa na Alemanha está em maus lençóis. Já imaginaram um fanho alemão, contando essa historiada toda aí de cima? Lá, como cá, fanhos há, pois não?

E, sinceramente, como foi mesmo que o Adolf Hitler conseguiu arrastar tantos incautos com sua odiosa arenga? Falar nisso, sabiam o nome verdadeiro do Führer? Pois é, pesquisei e encontrei no Google: Está lá: "Adolf Schicklgruber." Mas isso já me reporta ao assunto para uma segunda lição.

hucaldas@gmail.com

quinta-feira, março 13, 2008

EPISÓDIOS DA VIDA ESTUDANTIL: DO GINASIAL AO COLEGIAL


Breno Grisi

EPISÓDIO I - O INÍCIO NO GINÁSIO. Se a escola antiga era mais alegre, como afirmou o ex-aluno dos anos de 1950 e nosso amigo, Hugo Caldas, e até o caminho para ela mais poético, eu diria que o colégio e o caminho para ele, era tudo isso junto e mais: um emocionante desafio e descobertas sobre o ser humano, num mundo novo. O desafio começava com o exame de admissão ao ginásio: provas escrita e oral das matérias vistas no primário. As descobertas eram as novas matérias (latim, francês, inglês, ciências) e os professores (uma gama variada de bons e maus mestres, uns exigentes e outros do tipo “corre-frouxo”, uns sisudos e outros pitorescos, uns fascinantes e outros entediantes... e assim por diante). Era puxado! Quem se lembra da Crestomatia e dos livros de latim (Ludus Primus, Secundus etc.) que o diga!

No curso ginasial no Colégio Pio X podia-se seguramente dizer que os egressos da escola de D. Tércia Bonavides estavam preparados para tudo. Segue-se uma pequena amostragem de alunos e fatos que ajudarão o leitor a comprovar a “animação” que reinava nos anos 1955-62 naquele Colégio.

Na primeira série ginasial, em 1955, havia um irmão Marista, de baixa estatura, de olhar esbugalhado, por trás de óculos com lentes grossas, agitado e um tanto quanto abusado. Talvez, mais pelo abuso do que pelo “zoião”, logo recebeu o apelido de irmão Mutuca. Um dia ele resolveu implicar com meu grande amigo Milton Cartaxo (personagem importante de episódio aqui narrado anteriormente). Esse docente (segundo narrativa da época), estando em pé diante da turma e acusando Milton de perturbador, chamou-o para perto de si. E estirando o braço e o dedo indicador, apontou-lhe a saída da sala, encaminhando-o à Diretoria. Mas não se deu conta de que seu dedo chegou perto do rosto de Milton que prontamente o mordeu. A gritaria da turma deu o toque final de animação.

No ano de 1957, na terceira série ginasial, meu colega de turma Antonio Faustino Cavalcante de Albuquerque Neto, um primo meu que, com um nome deste tamanho só poderia ser chamado de “Tonhinho” (em bom “paraibanês), era riquíssimo em idéias, ou melhor, astúcias. E um dia, sugeriu-me que nos livrássemos de uma aula chata do irmão Luiz Barreto (canto orfeônico), gazeando a aula (o pior “crime” estudantil da época) para irmos admirar a paisagem mais linda de João Pessoa (segundo ele). Era, nada menos, do que subir na torre da Igreja Batista, na Av. Getúlio Vargas, que naquele ano estava em fase final de acabamento. Burlando a atenção de um operário, concentrado na pintura, subimos por escadas internas até a base da torre; e através de uma portinha de acesso para o topo, vislumbramos a parte oeste da nossa querida terra natal, da Lagoa até o centro histórico e os manguezais do rio Paraíba. Era de fato, a João Pessoa mais linda, que jamais tinha visto! Mas o encanto foi quebrado por um senhor de paletó-e-gravata, que lá de baixo gesticulava e esbravejava, provavelmente dizendo

– Desçam daí, sêos moleques!

