sábado, julho 29, 2006

Recuerdo 10 - Sargento Machado, Aragarças, Vôo 254, Planeta Marte e Quejandos

Sargento Machado, Aragarças, Vôo 254, Planeta Marte e Quejandos

Há apenas alguns meses trabalhando quando um certo dia, colega avisa baixinho, ao ouvido, “o 254 voou no pau.” Estupefação, alvoroço. Era o que sabíamos. O 254 era um vôo originado no Rio de Janeiro às 10.00 da noite que chegava ao Recife às 4.40 da manhã do dia seguinte. Ao cabo de algumas horas descobrimos com certo alívio, que não fora um acidente. O Constellation da Panair, Vôo 254, havia sido seqüestrado, juntamente com um mono-motor particular, por rebelados da Força Aérea e tomado o rumo de Aragarças, Goiás. Os insurretos pretendiam bombardear os palácios Laranjeiras e do Catete, no Rio, e ocupar as bases de Santarém e Jacareacanga, no Pará, entre outras. Completa loucura.

Na realidade, nem o bombardeio aos palácios, nem a ocupação das bases chegaram a acontecer, e a revolta ficou restrita a base de Aragarças. A rebelião durou exatas 36 horas. Seus líderes fugiram nos mesmos aviões para o Paraguai, Bolívia e Argentina, somente retornando ao Brasil no governo de Jânio Quadros. Dois desses líderes se tornaram famosos. Principalmente pela reincidência, pela insistência. O Major Haroldo Veloso e o Capitão José Chaves Lameirão antes de Aragarças lideraram uma outra revolta em Jacareacanga. Todos os rebelados foram beneficiados pela anistia concedida logo depois pelo Congresso, por solicitação expressa do presidente Juscelino.

Fins de 1960. Boa Viagem, praia aprazível transformando-se em bairro de classe média alta. Morávamos todos da mesma turma da Panair em um apartamento com governanta e tudo a que tínhamos de direito. No andar de cima morava o sargento Machado, da Aeronáutica. Sujeito simpático, boa pinta, vivia com a família. Ao mesmo tempo em que de certa forma “protegia” uma lourona moradora do apartamento junto ao nosso, comissária de vôo da Real Aerovias.

Místico. Lia livros espíritas e gostava de conversar sobre discos voadores. Disse haver feito várias viagens ao planeta Marte. Certa vez fora convidado a conhecer como eram construídas as estradas de rodagem. As BRs, de lá. Primeiramente os marcianos delineavam o trecho onde seria a rodovia. Depois com o auxilio de possantes máquinas voadoras revolviam todo o terreno. Em seguida outras máquinas mais poderosas sobrevoavam o trecho a baixa altitude empregando um alto teor de calor até o terreno selecionado ficar completamente incandescente e logo a seguir, no resfriamento, tornar-se em vidro espesso. Por causa dessas conversas, bastante agradáveis por sinal, eu tive uma experiência chamada “desdobramento”.

De acordo com a minha mulher, espiritista juramentada, o "desdobramento acontece quando você se descola do seu corpo podendo, entretanto, voltar. São supostas experiências fora do corpo realizadas por qualquer um, em estado de vigília, acordado, via meditação ou técnicas de relaxamento."

Explico: estava eu deitado de bruços na minha Patente Faixa Azul, após o almoço, nem dormindo nem acordado, olhando as coluninhas do espelho da cama que em dado momento tornaram-se enormes como as colunas dos templos gregos. Ato contínuo, sinto que deixo o meu corpo, flutuo até o forro olho para baixo e me vejo deitado na cama. Isso durou muito pouco tempo mas o suficiente para sentir que algo estranho estava acontecendo. Voltei digamos, ao normal, e não falei com ninguém a não ser com o sargento Machado. Não recebi explicação convincente mas ele aproveitou para falar mais uma vez sobre discos voadores, espiritos superiores, Planeta Marte, Ramatís e quejandos. Telefonei para o meu pai. Precisava da sua ajuda sendo ele também espiritista. Nessa época os telefonemas interurbanos não eram essa maravilha de hoje. Era aos berros. Seria mais fácil para o meu pai ouvir lá em João Pessoa os meus gritos do que a conversa pelo fone. Expliquei o tal episódio mas ele simplesmente perguntou se eu não havia andado bebendo um pouco demais...

Mas tudo isso foi somente para situar a pessoa do sargento Machado, heroi do presente recuerdo, que apesar de místico e muito boa gente, soube agir com firmeza quando assim se tornou necessário.

Uma noite nos aparece, assim saído do nada, um ex-militar, remanescente de Aragarças completamente embriagado, cabelos desgrenhados, olhos no melhor estilo Jânio Quadros, (um olho virado para o leste e o outro para o oeste) tirando o sossego do prédio, querendo porque querendo subir para o apartamento da lourona, a quem parecia conhecer muito bem. Coisa de "antigo caso desmanchado". A moça não denotava nenhum interesse em descer e muito menos, atender aos lancinantes e pungentes apelos do xaroposo ex-milico, que variando dos berros aos soluços, lhe implorava que viesse encontra-lo.

Entra em cena, devidamente encorajado pelos moradores, que a essas alturas estavam em suas janelas a assistir ao deplorável espetáculo, o sargentão, que logo tirou a camisa a fim de intimidar com seu físico o elemento insuportável. Não surtiu o mínimo efeito. Apelou então para a "diplomacia".

- Olha aqui, meu amigo....
- O "amigo" berrava, a voz pastosa: amigo porra nenhuma, eu preciso falar com a Angelina...
- A Angelina está voando, de serviço.
- Eu não admito...quero a Angelina...olha aqui...seu merda...sabe com quem está falando?
- Sei. E por lhe conhecer muito bem, quero que vá se retirando...
- E sou o capit... não conseguiu terminar... Levou um soco tão bem aplicado na boca que o sangue espirrou manchando a camisa amarela enquanto desmaiava.

O sargento então o arrasta pela gola até o portão, pára um taxi que passava sacudiu aquele molho de gente dentro e diz ao motorista..."leva esse canalha pra qualquer lugar...de preferência a delegacia de policia."

Santo remédio. Nunca mais fomos importunados pelo "heroi". Nem nós nem a Angelina que logo após o acontecido iniciou um romance com um dos dos nossos colegas de trabalho e vivia em nosso apartamento. De minha parte, constatei com certo alívio, que houvesse acontecido realmente a "revolução" de Aragarças, onde estaríamos nós, amarrando o nosso jumento!

terça-feira, julho 25, 2006

A OUTRA ONDA DO TSUNAMI

N.E.
Esta matéria saiu em prestigiado jornal pernambucano logo após o desastre em 2004.
O texto me chocou profundamente pela terrível falta de respeito para com os mortos.
Na eventualidade desse novo Tsunami (com menos mortos) será que o desrespeito continua? Quem tem um "divulgador" desse tipo não necessita de opositores.
Que os Deuses tirem por menos as insanidades vomitadas como se verdades fossem.
Hugo Caldas


A OUTRA ONDA DO TSUNAMI

Carlos Pereira

Dia 26 de dezembro de 2004. Uma notícia abala o mundo. Um gigantesco maremoto atinge vários países da Ásia provocando a morte de mais de 145 mil pessoas. Índia, Tailândia, Sri Lanka e, principalmente, a Indonésia com mais de 94 mil mortos, foram os países mais atingidos. O fenômeno conhecido como tsunami é uma onda gigante gerada por distúrbios sísmicos. A causa geológica deste tsunami provém do movimento de placas tectônicas situadas no Oceano Índico e em Sumatra, no noroeste da Indonésia. A colisão entre elas provocou uma ruptura. Ao longo da fissura de cerca de 1.000 km de comprimento gerou-se um deslocamento vertical de cerca de dez metros promovendo, assim, o tremor.Na medida em a onda tsunami se aproxima do litoral, ela diminui de velocidade porque a água fica mais rasa e, com isso, a altura da onda aumenta significativamente podendo chegar à praia com até 20 metros.

As conseqüências do tsunami foram devastadoras. Fome, doenças e desolação. Ajudas humanitárias internacionais chegam numa velocidade menor do que se necessita. Mas por que Deus permitiria uma tragédia dessas proporções?Partindo-se do princípio de que Deus é a suprema justiça e de que nada ocorre por acaso, poderemos especular algumas razões.

Uma outra onda, de ordem espiritual, está, certamente, na origem dos efeitos do tsunami. Os Espíritos Superiores nos esclarecem que as chamadas catástrofes coletivas são provenientes também de resgates cármicos coletivos. Milhares de espíritos comprometidos por maldades provocadas em outras existências são colocados pela espiritualidade numa mesma situação encarnatória e, no tempo aprazado, são submetidos a tais expiações. Outra explicação diz respeito ao processo pelo qual o nosso planeta vem atravessando que é o da regeneração social. Algumas informações transcendentais dão conta que muitos espíritos estão tendo as suas últimas oportunidades encarnatórias na terra e, caso não aproveitem devidamente, serão expurgados para outros planetas de um nível moral mais atrasado que o nosso. Esta depuração será cada vez mais crescente e a humanidade não deveria se surpreender com outras catástrofes coletivas e que representariam, tão-somente, etapas da seleção espiritual que se efetua. Para aqueles que se esforçam no melhoramento interior nada a temer. Como bem exemplificou Jesus na Parábola do Bom Samaritano, não será pelo vínculo religioso que professamos ou pela posição social que reservaremos um futuro tranqüilo, mas pela promoção do bem sem segundas intenções.

