domingo, março 09, 2008

Recuerdo 31 - Uma viagem que jamais existiu


Hugo Caldas

Ela era leve, linda e jovem. Cabelos loiros curtinhos, encaracolados, que lhe concediam uma bela moldura para seu rosto de garota sapeca. Amelinha, como aqui a chamarei, descendia de italianos, era magra, porém uma falsa magra, se é que me entendem. Pés pequenos, torneados e bem feitos. Cinturinha de pilão. Toda certinha. Falava com um "erre" meio paulista, ciciando a voz quase rouca. Quando vestia um conjunto vermelho e cinza era um arraso. Simplesmente devastadora. Não caminhava, parecia flutuar. Um eterno sorriso maroto. Esse, o grande amor da adolescência, daqueles que ficam entranhados, que a gente não esquece jamais. Ficam como uma neblina, feito Diadorim.

Conversando com amigo querido, sobre essa paixão avassaladora, ele me pergunta: Você já leu “Viagem aos seios de Duilia”? "A história é mais ou menos a mesma.... É sobre um homem que ao se aposentar decide retornar à sua cidade natal na esperança de reencontrar seu primeiro e eterno amor, uma jovem chamada Duília. Procura ele por alguma coisa que o faça sentir-se vivo. Algo que preencha o vazio em que se tornara a sua vida de aposentado. Lembrava-se muito bem dos seus dezesseis anos quando menino ainda, descobrira o mundo no colo da amada." Cuidava o meu amigo, que eu não tivesse desventura igual ao do personagem do Aníbal Machado.

Também estou aposentado mas muito longe de procurar algo que venha a preencher o vazio da minha vida. Casei duas vezes, tenho quatro filhos e quatro netos. Continuo a minha trajetória em sala de aula, que considero uma extensão do palco do Theatro Santa Roza. Trabalho feito um mouro. Não dá mesmo para sentir vazio algum. Se eu trabalho deixo de pensar em besteira e os homens lá em cima se esquecem de mim. E além de tudo, eu gosto!

Portanto, este Recuerdo se dá por uma única e exclusiva razão. O fato de, vez por outra, Amelinha voltar ao meu pensamento, assim, gratuitamente, por qualquer dois vinténs. Pelo menos até uns poucos anos atrás.

Nos conhecemos por artes da sua própria mãe que ao preparar o casamento da filha mais velha, toda animadinha, decidiu que nós dois formaríamos um belo par no grupo de Damas e Cavalheiros durante o cerimonial. E assim foi feito. Dia do casório, a Catedral lotada, tudo correndo dentro dos conformes, lá pelo meio da solenidade, sem mais nem pra que, peguei em sua mão e perguntei-lhe ao pé do ouvido, bem baixinho, se ela se casaria comigo logo após a cerimônia oficial. Ela sorriu e disse que sim. Naquela hora se iniciou o mais profundo, o mais intenso, o mais apaixonado amor que o mundo jamais conhecera.

Foi um amor tempestuoso. Altos e baixos. Extrema euforia, extrema tristeza. O fato é que nos amávamos de verdade. Fazíamos parte de um certo grupo, acredito que extinto hoje em dia, bastante excêntrico, que se apaixonava realmente.

Íamos aos "assustados" e festas, nos vestíamos bem e gostávamos de dançar bolero, não essa coisa bisonha, enganosa, mostrada em programas televisivos de terceira. Gostávamos de música, a boa música, por suposto. Há uma enorme diferença entre "tú pisavas nos astros distraída" e, "a cachorra tá molhadinha, olha aqui o teu tigrão". Eram tempos em que não existia essa coisa modernosa, inconseqüente de "ficar". Éramos avançadinhos sim senhor, para a época. Me recordo de um retrato tirado por uma amiga comum, a Gilze. Estávamos na Lagoa, ela com o tal vestido vermelho e cinza. Queríamos documentar a nossa felicidade e resolvemos que iríamos tirar um retrato nos beijando apaixonadamente. Era ou não uma audácia? Esse tal retrato ficou guardado a sete chaves. Era o nosso tesouro mais valioso.