Não tenho muita certeza, mas acho que era o pastor Firmino. Minhas pernas bambeavam na descida, certamente devido à forte carga de adrenalina (no dizer dos jovens de hoje), produzida por essa aventura desvairada. Esgueirando-se, conseguimos escapar.

terça-feira, março 11, 2008

Solidão


Djanira Silva

Saber que alguém nos espera, apressa-nos os passos, diminui as distâncias. O olhar de espera encurta os caminhos. Desceu a ladeira em direção à várzea. Avistou a casa. Já não era a mesma. O sol batia de frente iluminava o alpendre que parecia maior. O vazio ampliava-lhe os limites. Aproximou-se, abriu o portão. As pernas tremiam, as mãos tremiam, o coração, de vez em quando, ameaçava parar. O seu presente agora limitava-se com o desconhecido. Chovera à noite. A várzea cheirava a mato verde, um cheiro de saudade e de ausência. Era a primeira vez que ia ali depois que ficara sozinha. O portão ainda gemia como antes. No jardim as roseiras carregadas de cachos e botões, cor e perfume. Sentiu a presença dele. Era como se estivesse ali, olhando por cima do seu ombro. Virou-se esperando vê-lo.

Colocou a chave na porta. Lá dentro, a alma fria do silêncio. Na presença do invisível sentia-se covarde. Agora, tinha medo de tudo: de não ouvir, de não ver, de não saber, de ver o que não queria, de sentir a dor, o sofrimento consumindo-lhe a alma. Não se reconhecia. Precisava de coragem para enfrentar a alma cheia de lembranças. Em todos os lugares ele estava. Na cadeira de balanço, no jardim, no perfume das flores, na rede atravessada no terraço, onde descansavam depois do jantar. Era ali que o encontraria sempre e não no cemitério, na frieza das paredes ou na aridez do chão. Caminhou até o quarto. A cama, o guarda-roupa, a poltrona onde ele cochilava depois do almoço. Sentiu seu cheiro de sair, nas camisas, nos lenços, nos paletós. Nos pijamas, nas fronhas, nos lençóis, seu cheiro de ficar. Sentou-se na cadeira junto da cama.

De manhã, logo depois do café ele pegava o chapéu, tirava o relógio do bolso do colete, dava-lhe corda recolocava-o de volta com a mesma elegância; olhava-se no espelho do porta-chapéus, alisava o bigode, passava a mão nos cabelos, ajeitava o paletó. Um ritual importante. Esperava o entardecer para ouvir o portão avisar que ele chegara As lembranças refletiam-se por toda parte como reflexos de sol num espelho. Tudo aconteceu muito rápido. Era difícil aceitar as mudanças. Não voltaria ao lugar onde fora deixá-lo naquela manhã.
Não gostava de se queixar. Tinha pudor dos seus sofrimentos. Preservava-os da curiosidade alheia. O que poderiam saber as pessoas da solidão, da tristeza de quem fora feliz? Fingia para poder sofrer em paz. Já não era importante para ninguém. Não havia que a esperasse na volta.

Antes nada temia. Agora, assustava-se com o anoitecer, com o escuro do silêncio e, nas trevas nos abismos da solidão recebia aquele momento difícil, o de ser sozinha. No silêncio escondia a verdade, as palavras que não ousava dizer. Sombras dentro da casa, dentro da alma. No jarro da mesa flores murchas. As cortinas fechadas. Um cheiro de nada, a falta, a cama vazia. No chão o tapete sombrio, um couro morto, estirado no meio do quarto. Acendeu a luz. Estremeceu. Fechou a porta para não ver o escuro do corredor. Temia os movimentos das sombras. Não se preparara para ser só. Como é que a gente se prepara para a solidão?

Acendeu todas as luzes, abriu todas as portas. Quem olhasse de longe, veria a casa iluminada num perigoso silêncio. Naquele fim de tarde com o sol se pondo, as árvores numa intimidade com frutos e folhas pareciam sussurrar, contar segredos. Agora sabe que solidão não é apenas se estar sozinho é não ter com quem dividir dores e alegrias.

O silêncio gemia e provocava em seu corpo espasmos de medo. Sentia-se invisível. Não sabia se quem estava ali era o corpo ou a alma. As últimas nuvens coloridas do final de tarde se espalhavam pelo céu, puras, fluídas, como claras em neve. De repente, o róseo transparente se partiu abrindo caminho para um anoitecer tranqüilo.