(Jornal do Commercio – 23-01-05)
Nota: Carlos Pereira é presidente da Associaçãode Divulgadores do Espiritismo de Pernambuco,ADE-PE. (www.ade-pe.com.br)

quinta-feira, julho 20, 2006

PIOR FOI A EMENDA

Elpidio Navarro

No início dos anos cinqüenta a festa de Nossa Senhora das Neves era um dos eventos mais importantes de João Pessoa, não só por tratar-se da comemoração da data da nossa Santa Padroeira e da fundação da Cidade, conseqüentemente do Estado da Paraíba, mas também pela tradição de costumes que existiam, mantidos só naquele período, que ia do dia 27 de julho a 5 de agosto. Tudo acontecia na Rua Nova, já na época denominada de General Osório, entre o Grupo Escolar Thomaz Mindelo e a Catedral Metropolitana, rua de largas calçadas bem afeitas a passeios, à colocação de barracas para vender cachorro-quente, aos cercados para os jogos de argolas, roletas e tiro ao alvo. Também eram construídos os pavilhões por associações beneficentes, para servir bebidas e comidas, realização de leilões e concursos de rainhas da festa, com o lucro destinado a uma causa social. Indo em direção à Catedral, a última quadra do calçadão do lado direito era destinada ao passeio do quem me quer, onde as jovens de família desfilavam de braços dados, flertando com os rapazes de família que ficavam, a maioria com seus ternos brancos, formando um cordão de isolamento à beira da calçada. Ali surgiam os namoros, os fuxicos, os rompimentos amorosos e ninguém pagava nada para participar. Já ao lado esquerdo da Catedral ficava o local denominado a bagaceira, reservado às moças e rapazes que não eram de família, ou seja, o pessoal mais pobre, as piniqueiras, soldados de polícia, guardas noturnos, cabeceiros etc., não faltando também os rapazes de família que para lá se dirigiam após a hora do recolhimento das moças de família, que da bagaceira só tinham notícias ou uma visão geral de cima da roda-gigante. Os rapazes de família iam à procura de aventura sexual com alguma empregadinha e tinham, geralmente, a compreensão das suas namoradas, moças de família, que, àquela época, ainda casavam virgens.

Uma outra tradição bem forte eram os jornais da festa. Entre eles O Gongo, pelo qual eram responsáveis Arlindo Delgado, Genildon Gomes, José Morais Souto, Valdez Silva e eu, entre outros. O jornalzinho publicava tudo: fofocas, aniversários, humor, pensamentos… Nessa de pensamentos foi publicado num dos seus números: “Mais vale uma velha do que um balaio de brotos”, atribuído Biu Bate-Bate, que era o apelido de Severino Alves de Andrade, estudante de Direito, noivo de um moça mais velha do que ele, porém alta funcionária federal. Dia seguinte à publicação, já esperávamos uma reação, possivelmente até violenta, dele. E não deu noutra: estávamos no jornal, eu e Arlindo Delgado, quando avistamos Biu Bate-Bate vindo em nossa direção. Não contamos conversa: nos escondemos por trás das impressoras. Na redação estava Humberto Melo, também estudante de Direito, que não se dava bem com o esperado visitante e que por uma infeliz coincidência havia nos pedido para publicar uma notinha de aniversário, a qual estava redigindo numa das máquinas de escrever. Biu parou na porta da redação, olhou para Humberto e desafiou:

- Só podia ser coisa sua, seu cabra safado! Agora venha para a rua apanhar. Só não vou lhe quebrar a cara aí porque eu, como estudante de Direito, conheço as leis: não posso invadir recintos particulares. Mas aqui no meio da rua eu acabo com você! Venha se é homem!

Humberto Melo atônito, sem saber o que estava acontecendo e nem por que estava sendo desacatado, não se mexeu na cadeira onde estava sentado, não falou uma só palavra. Biu continuou ameaçando, mas ao notar que estava chamando a atenção das pessoas que passavam na rua, retirou-se dizendo que iria pegá-lo noutra ocasião. Saímos da nossa toca e ainda encontramos Humberto sob o efeito da injusta agressão sofrida. Quando nos viu, perguntou ainda com certa dificuldade:

- O que foi que eu fiz?!… O que foi que houve?!…
- Do quê você está falando, Humberto?

Perguntou Arlindo fingindo surpresa, enquanto eu me esforçava para não rir. Humberto relatou o acontecido e Arlindo, mais um vez, demonstrava ser um bom ator:

- Que absurdo, Humberto! A gente não ouviu nada disso devido ao barulho das máquinas. Esse Biu está ficando doido, isso é bebida demais!
Eu vou procurá-lo, Humberto. Ele vai ouvir umas verdades…

E seguimos para o Ponto de Cem Reis, pois já era hora do encontro diário com o resto do pessoal, para colher as notícias, artigos, matérias para a edição do dia do nosso O Gongo. Parados na calçada da Farmácia Regis, ponto combinado com a turma, eis que surge Biu com cara de poucos amigos:

- Acabo de ir lá naquele jornalzinho de merda mas só encontrei o safado do Humberto Melo, que não teve coragem de sair para apanhar! Mas só podia ser coisa dele o que vocês publicaram…

- Um momento Severino, um momento! Primeiro você chamando jornalzinho de merda não está atingindo Humberto, porque ele nem pertence ao corpo de redatores. Se estava lá foi mera coincidência. Segundo, você está atingindo pessoas que você nem conhece, que são donas do jornal, como, por exemplo, Elpídio que está aqui ao meu lado. Terceiro, explique o que está acontecendo, o que foi que lhe deixou dessa forma. Sentenciou Arlindo, encarando Biu, enquanto eu permanecia ao lado, calado e com medo. Então, já mais calmo, o nosso agressor tenta explicar a sua atitude:

- Aquele pensamento, aquele negócio do balaio de brotos, aquilo foi sacanagem… - É, eu li quando já estava publicado, não podia fazer mais nada… Também não achei que fosse causar tanto descontentamento da sua parte.. Mas certamente não foi Humberto o responsável. A notinha chegou na redação e na pressa de fechar a edição, alguém jogou no meio das outras. Mas eu lhe garanto um retratamento ainda na edição de hoje!

E lá se foi Severino mais ou menos satisfeito enquanto Arlindo aguardava alguns segundos para desatar numa risada! Ele havia sido o autor do tal pensamento! Ainda rindo da situação, voltamos ao jornal para concluí-lo e foi lá que ele escreveu e saiu publicada a seguinte jóia de pedido de desculpas:

Nota da Redação - O Jornal O Gongo, tendo publicado na sua edição de ontem o pensamento “mais vale uma velha do que um balaio de brotos” atribuído ao nosso futuro jurista Severino Alves de Andrade, conhecido como Biu Bate-Bate, vem de público pedir desculpas ao atingido pelo tal pensamento de que “mais vale uma velha do que um balaio de brotos”, afirmando que nós não achamos que “mais vale uma velha do que um balaio de brotos” pois, mesmo que comungássemos com esse pensamento de que “mais vale uma velha do que um balaio de brotos”, jamais iríamos fazer a afirmação de que “mais vale uma velha do que um balaio de brotos” e atribuí-la a uma pessoa que não acha que “mais vale uma velha do que um balaio de brotos”. Assim, mais uma vez pedimos desculpas ao nosso amigo Biu Bate-Bate, garantindo-lhe que ele nunca mais será atingido por pensamentos iguais a esse de que “mais vale uma velha do que um balaio de brotos”.

Dia seguinte, mesma calçada, mesmo Ponto de Cem Reis, mesmas pessoas. Surge Biu com um semblante enigmático. Arlindo não lhe deu oportunidade de falar primeiro:

- Leu a nota? Pedi desculpas umas três vezes, para deixar bem claro que não estávamos de acordo com aquele negócio. Gostou? Pela sua reação agora, já sei que gostou! Mas não precisa agradecer nada! Fizemos a nossa obrigação! Torpedeado por tantas perguntas e afirmações, Biu ficou meio confuso mas ainda fez uma pequena reclamação:

- Eu achei meio repetitiva, meio insistente naquela frase. Não será que foi pior a emenda do que soneto? Tenho a impressão de que a nota só fez piorar a situação! E enigmaticamente retirou-se.

Os Horrores do Mundo

Clemente Rosas

Em matéria publicada no Jornal do Commercio, em 10.07.2006, Augusto Boal, o teatrólogo mundialmente conhecido, afirma: “Existe uma boa quantidade de textos teatrais que são feitos para anestesiar os espectadores, que são criados para que eles não tenham opinião.
Todo cidadão, todo artista, tem obrigação de fazer um mundo melhor do que esse, porque esse mundo está horrível. Quem não se posiciona politicamente está ficando ao lado dessa situação”.

Tais palavras soam como música e trazem alento a um coração cansado de acompanhar o rumo que vem seguindo, nos últimos tempos, as manifestações artísticas no Brasil. Tomo como objeto de comentário o caso específico das obras de ficção, nas modalidades da novela televisiva – esse folhetim moderno – e do romance.