Lembro que ela era fanzoca do Rock Hudson, que arrebentava corações na década de 50 antes evidentemente de descobrirem sua homossexualidade. Pois bem, ela tinha umas duas caixas de sapatos cheias de fotos do indigitado o que me provocava o mais impetuoso ciúme. Certa tarde, dei uma de machão e exigi os meus direitos de apaixonado. "Ou você dá fim às fotos desse veado ou está tudo acabado". Ela, após ponderações inúmeras, rasgou um por um os retratos, os olhos banhados de lágrimas. Muito tempo depois, anos 80, estava em viagem pela Califórnia e tomo conhecimento pelo jornal no hotel, da morte do Hudson vitimado pela Aids. A primeira coisa que me veio à cabeça foi:

"Eu bem que disse à Amelinha"!

Vivemos nosso tempo determinado de amor até que um dia a velha cismou de nos separar. Queria alguém melhor para a sua filha. Não àquele estudante de meia tigela. Um tenente do exercito estava na área. Fiz concurso para a Panair do Brasil e vim trabalhar no aearoporto do Recife. Belo dia ela veio de viagem e nos encontramos. Estava eu atarefado no balcão da companhia quando uma voz muito conhecida me pergunta qual seria o preço de uma passagem aérea para a Paraíba. Saímos algumas vezes e ao cabo de alguns dias ela retornou à João Pessoa. Daí em diante nunca mais a vi. Imaginava como seria quando nos reencontrássemos. Forçosamente teria que acontecer.

Aconteceu realmente passados 40 anos dos fatos.

A gente guarda na memória a imagem de 40 anos atrás. O tempo é realmente inexorável. Por mais que eu tentasse, a Amelinha dos meus devaneios não mais existia. Ela foi me apanhar na Estação e almoçamos juntos. Apesar da ternura ainda existente senti que algo estava errado demais. Acho inclusive que ela teve essa mesma impressão. Não éramos mais os mesmos. Não era mais o nosso tempo. Estávamos velhos. O fato é que assenti de imediato quando ela disse que não estava preparada (enviuvara há poucos meses) e que gostaria de voltar pra casa. Respirei aliviado e voltei só para o hotel, em respeito por tudo de bonito que havia acontecido conosco.

A viagem aos seios de Amelinha jamais aconteceu.

hucaldas@gmail.co

6 comentários:

ecologiaemfoco disse...

Caro amigo Hugo:
Estou sempre lendo seus "recuerdos". Quem não os tem? Entre nós, de Marte, quem não teve a sua Vênus? Vejo-me em algumas de suas descrições, principalmente as referentes a lugares e situações similares. Catedral, assustados, a Lagoa e outros locais provincianos que valiam a pena serem desfrutados, mas só naqueles tempos!
Continue divulgando ... é ótimo para espantar os fantasmas que se aproximam com o avanço da idade.
Breno Grisi

Anônimo disse...

Que interessante! Essa mulher tão leve só podia ser uma flôr...
Elpidio

djanirasilva disse...

Acompanho com prazer o seu fazer liter�rio. Uma bela cr�nica com o sabor e o perfume das lembran�as e da saudade. Imagens que se escondem e �s vezes fazem a gente pensar que estvam perdidas. Parab�ns, Djanira

Anônimo disse...

Botasse pra lascar Hugão!!
Tá ótima a crônica e me faz lembrar a minha "amelinha" que na verdade se chama Norminha. Nos conhecemos numas férias que passei em Cuité, interior da PB. Dia desses ajudei uma velhinha a atravessar a rua.
Na verdade eu é que estava com medo de atravessar sozinho!!
Quando olhei de lado...era Norminha!! Com a pele de pergaminho, óculos de lentes bem espessas, e reluzentes dentes postiços. Eu não tenho a pele enrugada por estar gordo. Falei:

-Pronto Dona Norma...
-Como o senhor sabe meu nome?
-Foi a senhora que me disse, segurando na minha mão, na pracinha de Cuité...

Norminha saiu sacudindo a cabeça. Ao chegar em casa seve ter ditos aos netos que encontrou um doido na rua... O tempo é implacável...
Já fomos Lobo e Caçador...Hoje dois velhos caçando o tempo perdido...

Anônimo disse...

Hugo.
Maravilhoso o "Recuerdo 30 - Uma viagem que jamais existiu". Quem do nosso tempo não passou por isso?
Um abraço e manda mais.
Zé Taussig

m disse...

Hugo,

Que texto agradável e envolvente!
Bonita lição de carinho, respeito e amor. Grata. Márcia