Estava cansada “morrer, dormir, talvez sonhar, quem sabe?” Adormeceu como quem morre ou desmaia. Ainda assim, mantinha os sentidos em alerta. O cheiro da terra envolvendo-lhe o corpo. O canto dos pássaros enganando-lhe os ouvidos “morrer, dormir, não mais...”

A sala cheia de silêncio, não, não é a sala é a alma, não, não é a alma é o mundo. Ele estava ali sempre estivera. Aos poucos, sentiu que precisava terminar o que começara em outro silêncio. Dentro dos olhos o mundo se apagou

segunda-feira, março 10, 2008

ÚLTIMA CORRIDA DE TOUROS DE SALVATERRA.


Do amigo Breno Grisi recebo a matéria abaixo:

Caro amigo Hugo:

Eis que há alguns dias atrás reuni-me com mais três colegas dos tempos da escola de Tércia Bonavides e veio à tona uma conversa sobre ensino, educação e conteúdo (este último, cada vez mais raro hoje em dia; vejam-se as já famosas “pérolas do ENEM” que abundam nas mensagens pela internet). E após tal encontro, eis que um deles, Everardo Nóbrega de Queiroz (filho do Dr. Otacílio Queiroz), envia-me um texto de Rebelo da Silva, tirado da famosa Crestomatia, com o título de ÚLTIMA CORRIDA DE TOUROS DE SALVATERRA. Na Wikipédia, a primeira linha sobre este autor reza: Luís Augusto Rebelo da Silva (Lisboa, 2 de Abril de 1822 — Lisboa, 19 de Setembro de 1871) foi um jornalista, historiador, romancista e político português, colaborador activo de múltiplos periódicos e membro das tertúlias intelectuais e políticas lisboetas da última metade do século XIX.

Em se apresentando oportunidade e conforme a conveniência e coerência com o “Blog do Hugão”, talvez seja bom este “recuerdo” do tempo da Crestomatia e do curso ginasial. Em anexo o texto sumarizado.

Abraço, Breno

Última Corrida de Touros em Salvaterra

O sr. D. José, primeiro do nome, era em Salvaterra um rei em férias. Uma tourada real chamara a corte a Salvaterra. Os fidalgos respiravam nestas ocasiões menos oprimidos. Não os assombrava tão de perto a privança do ministro. Os touros eram bravos, os cavaleiros destros, o anfiteatro pomposo e o cortejo das damas adorável. O prazer ria na boca de todos. Por cúmulo de venturas o marquês de Pombal ficara em Lisboa, retido pelo conflito com o embaixador de Espanha.

Mas vamos aos touros reais. Desses é que o ministro (Marquês de Pombal) não gostava nada. Mas El-Rei D. José, cedendo em tudo ao marquês, quanto aos touros não admitia reflexões.

Correram-se as cortinas da tribuna real. Rompem as músicas. Chegou El-Rei, e logo depois entra pelos camarotes o vistoso cortejo, e vê-se ondear um oceano de cabeças e de plumas. Na praça soam brava alegria as trombetas, as charamelas e os timbales. Aparecem os cavaleiros, fidalgos distintos todos, com o conto das lanças nos estribos e os brasões bordados no veludo das gualdrapas dos cavalos. Os capinhas e forcados vestem com garbo à castelhana antiga. No semblante de todos brilha o ardor e o entusiasmo.

O Conde de Arcos, entre os cavaleiros, era quem dava mais na vista. O seu trajo, cortado à moda da antiga corte de Luís XV, de veludo preto, fazia realçar a elegância do corpo. Filho do Marquês de Marialva e discípulo querido de seu pai, do melhor cavaleiro de Portugal, e talvez da Europa, a cavalo, a nobreza e a naturalidade do seu porte enlevavam os olhos.

A bizarria com que percorreu a praça, domando sem esforço o fogoso corcel, arrancou prolongados e repetidos aplausos. Na terceira volta, obrigando o cavalo quase a ajoelhar-se diante de um camarote, fez que uma dama escondesse turvada no lenço as rosas vivíssimas do rosto. Principiou o combate.