Acabamos de assistir ao desfecho de uma dessas novelas que, contrariando o seu título, e por critérios éticos, mereceria o rótulo de hedionda. E não me refiro, absolutamente, aos “happy-ends” concebidos para duas duplas de homossexuais – masculina e feminina: devemos respeitar os direitos das minorias, e enquanto a ciência especula sobre as causas desse comportamento atípico de machos e fêmeas da espécie humana, há que tê-lo apenas como questão de escolha individual. Nada a ver com a moral social, única referência do autor deste artigo, que se declara, desde logo, não-religioso e avesso a preconceitos.

Desejo chamar a atenção para outros aspectos do folhetim, que nos brinda com a vitória final da mais perfeita das vilãs jamais imaginadas: aquela que abandona a filha, monta um plano diabólico para destruir a neta, tenta arruinar um antigo amante, rouba o parceiro da amiga, trucida, impiedosamente, os cúmplices. Uma personagem, aliás, de maldade completa, absoluta, incompatível com os marcos da realidade. Pois bem. A essa criatura teratológica está reservado um destino de conto de fadas: fuga tranqüila da polícia e exílio dourado em Paris, nos braços de um gigolô com idade de ser seu neto.

E já que falamos em gigolô, isso nos conduz ao segundo aspecto a ressaltar: a apologia da prostituição masculina. Atente-se: não se trata apenas de esforço de compreensão, tolerância ou leniência com o “amor pago a varejo”. Trata-se de exaltação, louvação, legitimação. Senão como entender a simpatia emprestada ao jovem rufião, a sua descontraída opção pela velhota que lhe oferece mais, abandonando a “coroa”, e o prêmio de consolação arranjado para esta, na pessoa de um novo garoto mercenário? E, neste caso, o novelista fez questão de ser explícito: o pagamento, pela matrona saciada, é feito em dinheiro vivo, na própria cama, ainda na lassidão feliz do pós-coito.

Se alguém argumentar que a atitude de vender o próprio corpo, fora de um contexto de miséria, não deve ser motivo de censura, e que devemos ensinar aos nossos filhos que o crime compensa, darei por encerrada a discussão. Não sendo assim, como espero, cumpro o dever de fazer-me voz dos perplexos e dos indignados.

Mas tal espécie de “indiferença moral” não se manifesta apenas no folhetim eletrônico, esse campeão da cultura de massas. É encontrável também na ficção mais seletiva dos romances. Dou como exemplo três livros de autores nordestinos: “As Dunas Vermelhas”, do potiguar Nei Leandro de Castro, “Concerto para Paixão e Desatino” e “Quando Alegre Partiste”, do paraibano Moacir Japiassu. Ambos os autores de excelente nível, mestres da sua linguagem, navegando bem nas águas do “romance histórico”: compondo a trama ficcional nos claros de um passado efetivo e fazendo conviver personagens verdadeiros com imaginários. Um gênero em moda, de muito apelo para a leitura.

O que constatei, no entanto? Embora situados em épocas de grande efervescência político-social, em que não faltaram exemplos de altruísmo, coragem e desprendimento – a revolução de 1930, a insurreição de 1935 e o movimento militar de 1964 – seus personagens são modelos de vícios: covardes, interesseiros, rapaces. Realismo? Nem tanto, penso com meu obstinado otimismo. Não somos assim tão torpes. Claro que não esperava encontrar apenas “heróis positivos”, mas também “heróis problemáticos” (categorias lukacsianas). Só que, na configuração destes últimos, que refletem, em suas debilidades, as contradições, as injustiças e os condicionamentos da sociedade, é preciso sentir a postura crítica do narrador. E, sem deslustre para os meus comentados, não percebi isso no que li.

Vejamos o caso dos bem sucedidos romances de Moacir Japiassu, meu brilhante conterrâneo. No primeiro deles, acima citado, que se passa na Paraíba da Aliança Liberal, o personagem mais simpático, um jovem filho de padre, dono de um assovio melodioso, com que acompanhava as missas do seu “padrinho”, faz sucesso como interrogador implacável de “perrepistas” presos, usando métodos nada convencionais. Depois, prático-farmacêutico, não vacila em envenenar um usineiro, por interesses materiais, a pretexto de medicá-lo. No segundo livro, ambientado no Rio da “Revolução Redentora”, um esquerdista vende a irmã menor de idade a um coronel do Exército, para escapar da cadeia, e, com o suicídio inesperado da garota, consola-se com um posto diplomático no Exterior, mantendo-se como auxiliar e cúmplice do algoz. Outro, caminhoneiro, ao dar fuga a um jornalista perseguido, para livrar-se de um incômodo “carona” direitista mata-o a cacetadas, e no afã de certificar-se da perfeição do “serviço”, enfia-lhe uma chave de fenda no ouvido.

Entendam-me bem: não se trata de negar ou esconder a crueldade e a vileza, que são parte da condição humana. O que me choca é abordá-las com neutralidade, com distanciamento, como se a maldade fosse algo a ser aceito conformadamente, e contra o qual não valesse a pena lutar.

Volto a Augusto Boal, para prestar-lhe homenagem, glosando a sua declaração com o registro de que o posicionamento político, por ele exigido para os intelectuais, implica também um compromisso ético. Ao lidar com esse conflito imemorável da natureza humana, a literatura de ficção pode espelhar vitórias episódicas do Mal, comuns e até freqüentes em nosso dia-a-dia. Mas nunca aceitá-las como inelutáveis, ou perder a perspectiva da vitória final do Bem, ainda que no plano da escatologia. Pois só assim a nossa vida “vale a pena e a dor de ser vivida”.

Clemente Rosas é consultor de empresas

N.R. Mais um amigo vem nos honrar com a sua presença.

Só Pode Ser Inveja...

Carlos Mello

Chamo essa minha amiga de Maga Patalógika porque ela percebe coisas que ninguém vê. Vou muito no que ela diz. Uma noite, no meio de um papo, olhou pra mim bem séria:

- O problema é que você provoca muita inveja.

- Eu?! É boa! De quê?

- Não sei. Mas provoca.

- Mas por quê?

- Sei lá, você é inteligente, fala bem.

- Grande coisa!

Voltei pra casa embrulhado naquela idéia. A noite estava fria, coisa tão rara no forno dessa cidade – o ônibus quase vazio, enrodilhei-me num banco. Tomara que ninguém venha sentar aqui, que não tenha nenhum assalto. Preciso pensar com calma nesse negócio de inveja. Poxa, mas inveja de mim?

Em casa, botei depressa o pijama, deitei, cobri-me, dobrei os joelhos agarrado ao travesseiro. Meu Deus! Então tem gente querendo ver minha caveira? Mas por quê? Que mal eu fiz, que mal posso fazer a quem quer que seja? Na minha cidade, quando a gente queria esculachar alguém, dizia: “É feio, pobre e mora longe”. E sempre outro acrescentava rindo: “E dança mal”. Puxa, eu correspondo a essa descrição, com a agravante de acrescentar “e é velho”. Como é que ainda consigo provocar inveja em alguém?

De manhã, olhei minha cara no espelho, os móveis a minha volta, as paredes descascadas do conjugado, a toalha de banho dependurada na cadeira. Me lembrei da estória que o profeta Natã contou ao rei Davi, antes de espinafrá-lo pela pisada na bola : “Havia dois homens numa cidade, um muito rico, outro muito pobre, que só tinha uma ovelha. O rico, para recepcionar um amigo, tomou a única ovelha do pobre e a preparou para o visitante.” Eu me sinto como esse pobrezinho, minha única e magra ovelha é essa coisa vaga e genérica: “ser inteligente e falar bem”. É isso que provoca inveja? Esses miseráveis querem me tomar até essa magra cordeirinha?

Preciso falar com a Maga! Devo doravante ficar calado, ou só falar sandices, como todo mundo? Para que não me invejem, não fiquem me secando? A Maga deve ter a solução pra isso.

É claro que o telefone está mudo. Bom, a porcaria do orelhão foi depredado de novo! Os idiotas, quebram o que pode ser útil a eles mesmos. Se ainda tivesse meu celular… Nunca vou esquecer o mulato com a arma apontada, os olhos injetados, eu sozinho no ônibus. A cobradora disse que não viu nada. Claro! Há um acordo de cavalheiros, você não me denuncia, eu não te assalto. Quantas vezes refiz essa cena, sempre com um desfecho diferente. O cara ia descendo, eu tinha uma arma escondida, mirava bem o cóccix, ele ficava paraplégico pro resto da vida. Ou então, eu vinha no ônibus, subia o mesmo cara de novo, não me reconhecia. Eu fingia uma pressa, descia, lá vinha um carro da polícia.

- Que foi que houve, Professor?

Era o Fofão, meu ex-aluno, lembrou logo de mim.

- Um cara me assaltou naquele ônibus.

- Agora?

- Não, faz tempo. Mas é ele, vai assaltar de novo. É um mulato, de bigode, com uma capanga jeans na cintura.

- Entra aqui, Mestre.

Era ele mesmo, jogaram o cara no camburão. O outro PM achou logo o três-oitão na capanga, junto com documentos e dinheiro.

- Que é que a gente faz agora, Mestre?

- Eu, por mim, esse cara não tinha mais licença de respirar.

- Deixa com a gente. Tem algum aí, pro colega?

Dei com gosto os 200 reais que tinha tirado pra comprar um sapato.

Faz tempo isso, foi no ano passado.

Diabos, preciso falar com a Maga. Esse negócio de inveja… Finalmente o telefone deu linha.

- Maga, sou eu. Posso ir até aí?

- Já te disse que pode vir a qualquer hora.

- E se você estiver com alguém?

- A gente faz a festa juntos.

Era assim minha doce amiga adivinhona. Cheguei, ela estava enrolada na toalha. Ia tomar banho. Fiquei olhando uma caixa de fotos que estava em cima da mesa.

Fotos dela, do tempo da faculdade, década de 70. Que gatinha linda, riponga, com aquelas roupas aciganadas, cabelão. Ou de biquíni, fazendo camping. Ou topless, deve ser na ilha do Mel. Ela acampava lá. E esse cara com ela, bonitão, forte, cabelo cacheado? Esse sim, é que devia provocar inveja, não eu!

Lá vem a Maga, molhada, enrolada na mesma toalha. Agora tem uma certa barriguinha, um pouco de celulite no bumbum, peitinhos meio caídos, cabelos grisalhos. Tempus fugit, nec revertitur. Mas ainda é bem gostosa a minha Maga!

Por que não caso com ela? Sei lá, não dá certo. Ela mora bem, pelo menos bem melhor que eu, apê próprio, dois quartos, linda vista, boa clientela, prestígio no mundo psi.

Abraçou-me pela cintura, me deu uma força:

- Não é possível que um cara inteligente como você…

Esse comentário sempre me provoca uma esperança, mas daquela que já vem cansada. O que é que “um cara inteligente como eu” pode fazer? Eu não sei ganhar dinheiro, não tenho saco nem talento pra isso. “Quem nasceu pra dez réis, não chega a vintém…”, dizia minha mãe dos fracassados que não eram da família. Premonição, falava de mim, e eu não sabia.

Mas a Maga não acredita nessa profecia, acha que é auto-sabotagem.

- Por que você não encara um divã?

- Acredito lá em psicanálise! Tantos anos de tratamento, para ficar ainda mais desanimado e confuso. Só se eu for num terreiro…

- Pois vá! Qualquer coisa pra quebrar esse videoteipe que você passa sem parar na sua cabeça.

- Grande Maga! Você é que é minha analista.

E fomos pra cama. Dessa vez não foi como das outras, em que a gente transava de porre. Olhei bem pra cara dela, seus olhinhos de cobra, seu sorriso. Achei uma gracinha suas rugas, sua flacidez. Acho que ficamos mais de uma hora só nas chamadas carícias mútuas. Saí de lá tarde da noite, ela ficou dormindo quietinha. Mal cheguei em casa, tocou o telefone, era ela.

- Pô, cara, por que você foi embora? Tava tão bom! Foi maravilhoso, você me liga demais, parece que adivinha meus pensamentos!

- Que bom que você gostou.

- Muito. Não quer vir dormir aqui?

- Não, já é tarde, estou caindo de sono. Sábado à noite passo aí.

- Tchau, bejinho.

No sábado à noite, a coisa mudou. Pra começar, tinha um cara com ela, acho que um antigo namorado, iam jantar na Barra. Nada de festa junta, nem perguntaram, se eu queria ir. E já saíram de mãos dadas.

Caramba, que sábado! Para onde vou, a essa hora? Sem carro, com pouca grana. É por isso que muito nego pira, vai ser frade, monge. Esse mundo é um vale de lágrimas. Já sei, vou pra casa, tomo logo uns dois ou três comprimidos e durmo. Dito e feito. Acordei no dia seguinte às 11 horas da manhã, com o telefone. Era ela.

- Ôi, gatão, e aí? Que fez ontem à noite?

- Eu? Nada.

- Por que não quis ir com a gente?

Era de abilolar! Como, se nem me chamaram? Que cara de pau! Mas pelo menos isso aprendi com ela: o bom cabrito não berra.

- Eu já tinha compromisso, passei só pra te ver. E vocês, divertiram-se muito?

- Fomos dançar, tomamos um monte de chope. Acabei nem jantando. Tô até com um pouco de dor de cabeça.

- Que pena!

- Pena? Por quê?

- Porque eu ia te propor a gente sair, ir a um cinema.

- Não, cara, não tô a fim. Vem pra cá. A gente prepara um rango, descansa, à noite pode-se jogar um buraquinho, tomar uma cerva. Quer?

- Tá legal, chego já aí.

Tomei banho às pressas me arrumei o melhor que pude e saí ventando. Agora, caiu a ficha! Essa é a minha Maga, gostosa, cheirosa, linda e que me quer bem. Vai ver que o tal ex-namorado bateu fofo. E aqui vai o “presta-pra-nada”, o “pobre-feio-e-mora longe”. Nem Napoleão Bonaparte, nos seus melhores dias, ia mais ovante do que eu.

No prédio dela tinha uns moradores conversando com o porteiro. Não responderam ao meu boa-noite e ainda me olharam feio. Pensei com os botões do meu casaco:

- Só pode ser inveja…

Respeitosa Consideração

Luiz Gonzaga Lopes

Hoje, Cabeleira fecha os olhos para reavivar o passado, cruza os dedos e jura que a estória é verdadeira:

- Eu conheci os dois muito bem - diz ele. Tanto o Juiz quanto Seu Gerôncio, o motorista do misto.

O Dr. Veiga era um cinqüentão solteiro, muito ponderado e cioso de sua condição de magistrado. Culto, poliglota (falava latim e alemão), apreciava as artes em todas as manifestações, tinha como passatempo dedilhar um cravo adquirido na Itália.

Já Seu Gerôncio se distinguia pela grandeza de coração e pela sinceridade do falar, o vozeirão sempre nas alturas. Embora fosse grosso em seus modos, todo mundo o estimava. Das coisas que ele gostava, uma era carregar gente importante da boléia de seu veículo. Já tivera muitos passageiros ilustres: o Vigário de São José da Lagoa Tapada, o Delegado de Princesa, O Médico de Arvoredo, o Farmacêutico de Queimada, o Bispo de Missões, o Prefeito de Cabaceira.

Agora, estava outra vez de grande: ao lado dele, ombro a ombro, viajava, compenetrado, o Juiz de Direito de Jaçanã, Doutor Solidônio de Assunção e Veiga. No banco de trás, a testemunha ocular desta estória, Cabeleira (na época com seis anos de idade), que nada deixava escapar, dentro ou fora do misto.

Finda a viagem, Seu Gerôncio desmanchou-se em atenções para com o magistrado. Subiu ao mais alto da carga, arriou os pertences do meritíssimo:

- Taqui, seu Juiz, seus teréns. Tá tudo dentro da mala.

- Obrigado, Seu Gerôncio. Agora desejo pagar a passagem. Quanto devo?

- Deve nada não, Doutor. Eu que agradeço pelo senhor ter viajado comigo.

- Absolutamente, Seu Gerôncio. Sei que o senhor vive desse caminhão, portanto, faço questão de pagar. Para pôr fim à insistência do magistrado, Seu Gerôncio, tentando ser agradável, encerrou o assunto:

- Ta conversando merda, Doutor. Vou lá cobrar dum homem como o senhor!

Crônica - O ESQUECIMENTO DO MINISTRO

Riobaldo Tatarana

Nomeado ministro da Cultura, no governo João Figueiredo, Eduardo Portela iniciou sua primeira coletiva com essa boutade: “Eu não sou ministro; eu estou ministro”. Todo mundo gabou muito a frase de Sua Excelência, que assim expressava, de modo sucinto e elegante, quão efêmeras são as glórias humanas, e quanta distância há entre a permanência de ser e a impermanência de estar. Mais ainda, aludia de modo indireto à inexorável força dessa mão de bronze que, do nosso âmago, muitas vezes nos coloca em posições que não correspondem àquelas que apeteceriam ao lado, digamos, mais epidérmico de nós mesmos. Guimarães Rosa tem essa reflexão: “O mais-fundo de mim mesmo não tem pena de mim; e o mais fundo de meus pensamentos nem entende as minhas palavras”. Antes dele, já Fernando Pessoa queixava-se: “Há entre quem sou e estou/ Uma diferença de verbo/ Que corresponde à realidade.”

A frase brilhou como uma pequena jóia da inteligência ministerial e ficou para sempre na mente dos políticos, que não dispondo da facúndia portelense, toda hora recorrem à mesma tirada espirituosa, fazendo-a anteceder do nome do autor. Nosso vice-presidente, quando foi nomeado ministro da Defesa, saiu-se com essa: “Como disse o Professor, eu não sou ministro, eu estou ministro”. E a mídia repete a frase, faz ecoar por todos os cantos do país o dito sutil, reavivando assim na memória do povo a destreza verbal do mestre, que além de tudo goza da imortalidade conferida pela ABL. Tudo muito bem. O problema é que o então recente ministro, talvez pela emoção da posse, esqueceu-se de lembrar que a frase não é sua, mas de Machado de Assis, que a formula em mais de uma passagem. Fiquemos apenas com essa, que inicia o capítulo CLXXIII do romance Quincas Borba:

- Com que, o Teófilo está ministro! Exclamou Carlos Maria.

E, depois de um instante:

- Creio que dará um bom ministro. Você queria ver-me também ministro?

Esquecer de citar o autor é fato corriqueiro em nosso país, e creio que em nosso mundo. Só que o ministro, ao aproveitar-se da pouca leitura dos seus entrevistadores e dos seus pares, embolsou espertalhonamente a glória do outro, e até hoje dorme placidamente sobre os louros machadianos. Deixá-lo dormir. Não faz mal a ninguém e deixa feliz nosso tão querido imortal. Somente, a bem da verdade, intrometi-me a fazer essa pequena correção. Já outras vezes tentara, através dos jornais cariocas. Mas, talvez por receio de magoar o professor, todos recusaram esse esclarecimento, que aí vai, no meio de tanta coisa mais interessante para ler.