Tinham-se picado alguns bois. Abriu-se de novo a porta do curro, e um touro preto investiu com a praça. Era um verdadeiro boi de circo. Armas compridas e reviradas nas pontas, pernas delgadas e nervosas, indício de grande ligeireza, e movimentos rápidos e bruscos, sinal de força prodigiosa.

Nenhum dos cavaleiros se atreveu a sair contra ele. De repente viu-se o Conde dos Arcos firme na sela provocar o ímpeto da fera. Um rugido tremendo, uma aclamação imensa do anfiteatro inteiro, e as vozes triunfais das trombetas e charamelas encerraram esta sorte brilhante. Quando o nobre mancebo passou a galope por baixo do camarote, diante do qual pouco antes fizera ajoelhar o cavalo, a mão alva e breve de uma dama deixou cair uma rosa, e o conde, curvando-se com donaire sobre os arções, apanhou a flor do chão sem afrouxar a carreia, levou-a aos lábios e meteu-a no peito.

O mancebo desprezava o perigo e pago até da morte pelos sorrisos, que seus olhos furtavam de longe, levou o arrojo a arripiar a testa do touro com a ponta da lança. Precipitou-se então o animal com fúria cega e irresistível. O cavalo baqueou trespassado e o cavaleiro, ferido na perna, não pode levantar-se. Voltando-se sobre ele o boi enraivecido arremessou-o aos ares, esperou-lhe a queda nas armas, e não se arredou senão quando, assentando-lhe as patas sobre o peito, conheceu que o seu inimigo era um cadáver. El-Rei D. José, com as mãos no rosto, parecia petrificado. Mas o drama ainda não tinha concluído. O Marquês de Marialva assistira a tudo do seu lugar e o marquês perdido o filho, luz da sua alma e ufania das suas cãs, não proferiu uma palavra, não derramou uma lágrima; mas os joelhos fugiam-lhe trêmulos, e a elevada estatura inclinou-se vergando ao peso da mágoa excruciante.

Volveu, porém, em si, decorridos momentos. A lívida palidez do rosto tingiu-se de vermelhidão febril subitamente. Sem querer ouvir nada, desceu os degraus do anfiteatro, seguro e resoluto como se as neves de setenta anos não lhe branqueassem a cabeça.

- Sua majestade ordena ao Marquês de Marialva, que aguarde as suas ordens! Disse um camarista detendo-o pelo braço. O velho estremeceu como se acordasse sobressaltado. Desviando depois a mão que o suspendia, baixou mais dois degraus.

- Sua majestade entende que este dia foi já bastante desgraçado e não quer perder nele dois vassalos. O marquês desobedece às ordens de El-Rei?!

- El-Rei manda nos vivos e eu vou morrer! - atalhou o ancião, em voz áspera mas sumida - Aquele é o corpo do meu filho! - e apontava para o cadáver - Está ali! Sua Majestade pode tudo menos desarmar o braço do pai, menos desonrar os cabelos brancos do criado que o serve há tantos anos. Deixe-me passar, e diga isto.

O pai angustiado ajoelhou junto do corpo do filho e pensou-lhe depois um ósculo na fronte. Desabrochou-lhe o talim e cingiu-o, levantou-lhe do chão a espada e correu-lhe a vista pelo fio e pela ponta de dois gumes. Passou depois a capa no braço e esbriu-se. Decorridos instantes estava no meio da praça e devorava o touro com a vista chamejante, provocando-o para o combate. Fez-se no circo um silêncio gélido.

O touro arremete contra ele.Uma e muitas vezes o investe cego e irado, mas a destreza do marquês esquiva sempre a pancada. O combate demora-se. A vida dos espectadores resume-se nos olhos.

A imensidade da catástrofe imobiliza todos. De súbito, solta El-Rei um grito e recolhe-se para dentro da tribuna. O velho aparava a peito a marrada do touro, e quase todos ajoelharam para rezarem por alma do último Marquês de Marialva.