Poeta no Blog:

Poeta no Blog:

Trata-se de Luis Gonzaga Lopes, escritor de grande talento, poeta inspiradíssimo, Campinense de boa cepa. Seja bem vindo meu caro Lula, conterrâneo velho de guerra.


Recepção

A porta abriu-se

Sorrindo,

ela disse:

Entra.

O vento antecipou-se,

E a cortina balançou

Em ritmo de festa

Recuerdo 09 - New York, New York

Hugo Caldas

A impressão que me causou New York, quando lá cheguei pela primeira vez, foi bastante diversa daquela que tive ao chegar às duas da manhã em São Paulo, nos anos sessenta. Aqui houve realmente um impacto. Aquele “formigueiro” nas ruas, todas aquelas pessoas, aquelas luzes, um festival de gás-neon, mais parecendo a luz do dia. New York foi assim como conhecer o Rio de Janeiro. Você apenas constata, confirma os lugares já conhecidos, por força do cinema, fotografias, cartões-postais, etc. Por esta razão não segui a trilha de todo turista deslumbrado. Até porque eu estava na cidade a trabalho. Não visitei a Estatua da Liberdade, por exemplo. Aliás, devo dizer que a Avenida Madison guarda uma certa semelhança com a Getulio Vargas, no Rio. “Não vejo nada de mais em New York”: pensava, ao sairmos do aeroporto, mal sabendo o que me esperava mais adiante.

Repentinamente a paisagem vai mudando e começa a aparecer algo semelhante a um cenário de filme musical. Arquitetura bastante familiar apresentava uns tantos prédios de três andares, largos, com uma pequena escadaria de três ou quatro degraus ao centro. Chovia torrencialmente, talvez para dar mais emoção ao momento que eu estava vivendo. Não via a hora surgir, de repente, por trás de uma esquina qualquer, o Gene Kelly com guarda-chuva e tudo, dançando e cantando na chuva. Só saí do transe quando o taxista advertiu que aquela redondeza era barra pesada e que deveríamos seguir, pois logo estaríamos na Broadway. Para encurtar a história, a viagem de táxi demorou mais de uma hora. Pedi ao “driver,” que a essas alturas já era meu amigo de infância, para seguir bem devagar a fim de que eu pudesse degustar, como um bom vinho, aquele momento mágico.

As luzes da Broadway. Times Square. Cinemas, Teatros, Anúncios: o do cigarro Camel, com o fumante expelindo rodinhas de fumaça, me era bastante familiar, o da Coca-Cola, letreiros luminosos com as notícias do dia, correndo em volta do edifício do The New York Times. Estava na capital do mundo. E tudo isso com os acordes de “Manhattan” na cabeça. Tocado ao piano por Eddy Duchin.

“Reserve já sua 2ªfeira para um delicioso show imagine com quem? Woody Allen toca com a Eddy Davis New Orleans Jazz Band em um pequeno espaço só para 90 privilegiados a US$ 85 o couvert num dos hotéis mais chiques do East Side. Melhor reservar já… de 9 de Outubro à 14 de Novembro…..”

Era o que dizia um cartaz no hall do hotel onde ficara hospedado. Na década de oitenta ele tocava clarineta toda segunda-feira no Michael’s Pub. Decidi, morrer nos US$ 85. Afinal era o Woody Allen. O que não teria eu para contar aos meus netos! Que eu fizera parte de um grupo de apenas 90 privilegiados. A 85$ por cabeça, é claro.
Cheguei ao Michael’s Pub ardendo de excitação. Mas muito cedo para o espetáculo. Não havia jantado, resolvi então comer alguma coisa no Anexo ao Pub que estava pra lá de lotado. Decidimos, - estava acompanhado pelo meu grupo de trabalho - então irmos ao bar enquanto desocupava uma mesa. Foi então que coisas curiosas começaram a acontecer.

O Maitre, um velhote simpático, não tirava os olhos de mim. De maneira bastante descarada, acintosa. O pessoal já estava tirando o maior sarro da minha cara quando ao final do jantar ele veio pessoalmente trazer a conta e disse no mais perfeito português: “o jantar estava a seu gosto?” E olhando diretamente para mim:

“Você não é o sobrinho do Dr. João Bernardino, que possuía uma motocicleta ”Indian”, vermelha, e andava com você na garupa pra cima e pra baixo em João Pessoa?” Empalideci.

Pois é, “cansei de servir uma cerveja para o Dr. Bernardino e uma gasosa para você. Fui garçom do Lido, aquele restaurante junto da sede do Clube Cabo Branco, na Rua Direita. Você não mudou quase nada”.

Terminei não indo assistir ao Woody Allen (economizei 85$) para ficarmos conversando e bebericando com João Brasileiro, enquanto ele contava a sua vida de aventuras. Resumindo, em remotas eras, deixara ele o porto de Cabedelo em um navio cargueiro, indo dar com os costados na Holanda onde casou, abriu um restaurante brasileiro, e viveu por mais de vinte anos. Nunca voltou à Paraíba. Trabalhava agora como maitre porque gostava e não por necessidade. Já estava aposentado havia muito tempo.

Nos despedimos com um abraço forte e na minha cabeça ficara apenas uma indagação: como explicar o detalhe de que ao tempo descrito por João eu tinha oito ou nove anos de idade?

Dia seguinte visitei o Central Park com todo aquele verde e um belíssimo lago. É certo que não existia lá longe, na outra margem, o “sertãozinho de Caxangá com seus banheiros de palha. Muito menos a moça nuinha no banho, mas New York foi um alumbramento”.

Recuerdo 08 - EX QUASE FUTURO MINISTRO

Hugo Caldas

Corria o ano da graça de 1973. Lembro bem, eram os “anos de chumbo” do General Médici. Iniciava uma nova fase na minha vida profissional, morando na cidade do Recife, e implantava uma escola de inglês. A comunistada, todos meus amigos, perguntava o por que das aulas de inglês e eu argumentava em tom de blague que, era para que todos pudessem saudar, bandeirinhas americanas agitadas, os marines chegando pela 7ª Frota, que diziam estar perto de Fernando de Noronha.

Na época era comum dar guarida aos perseguidos da ditadura. Quase todos os nossos amigos estavam correndo dos feitores do general de plantão. Nada mais natural, do que prestar solidariedade, a pessoas de quem você nunca antes ouvira falar. Essa era a nossa maneira de “estar contra”.

Um belo dia me aparece um sujeito largadão todo. Era amigo do amigo da tia de outro amigo, meio “contra-parente-da-sogra-que-eu-nunca-tive”. Vinha do sul, trazia credenciais de um amigo querido. Abri a minha casa. Dizia ele precisar fazer dinheiro, pois estava a caminho do Araguaia. E apregoava isso na maior. Sem um mínimo de cuidado. Cabeça muito louca. Trazia alguns objetos para negociar e fizemos então uma transação com uma máquina de filmar em Super 8, Cannon - 1014 que era o meu sonho de consumo. Mas eis que o fulano cismou de me recrutar para a guerrilha. Argumentava ele que, se agora já dispunha da máquina de filmar, eu deveria ir, pois me tornaria o fotógrafo do movimento. “Iria documentar a história”.
O que me fez duvidar um pouco da sanidade mental do incipiente revolucionário residia no fato de que, antes de ir pros matos, sem nunca ter pelo menos olhado para uma arma, eu teria que importar do Rio Grande do Sul, um mimeógrafo. Peça por peça.

A cada 15 dias um mensageiro do Partido aportaria no Recife trazendo uma parte da geringonça. Perguntei, na minha santa ignorância, se não seria mais prático comprar um mimeógrafo aqui mesmo… Ah, pra que! O futuro guerrilheiro argumentou de mil e uma maneiras, olhos esbugalhados, botando fogo pelas ventas, pra dizer ao final, que o “coletivo” não sei das quantas, já havia decidido que era pra trazer a preciosa ferramenta pra cá e pronto. O sujeito me parecia viver um clima de cristão das catacumbas. Ou talvez quem sabe, ele e o pessoal do tal “coletivo” estivessem lendo muita revista em quadrinhos. Claro que argumentei também, o quanto pude e não fui pro Araguaia. Estava casado, pai de dois filhos ainda pequenos. Nova escola sendo implantada. Família a sustentar.

Hoje, muitos anos passados, recordo o caso. E se eu tivesse ido? E se, além de “documentar a história” eu tivesse me dado bem? Quem sabe, poderia até ter escapado com vida da lista infame de um tal companheiro G. e do implacável coronel que o tinha prisioneiro…
Com as voltas que o mundo dá… Se eu tivesse me filiado ao Partido dos Trabalhadores… Feito carreira… Até ser finalmente considerado “companheiro de armas” pelo camarada D! Hein?! Já pensaram nisso?

Quem sabe, eu talvez até chegasse a ser Ministro. Estou pensando nisso tudo agora, após tanto tempo, eu tenho a certeza mais absoluta de que eles ainda estão lendo revistas em quadrinhos. Ou então não despiram o uniforme camuflado da malfadada guerrilha do Araguaia. Do maluquete a quem dei guarida e a quem comprei a filmadora nunca mais tive notícias.

É claro, Pati.

Saibam todos que este Blog estará sempre à disposição dos amigos para todo e qualquer tipo de colaboração, participação, etc, dêm o nome adequado. A primeira colaboração, por sinal, vem de um amigo muito querido. Há muitos anos vivendo no Sul Maravilha, Carlos Cordeiro de Mello está entre os dez melhores contistas de Pedra de Guaratiba. H.C.

Carlos Mello

Separar da mulher perto de completar trinta anos de casamento é uma loucura. Fiz tudo para evitar esse desfecho, até entender que ela não queria mais, de jeito nenhum. Cansou de tudo, da minha eterna instabilidade, das minhas piadas, do meu nariz e provavelmente do meu ronco noturno. Nos primeiros dias, que pareceram meses, fiquei em estado de catatonia profunda, a andar de um lado pra outro dentro de minha casa – doravante tinha de chamar de “minha casa” o quarto-e-sala que aluguei às pressas no Humaitá, no último andar de um espigão de elevadores rangentes. Fiquei lerdo, deixei crescer a barba, as unhas, o cabelo. Cada vez que olhava para o telefone, meu coração dava pinotes, na esperança de um telefonema de reconciliação. Outras vezes ficava a imaginar: de repente tocam a campainha, vou ver, é minha mulher, meus filhos, com uma garrafa de champanhe, vieram me buscar, vamos comemorar os 30 anos de casamento! Mas telefone e campainha permaneceram mudos.

Nesses transes da vida, o melhor remédio é o tempo, ou, melhor dizendo, a certeza de que o tempo vai comendo a vida até que um dia a gente rebenta e acaba tudo. A não ser que se volte, noutra encarnação, mas sem memória passada, para cometer os mesmos enganos, levar as mesmas sarrafadas. Ou vá para o céu, ou o inferno, ou o purgatório, qualquer coisa era melhor do que aquele estado de prostração absoluta, entremeado de momentos de desespero. Um dia, decidi: não posso ficar eternamente assim, vou dar um jeito na vida. Fui à janela, olhei para baixo: e se eu pulasse? Não ficava tudo resolvido? Nesse instante um carro amarelo ia saindo do estacionamento, lembrei da Jaquita, velha amiga de tantos anos, que tinha um carro daquela cor. Ela ficou surpresa com meu telefonema, ainda mais com o divórcio. “Passo por aí, vamos conversar”. Chegou e foi logo dizendo: “Você está muito feio, vá tomar banho, vamos sair”.

Se há, entre os meus improváveis leitores, algum infeliz que se encontre em situação análoga, aconselho-o a recorrer a uma velha amiga que não vê há muito tempo. É um remédio santo. As mulheres são piedosas, prestimosas e adoram dar ordens a homens deprimidos. Fomos a um shopping, ela me empurrou para os braços de um cabeleireiro, saí tinindo. Dali fomos a uma loja, e mais outra e outra ainda, já estava com umas cinco sacolas de compra, o cartão de crédito estourado e vários pré-datados nas mãos dos lojistas. Voltamos para casa, ela arrumou tudo, preparou uma pizza, abriu uma cerveja, acabei enlaçado em seus braços, era o mínimo que podia fazer, pôxa! Quando acordei, ela tinha ido embora. E com ela foi-se a tristeza, resolvi assumir minha nova condição, totalmente destreinado e fora de forma para o mundo dos solteiros.

Precisava de companhia para sair, é claro. Mas todos os meus amigos estavam casados, suas mulheres me olhavam desconfiadas, eram amigas da minha ex-mulher, descartei logo essa hipótese. Um estagiário do escritório convidou-me para uma happy hour na sexta-feira. Foi horrível! Não consegui acompanhar o ritmo das pessoas, todas me pareceram frenéticas, ansiosas. Fiquei tonto com a bebida e a fumaça de cigarro, o rapaz enturmou-se com uma gordota, queriam arrastar-me a outro bar. Voltei para casa. O desespero estava me esperando, o safado, pegou-me pelos cabelos, tive de tomar uma bola para dormir. Fui despertado pelo telefone, era a Jaquita, queria me apresentar a uns amigos, papo cabeça, gente da minha geração, íamos almoçar numa praia de Niterói, depois metia-se um cinema. Você é uma santa, Jaquita! Que Deus lhe pague!

Essa turma sim, gente culta, educada. Mas não tinha ninguém para mim. Dois casais, a filha de um deles, chamada Pati, e a Jaquita. Pensei: é necessário ser novamente grato a Jaquita, mas até quando? No cinema, sentei ao lado da Pati, comi um pouco da pipoca dela e adormeci profundamente. Todo mundo riu muito do meu sono, fomos tomar café. A Pati formou-se em psicologia, quis saber se eu podia emprestar-lhe um livro do Freud. “É claro, Pati, mando pela Jaquita” Senti que ela não gostou. Seriam inimigas? Pediu meu telefone, eu escrevi num pedaço de papel e esqueci o assunto. Daí a uns dias ela me ligou, perguntou se podia passar para pegar o livro. “É claro, Pati, até hoje se quiser”. Passou no outro dia com o namorado, um magrelo altão e com jeito de bicha. Pegaram o livro e se foram.

Na sexta-feira seguinte, assim que entrei em casa, o telefone tocou, era ela. Queria convidar-me para ir ao teatro, aceitei. O chato do namorado não estava, tinham terminado. Menos mal. Na saída, encontramos uns amigos dela, saímos para tomar chope. Eu parecia um velho patriarca, cercado pelos filhos. Seria de esperar que pagasse a conta como forma de remunerar aqueles jovens por me terem concedido sua companhia? Nada disso, cada um pagou a sua. Mas não iam separar-se, a noite mal começara. Disfarcei um bocejo, diabo de sono, vou tomar um café para acompanhar esse pique. Fomos para uma espécie de boate ao ar livre, na Lapa, tive a impressão de estar em outra cidade. Como tudo muda aqui, literalmente da noite para o dia! Não sabia que nesse lugar decadente, por onde passei tantas vezes de dia, apressado e temeroso, havia essa festa à noite. Fomos a outros bares, bebericando, conversando, ouvindo música. E nessas idas e vindas, pela rua, de repente me vi de mãos dadas com a Pati.

O dia amanheceu, resolveram ir tomar café em um hotel próximo, lá fomos nós. No banheiro, fiquei horrorizado com minha cara macilenta, os cabelos mal penteados, um ar envelhecido. A Pati e os amigos pareciam ter acabado de acordar, cheios de vida, sem uma ruga, um bocejo. Achei melhor ir embora. A Pati não gostou, falou que não precisava de carona, os amigos iam levá-la.

- Você deve estar cansado, a gente ainda vai zanzar por aí.

“Por que não morro logo de uma vez?”, amarguei no caminho para casa. Suprema humilhação, achei que tinha entrosado com eles, levo um balde de água gelada na cara. “Você deve estar cansado”. Podia ter acrescentado “velho como é”. Bem, eles são jovens mas um pouco tolos, falam e riem ao mesmo tempo, parece que estão sempre querendo gozar alguém. Mereço companhia melhor. Ah, malditas uvas verdes…

Palavras que consolam, nunca consolam ninguém. A verdade é que eu estava só, irremediavelmente só. O pessoal da minha idade ou está casado ou é muito chato. Os jovens não precisam de mim. Voltei a acalentar a idéia da morte chegando de mansinho, levando-me pelos ares. Foi toda uma semana de tristeza, solidão e televisão, esse bendito invento que concede uma espécie de fuga de segunda mão aos solitários. Estou no fim. Sábado de manhã, resolvi ir à feira, perto de casa. Já na porta, voltei para atender ao telefone. Era a Pati:

- Ôi, sumido! Ficou chateado com a gente? Meus amigos gostaram muito de você. Por que não me telefonou? Não tem meu número?

- Andei muito ocupado essa semana. Como vão seus pais?

- Ótimos. O que você vai fazer?

- Hoje à noite?

- Não, agora.

- Agora estava saindo para ir à feira. Por quê?

- Adoro feira, posso ir com você?

- É claro, Pati.

-Então passo já por aí, estou perto de sua casa.

Corri ao banheiro, lavei o rosto, escovei os dentes, penteei o cabelo. Estava acabando de trocar de roupa quando ela chegou. Linda, de jeans, camisão de homem, cabelos presos. Fomos à feira, ela comprou um monte de legumes, ia me ensinar a preparar um suflê. Passamos na padaria, comprei pão, duas bombas de chocolate, uma garrafa de vinho.

- É melhor levar duas, eu bebo direitinho.

Peguei mais uma, lá fomos nós. Ela fuçou as estantes, separou mais alguns livros.

- Posso olhar seu armário?

- Claro, Pati, sinta-se em casa.

- Que camisa linda, quem te deu?

A pergunta era engraçada. Fazia supor que eu fosse incapaz de comprar uma roupa bonita. Ia dizendo “Foi minha mulher”, mas emendei:

- Foi a Jaquita. Quer dizer, foi ela que escolheu.

- É bonita. Posso experimentar?

- Claro, Pati.

Ela despiu o camisão sem qualquer cerimônia, vestiu minha camisa. Ficou linda, qualquer coisa fica linda nela. Disse-lhe isso, com a voz a tremer. Ela fez menção de tirar, não deixei.

- É sua. Faço questão.

- Obrigada.

E meu deu um beijo.