A aflitiva pausa apenas durou momentos. Por entre as névoas, de que a pupila trémula se embaciava, viu-se o homem crescer para a fera, a espada fuzilar nos ares e logo após sumir-se até aos copos entre a nuca do animal. Clamores unísonos saudaram a vitória. O marquês, que tinha dobrado o joelho com a força do golpe, levantava-se mais branco do que um cadáver. Sem fazer caso dos que o rodeavam, tornou a abraçar-se com o corpo do filho, banhando-o de lágrimas e cobrindo-o de beijos. El-Rei, de pé e muito pálido, tinha junto de si o marquês de Pombal.

- Foi a última corrida, marquês. A morte do Conde de Arcos acabou com os touros reais enquanto eu reinar.

- Assim o espero da sabedoria de Vossa Majestade. Não há tanta gente nos seus reinos, que possa dar-se um homem por um touro...

D. José I cumpriu a palavra dada ao seu ministro. No seu reinado nunca mais se picaram touros reais em Salvaterra.

in Rebelo da Silva, "Contos e Lendas"

domingo, março 09, 2008

Recuerdo 31 - Uma viagem que jamais existiu


Hugo Caldas

Ela era leve, linda e jovem. Cabelos loiros curtinhos, encaracolados, que lhe concediam uma bela moldura para seu rosto de garota sapeca. Amelinha, como aqui a chamarei, descendia de italianos, era magra, porém uma falsa magra, se é que me entendem. Pés pequenos, torneados e bem feitos. Cinturinha de pilão. Toda certinha. Falava com um "erre" meio paulista, ciciando a voz quase rouca. Quando vestia um conjunto vermelho e cinza era um arraso. Simplesmente devastadora. Não caminhava, parecia flutuar. Um eterno sorriso maroto. Esse, o grande amor da adolescência, daqueles que ficam entranhados, que a gente não esquece jamais. Ficam como uma neblina, feito Diadorim.

Conversando com amigo querido, sobre essa paixão avassaladora, ele me pergunta: Você já leu “Viagem aos seios de Duilia”? "A história é mais ou menos a mesma.... É sobre um homem que ao se aposentar decide retornar à sua cidade natal na esperança de reencontrar seu primeiro e eterno amor, uma jovem chamada Duília. Procura ele por alguma coisa que o faça sentir-se vivo. Algo que preencha o vazio em que se tornara a sua vida de aposentado. Lembrava-se muito bem dos seus dezesseis anos quando menino ainda, descobrira o mundo no colo da amada." Cuidava o meu amigo, que eu não tivesse desventura igual ao do personagem do Aníbal Machado.

Também estou aposentado mas muito longe de procurar algo que venha a preencher o vazio da minha vida. Casei duas vezes, tenho quatro filhos e quatro netos. Continuo a minha trajetória em sala de aula, que considero uma extensão do palco do Theatro Santa Roza. Trabalho feito um mouro. Não dá mesmo para sentir vazio algum. Se eu trabalho deixo de pensar em besteira e os homens lá em cima se esquecem de mim. E além de tudo, eu gosto!

Portanto, este Recuerdo se dá por uma única e exclusiva razão. O fato de, vez por outra, Amelinha voltar ao meu pensamento, assim, gratuitamente, por qualquer dois vinténs. Pelo menos até uns poucos anos atrás.

Nos conhecemos por artes da sua própria mãe que ao preparar o casamento da filha mais velha, toda animadinha, decidiu que nós dois formaríamos um belo par no grupo de Damas e Cavalheiros durante o cerimonial. E assim foi feito. Dia do casório, a Catedral lotada, tudo correndo dentro dos conformes, lá pelo meio da solenidade, sem mais nem pra que, peguei em sua mão e perguntei-lhe ao pé do ouvido, bem baixinho, se ela se casaria comigo logo após a cerimônia oficial. Ela sorriu e disse que sim. Naquela hora se iniciou o mais profundo, o mais intenso, o mais apaixonado amor que o mundo jamais conhecera.

Foi um amor tempestuoso. Altos e baixos. Extrema euforia, extrema tristeza. O fato é que nos amávamos de verdade. Fazíamos parte de um certo grupo, acredito que extinto hoje em dia, bastante excêntrico, que se apaixonava realmente.