Quem sou eu? Um velho depravado que se aproveita de mocinhas? Um velho solitário, a quem de repente foi dada a graça de uma namorada jovem? Um velho sonhador e romântico, que cuida haver conquistado um coração irrequieto como o da Pati? Um velho bobo, que qualquer garota pode levar na conversa e cardar à vontade? Eu continuo saindo com ela e os amigos, pago a maior parte das contas, dou-lhe presentes. Um dia falei na Jaquita, ela cortou curto:

- Não sei se você já transou com ela, não me interessa. Mas não quero que telefone para essa mulher.

- Por quê? Não gosta dela? É apenas uma velha amiga.

- Velha amiga, eu sei… Pois não quero! Tenho ciúme, sim. E daí? Não quero, e pronto.

O tempora, o mores, como diria o velho e caturra Cícero. Noutros tempos, uma cena de ciúmes como essa me levaria ao paroxismo. Algumas vezes tive ganas de bater na minha mulher, sobretudo quando o ciúme era de umas coroas horrorosas, uns dragões que andaram cruzando meu caminho. Isso era uma bofetada em meu amor-próprio. Mas agora, que suave gozo, que terna alegria! Tinha vontade de beijar os pés da Pati. Com ciúmes do velho, ora vejam só! Ela continuava olhando para mim, intimativa. Eu abracei-a por trás, abri os botões de sua camisa, acariciei-a, beijei-lhe a nuca. E murmurei, aboborado de gozo:

- É claro, Pati.

Recuerdo 07 - PERIGOSO AGITADOR ARGENTINO PRESO NO RECIFE

Hugo Caldas

Testemunha da intolerância reinante foi a cidade do Recife, nos idos de 1967.

Voltava de Natal, para onde fora, temporariamente transferido, a fim de desenvolver um projeto na Base Aérea do Parnamirim. O grande desafio consistia em fazer com que as tripulações dos trinta B-26, aviões de transporte e bombardeio, falassem inglês em três meses, já que as aeronaves seguiriam para Houston, Texas, a fim de serem recondicionadas. De Belém para cima a comunicação com as torres de controle dos diversos aeroportos e bases aéreas, somente se daria no idioma britânico. O Tio Sam, que havia doado os brinquedinhos ao final da Segunda Guerra, agora os queria de volta. Descobriram que eram o equipamento ideal para as condições de combate no Vietnam. Ofereciam em troca, aviões mais modernos, porém o Brasil não aceitou a barganha e decidiu pela continuação das provectas aeronaves em serviço. Projeto terminado a contento. Três meses de trabalho, ao mesmo tempo em que fiz grandes amigos. Amizades essas, que não foram de muita valia, como se verá mais adiante.

Voltei para o Recife como membro honorário do 5º Grupo de Aviação, com direito a bastão de comando e tudo. Retomei minhas atividades de rotina ao mesmo tempo em que os Deuses do Teatro me proporcionaram a concretização de um velho sonho. Subir ao palco como profissional. Por obra e graça de Rubens Teixeira, me integrei ao elenco do Teatro Popular do Nordeste – TPN, então sob a direção da pessoa notabilíssima de Hermilo Borba Filho. Decidiu-se um dia que o espetáculo em cartaz deveria viajar pelo Norte-Nordeste e, me ofereci para conseguir, mercê a minha condição de membro do 5º GAV, umas passagens de avião pela FAB. Para que, Terezinha…!

Tudo seguia seu rumo normal. Tinha por colega na escola de inglês onde lecionava, o filho de um coronel da Força Aérea que se prontificou a dar uma ajuda. Combinamos um encontro no aeroporto, e no dia aprazado, em meio a movimento atípico para um início de semana, as "autoridades competentes" estavam entronizando uma placa comemorativa ao famoso atentado ali perpetrado, exatamente um ano antes. Solenidade com banda de música, discursos patrióticos e tudo. Subitamente os acordes do Hino Nacional se fizeram ouvir. Me levantei, mecanicamente, não sendo seguido, entretanto, no meu gesto, pelo colega que me acompanhava, Silvio Branco, que terminantemente recusava-se a se levantar da cadeira.

Como era esperado, não conseguimos falar com o tal coronel devido ao bafafá instaurado ao final da cerimônia. Ao deixarmos o ônibus na Avenida Conselheiro Aguiar, uma caminhonete Alvorada freia espalhafatosamente, quase em cima de nós dois, de onde saltaram dois brutamontes, que aos berros, apontavam metralhadoras em nossa direção. Nos rebocaram para dentro do veículo e nos mandaram calar a boca e deitar no chão do carro. Fomos levados à Secretaria de Segurança na Rua da Aurora. Ficamos mofando e peregrinando de sala em sala. Ninguém explicava nada. De vez em quando, algum tira chegava até onde estávamos e nos olhava de alto a baixo. Terrorismo. Mais de uma hora depois, alguém apareceu dizendo: "é pra levar os presos pro 4º exército." Na entrada do quartel a surpresa: nos recebeu um major que descobri ser meu aluno. Ele foi logo se desculpando, "professor, já testemunhei junto ao coronel da sua condição de meu professor de inglês, e em confiança testemunhei também pelo rapaz que o acompanha, mas ele cismou que os senhores são dois perigosos agitadores argentinos, e infelizmente terão que se entrevistar com o comandante".

O general nos recebeu em pé no meio da sala do seu escritório, o que automaticamente nos forçava, a não sentar. Parecia absolutamente transtornado, olhos inchados, possesso, lembrava um personagem de Nelson Rodrigues. O homem chegava a cuspir na nossa cara de tanto gritar, "fale, infeliz, eu quero ver o seu sotaque – eu fui para a guerra". Silvio, também transtornado, rebatia, "foi pra guerra, azar o seu!" Recomeçou então, a peregrinação de sala em sala até ficarmos em total isolamento. Das 11 da manhã até depois da meia noite. Sem telefone e sem o direito de avisar à família, advogado, trabalho. Ninguém poderia saber onde estávamos. Da mesma maneira que nos prenderam, nos soltaram às duas da madrugada. Descobri tempos depois que talvez a razão de tudo estivesse por conta do discurso de D. Helder ao receber o título de cidadão pernambucano, outorgado no dia anterior pela Assembléia Legislativa. O general precisava de um bode expiatório. Passei um bom tempo na maior neura, imaginando que a toda hora estava sendo seguido. O Sílvio, apesar de moderado passou-se de vez para o outro lado. Meses depois assisti a sua prisão defronte do prédio dos Correios. Vi quando foi retirado pelos esbirros da polícia, de cima de uma caminhonete, megafone na mão, concitando uma greve de estudantes. A revolução ganhara mais um inimigo, gratuitamente. Soube depois que teria se envolvido com a luta armada. Nunca mais o vi nem cheguei a ter noticias do meu jovem companheiro "agitador argentino". Durante a ditadura todos nós tivemos a nossa parcela de envolvimento. A nossa quota de perseguição. Muitos caíram, morreram. Muitos foram presos e torturados. Uns mais outros menos. Nesses tempos atuais, lembro o Deputado Gabeira: “foi para isso, foi para chegarmos a essa situação deprimente e vergonhosa, que todos nós rolamos tantos barrancos…?"

Recuerdo 06 - MEU TIPO INESQUECÍVEL

Hugo Caldas

Dentre as pessoas com quem trabalhei na Panair do Brasil destaco a figura exemplar e única de Jorge Paraíso. Criatura difícil de qualquer descrição. Não era gordo nem magro. Rosto cheio, mas afilado, ostentava um ralo bigodinho sob o nariz aquilino, pele rosada quase vermelha, cabelo ralo, modelo mal-com-Deus. Uma figura. Chamava todo mundo de “colega”. Até os seus supervisores imediatos eram merecedores da maneira amistosa e singular usada por Jorge. Tinha, no entanto, uma predileção especial para com o Jogo do Bicho. Raro era o dia em que não jogava e ganhava. Ganhava pouco é claro, pois jogava pouco, devido a inúmeras obrigações. Falava um inglês péssimo razão pela qual havia sido destacado para o setor de despacho de cargas. Mesmo assim, foi convidado a deixar a Panair para trabalhar com a BOAC, empresa britânica que à época operava no Recife. O que ninguém nunca conseguiu saber é como ele e o gringo, que não falava uma gota de português, conseguiam se entender. Mr. Charles Booher, ostentava bigodes retorcidos à Alec Guiness e fumava um cachimbo daqueles com chapéu. Era desses ingleses da gema que param tudo que estão fazendo às cinco da tarde para uma xícara de chá. Jorge cultivava também uma proeminente barriga, fato que se agravava quando algum botão da camisa pulava fora, literalmente. Ficava aquela coisa mal arranjada, horrível de se ver, deselegante todo. Mas ele não estava nem aí. Várias vezes ouvi o gringo falar com o melhor do seu sotaque, em tom de censura, “George, my dear, could you manage to look a bit more respectable?” Houve um tempo em que o aeroporto ficou interditado para aviões de grande porte e a BOAC se mudou temporariamente para Natal. E lá se foi Jorge. Fez muito dinheiro, recebia em dólares, pois estava fora da base. Jogou a maior parte fora, na famosa fezinha diária. Estava compromissado e a noiva arranjou uma maneira de casar logo e se mandar para Natal a fim de segurar o dinheiro. Foi por essa época que ele melhorou de vida e chegou a comprar uma pequena casa em Recife. Com a derrocada da Panair nossos caminhos se separaram e nunca mais o vi. Somente vim a saber de Jorge pouco depois da sua passagem para o andar de cima, no interior do Paraná. O que ele fazia por lá, não tenho a menor idéia. “Colega, cuida dessas bagagens aí, troca àqueles pacotes de lugar, faz qualquer coisa, que o tal sujeitinho falso está te cubando”, disse-me ele um dia, alertando sobre um tipo que vivia querendo derrubar todo mundo. Certa tarde convidei-o para um chopinho no Savoy. Lá pelas tantas, ele começou a rabiscar em um exemplar do “O Diário da Noite”, fazendo e refazendo cálculos e mais cálculos. Fiquei curioso e perguntei o que significavam aqueles rabiscos. Respondeu como sempre, “colega”, estou com um problema que vem me tirando o sono. “Minha noiva está precisando fazer uma operação de apêndice e nós não temos um centavo sequer”. Tudo muito bem, mas e esses cálculos? Respondeu-me com outro “o colega quanto tem de dinheiro aí…?” Não lembro do número exato, mas juro que a coisa se passou da maneira a seguir: de acordo com seus cálculos, juntando o meu dinheiro com o dele, nós poderíamos tomar mais um chope, ele jogaria uma certa quantia em uma milhar que o vinha atormentando e compraríamos duas entradas para assistir “Spartacus”, que estava passando no Art-Palácio. Quando do final da sessão ele iria receber o prêmio em uma banca de bicho ali perto, junto da Botijinha. Não deu outra. Ao término do filme, Jorge ganhou o suficiente para devolver o que havia pedido emprestado, pudemos tomar mais dois chopes, ele pegou um táxi para a casa da noiva, que, com a quantia exata, foi operada na semana seguinte e creio eu, passa muito bem até hoje. Nunca entendi direito o que se passou naquela tarde. “Só sei que foi assim”.