Íamos aos "assustados" e festas, nos vestíamos bem e gostávamos de dançar bolero, não essa coisa bisonha, enganosa, mostrada em programas televisivos de terceira. Gostávamos de música, a boa música, por suposto. Há uma enorme diferença entre "tú pisavas nos astros distraída" e, "a cachorra tá molhadinha, olha aqui o teu tigrão". Eram tempos em que não existia essa coisa modernosa, inconseqüente de "ficar". Éramos avançadinhos sim senhor, para a época. Me recordo de um retrato tirado por uma amiga comum, a Gilze. Estávamos na Lagoa, ela com o tal vestido vermelho e cinza. Queríamos documentar a nossa felicidade e resolvemos que iríamos tirar um retrato nos beijando apaixonadamente. Era ou não uma audácia? Esse tal retrato ficou guardado a sete chaves. Era o nosso tesouro mais valioso.

Lembro que ela era fanzoca do Rock Hudson, que arrebentava corações na década de 50 antes evidentemente de descobrirem sua homossexualidade. Pois bem, ela tinha umas duas caixas de sapatos cheias de fotos do indigitado o que me provocava o mais impetuoso ciúme. Certa tarde, dei uma de machão e exigi os meus direitos de apaixonado. "Ou você dá fim às fotos desse veado ou está tudo acabado". Ela, após ponderações inúmeras, rasgou um por um os retratos, os olhos banhados de lágrimas. Muito tempo depois, anos 80, estava em viagem pela Califórnia e tomo conhecimento pelo jornal no hotel, da morte do Hudson vitimado pela Aids. A primeira coisa que me veio à cabeça foi:

"Eu bem que disse à Amelinha"!

Vivemos nosso tempo determinado de amor até que um dia a velha cismou de nos separar. Queria alguém melhor para a sua filha. Não àquele estudante de meia tigela. Um tenente do exercito estava na área. Fiz concurso para a Panair do Brasil e vim trabalhar no aearoporto do Recife. Belo dia ela veio de viagem e nos encontramos. Estava eu atarefado no balcão da companhia quando uma voz muito conhecida me pergunta qual seria o preço de uma passagem aérea para a Paraíba. Saímos algumas vezes e ao cabo de alguns dias ela retornou à João Pessoa. Daí em diante nunca mais a vi. Imaginava como seria quando nos reencontrássemos. Forçosamente teria que acontecer.

Aconteceu realmente passados 40 anos dos fatos.

A gente guarda na memória a imagem de 40 anos atrás. O tempo é realmente inexorável. Por mais que eu tentasse, a Amelinha dos meus devaneios não mais existia. Ela foi me apanhar na Estação e almoçamos juntos. Apesar da ternura ainda existente senti que algo estava errado demais. Acho inclusive que ela teve essa mesma impressão. Não éramos mais os mesmos. Não era mais o nosso tempo. Estávamos velhos. O fato é que assenti de imediato quando ela disse que não estava preparada (enviuvara há poucos meses) e que gostaria de voltar pra casa. Respirei aliviado e voltei só para o hotel, em respeito por tudo de bonito que havia acontecido conosco.

A viagem aos seios de Amelinha jamais aconteceu.

hucaldas@gmail.co

ESPANHOLADAS, GALEGADAS


Riobaldo Tatarana

“Da Espanha, nem bom vento nem bom casamento”. Esse antigo provérbio português, citado por Eça de Queirós no romance O crime do padre Amaro, expressa muito bem o sentimento, não apenas de Portugal, mas de toda a Europa, por esse país de segunda classe, que agora, depois de juntar uns trocados, dá-se ares de potência mundial. E nessa fantasia de grandeza, passa a hostilizar os estrangeiros do terceiro mundo – mundo do qual ele sempre fez parte, como um dos seus membros mais antigos.

Ora, a galegada! Até um dia desses, o Brasil recebia levas e mais levas de espanhóis, que aqui chegavam com uma mão na frente outra atrás, para tentar escapar da ditadura franquista e do atraso de uma economia estagnada. E aqui foram recebidos com toda a amizade e carinho, típicos dos brasileiros, que sempre tiveram por hábito abrir os braços aos imigrantes. Judeus, árabes, japoneses, italianos, portugueses, coreanos e de onde mais viessem, gente honesta e trabalhadora, que ajudou-nos a construir o país.

Nessa liberalidade, recebemos também muitos espanhóis, que em sua grande maioria vieram dedicar-se a sua atividade mais característica, a única que realmente sabem fazer: abrir restaurantes fajutos e sobretudo bordéis, que é a especialidade deles. Toleramos tudo, sempre na esperança de que melhorassem com o tempo, perdessem a casca fascistóide que forma o caráter médio desse povo abaixo da média.

Aqui agüentamos tudo, educadamente, sua língua pegajosa – tão diferente do doce idioma falado nos países sul-americanos e no México – sua absoluta falta de educação, sua religião medieval e até seu horror à limpeza. Vejam quanta ingratidão: agora, esses mesmos sujeitos voltam-se contra nós, e hostilizam os brasileiros que para lá se dirigiam, não para abrir botequins e casas de tolerância, mas para estudar.

Em boa hora o governo brasileiro deu educadamente o troco, sem qualquer exagero, limitando-se a usar a lei internacional da reciprocidade. E mandamos de volta mais uma leva de aventureiros, que aqui esperavam estabelecer-se em atividades ilícitas. A única coisa que preocupa é nossa natural tendência a tudo perdoar e esquecer. Que logo se tornem a afrouxar nossos controles imigratórios. E que continuemos a receber essa galegada, desde aquele rei de baralho, com seus trajes carnavalescos, até seu azeite de segunda, seus vinhos de terceira e seu know-how para tudo o que não presta. Até lá, aguardemos que o bravo povo basco consiga sua independência. E aí sim, recebamos os bascos que quiserem nos visitar, de braços e coração abertos.

sábado, março 08, 2008

Trufas para o jantar


Anco Márcio de Miranda Tavares

A minha namorada preferida tinha longos cabelos ruivos que se espalhavam por sobre o ombro e sempre trazia trufas para o jantar. Ele se chamava Fernanda, Amanda uma coisa assim, com esse som que nunca me doeu nos ouvidos. A minha namorada preferida tinha sardas em todo o rosto e por sobre os ombros também.

Brigas a gente nunca teve. Discussão também não. Como discutir com uma pessoa que concordava com tudo que eu dizia, que pensava meus pensamentos, que advinhava o que eu ia dizer? Fernanda ou Amanda era assim. Tinha as mãos reconchudas embora não fosse assim uma mulher gorda. Tinha mãos de criança.

As ancas rebolavam de acordo com o andar que era lépido e fagueiro. E suava em bicas! Como suava a minha namorada que trazia trufas para o jantar. Transar com ela era quase que uma brincadeira de escorregar, pois seu corpo ficava liso como se a gente houvesse passado sabão sobre ele.

Eu lembro que num dia ela cismou de tomar banho no rio sem roupas. E isso não foi de noite nem escondido não!! Foi em plena luz do dia e juntou gente para olhar. Ela e seus cabelos ruivos, ruivos também no sexo, fizeram a alegria da meninada do lugar. Uma mulher de mais de um metro e oitenta nua dentro de um rio tinha o que ver.

Mas eu disse que ela trazia trufas para o jantar. E trazia mesmo. Preciosamente guardadas numa caixinha em forma de coração. Vinham sempre numa caixinha em forma de coração e revestida de papel laminado. Ela me trazia com carinho, afeto e um beijo na boca nada discreto.

Começamos a nos desentender quando eu disse que não queria mais trufas para o jantar. Ela chorou muito e disse que eram dadas com amor. Mas mesmo com amor, eu fui rude, grosseiro, disse que não queria nem mais ver trufas na minha frente e na minha casa a melhor da aldeia.

Ela não disse nada. Pegou suas poucas coisas, enrolou num pano vermelho e saiu em direção do centro. Foi a última vez que a vi... Minto. Eu a vi outra vez no rio, tomando banho nua. Ela nem me viu. E eu quando cheguei em casa me masturbei pensando naquela mulher que fora minha e trazia trufas para o jantar.

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