Recuerdo 05 - O BINÓCULO DO PRIMO GERMANO

Hugo Caldas

Década de setenta, férias no Rio de Janeiro. Rua da Carioca. Dois primos a tomar chope escuro no Bar Luiz jogando conversa fora. Já íamos no décimo segundo e o primo Germano, binóculo em punho, se danava a perscrutar o horizonte, coalhado de edifícios. Oficial reformado da Marinha andava com aquele binóculo para cima e para baixo, envergando um impecável terno de linho branco, mas ao invés de mirar o oceano preferia dar um flagra indiscreto em alguma janela desprevenida de algum prédio. Aquilo me dava uma pontinha de inveja. Bem que eu gostaria que aquele binóculo fosse meu para que eu pudesse, olhando para o mar, assumir a pose de Fredric March na cabine do porta-aviões em “As Pontes de Toko-ri”. O primo Germano era uma pessoa agradável de se conviver. Dois ou três anos mais velho lhe davam a certeza de que eu o levaria a sério em qualquer circunstância. Mesmo que não estivéssemos enxugando as belas tulipas com o saboroso e honesto chope escuro do Bar Luiz. Contava ele haver sido muito íntimo de um famoso marechal do exercito, já reformado, mas que exercera o seu direito de ter um oficial superior como ajudante de ordens. Ele foi esse ajudante de ordens. Daí a convivência, daí a intimidade. Mas, fazendo ares de alto segredo, dizia que se eu tivesse a audácia de passar adiante a história que iria me contar ele negaria tudo e me chamaria de mentiroso na frente de todo mundo. Fez, entretanto uma ressalva: “já que você gosta tanto desse binóculo… faço um trato… no dia em que você receber uma encomenda pelo correio com esse binóculo dentro, aí estará a chave para você abrir o baú e contar de vez tudo o que eu lhe conto agora”.

- “Anos de chumbo, o marechal gozava sua merecida reforma. Mas, o seu retiro revelou-se não ser tão tranqüilo assim. Um neto seu, envolveu-se na luta armada, foi preso e torturado. Dizem até, que de tanta crueldade, tanto choque elétrico, terminou emasculado. E aí… bem, aí entra o caso contado pelo primo Germano.

O marechal, ao ser inteirado do ocorrido procurou certificar-se do nome das pessoas envolvidas diretamente nas torturas do seu neto e decidiu aplicar um corretivo nos responsáveis. Certo dia, após ponderar bastante, fardou-se, colocou a pistola 45 no coldre e rumou decidido, juntamente com o Capitão de Fragata Germano, para o prédio do Ministério da Guerra.

Lá, causou um pequeno alvoroço, ao procurar saber sobre um tal Major Cipriano da 2ª Seção que diziam, ser o terror personificado, pois lidava diretamente com os subversivos presos. De posse da informação, encaminhou-se para o local e em lá chegando o tal major levantou-se num misto de susto e respeito pela patente, prestando meio desajeitado a devida continência. O capitão Germano ficara do lado de fora a fim de prevenir qualquer contratempo.

Deu-se então o seguinte diálogo:

- O senhor é o Major Cipriano da 2ª Seção do CIE?

- Sim, senhor Marechal.

Ato contínuo, o marechal sacou a 45, dizendo firme, “ele era meu neto, seu infeliz” e desferiu certeiro disparo na testa do major que se dobrou e caiu num baque surdo por trás do sofá. Calmamente repôs a pistola no coldre dirigiu-se à porta enquanto um pensamento cruzava a sua mente…

“foi por você, meu neto”.

Todas as pessoas que trabalhavam no prédio naquele dia foram obrigadas a esquecer o ocorrido sob pena de pesado castigo. Muita gente foi transferida para os lugares mais distantes… nunca aconteceu nada a ninguém. Mutismo total.”

- O Marechal ainda viveria algum tempo, morrendo em 1984, um ano antes de Sarney assumir a Presidência, dando fim à ditadura. Foi enterrado sem as honras militares a que tinha direito. Castigo?

O primo Germano faleceu dez anos após o acontecimento.

Coisa de cinco anos atrás recebi de um dos seus filhos uma encomenda pelo correio. Um binóculo. Deixei passar mais algum tempo e descarrego agora esse “recuerdo”. Será que é falso? Será que o fato realmente aconteceu?

Recuerdo 04 - VER E NÃO PERCEBER A PASSAGEM DA HISTÓRIA

Hugo Caldas

- Uma tarde de sábado, Sua Majestade Imperial, Hailé Selassié, o “Negus” da Etiópia, veio ao Brasil em missão diplomática. Era dezembro de 1960. Desembarcou em Recife de uma aeronave da Ethiopian Airlines, com a sua comitiva. O mau tempo, de Salvador em diante, no entanto, fez com que ficassem retidos aqui e conseqüentemente eu, como recepcionista do horário, tive que “colar” na Augusta e Imperial Figura a fim de que, na medida do possível, nada faltasse à Sua Real Vontade. Daqui, tão logo o tempo melhorou, o Imperador partiu para Brasília com o seu séqüito de vinte e cinco pessoas. Soube que após audiência no Alvorada, Sua Majestade conseguiu um empréstimo junto ao Banco do Brasil com o aval do presidente Juscelino. Começaram então, rumores sobre um golpe militar que estaria acontecendo na Etiópia, obrigando-o a voltar a seu país a fim de controlar a quartelada. Dizia-se em tom de brincadeira que ele chegou Hailé Selassié e voltava para a Etiópia “Hailé Sei lá se sou”. O golpe foi dominado de forma violentíssima em dois dias. Não posso esquecer, entretanto, que ao final da escala forçada aqui no Guararapes ele, após um breve aperto de mão, me presenteou com uma pequena moeda de ouro gravada com a efígie do Leão de Judá, (ele próprio) por serviços prestados. Falava comigo em inglês e com a comissária da aeronave que o trouxe, em francês. O “Negus” era descendente direto dos amores da Rainha de Sabá com o Rei Salomão.

- Um belo dia, Elga Anderson, atriz sueca com extensa filmografia no cinema europeu, mulherão para 400 talheres, desceu de um avião da SAS, e logo se engraçou com um companheiro de trabalho. Ficou dias hospedada no Hotel Boa Viagem com o tal colega a tiracolo. O coitado do R… (até hoje ele morre de medo de a esposa descobrir – eram noivos na época) apesar do físico de atleta, emagreceu uns quilinhos… Bela dieta!

- De outra feita, Lex Baker, medíocre ex-Tarzan voltando de Roma, pela Alitalia, onde havia feito uma ponta em “La Dolce Vita” de Fellini, fazia farol com as garotas da companhia por conta de uma câmera Polaroid. Tiramos uma foto juntos, mas infelizmente nos primórdios das fotografias instantâneas a técnica incipiente, ficava muito a desejar e a foto foi se desmilinguindo com o tempo, até sumir de vez.

- Outra que deu as caras por lá foi, Romy Schneider, bela atriz austríaca, que desfrutava o auge do sucesso de “Sissi, A Imperatriz”. Estávamos eu e outro colega, Geraldo Magela, no balcão de despachos quando ela apareceu, sabe-se lá de onde, querendo embarcar para São Paulo. Os dois com a maior cara de babaca disseram juntos: “ROMY SCHNEIDER”, e ela, oh please, don’t… querendo passar despercebida… Como se alguém pudesse se esconder por trás daqueles belos olhos.

- De outra feita quem apareceu na maior fossa foi o Coronel do Exército Britânico, Peter Townsend, namorado frustrado da Princesa Margareth da Inglaterra. A Família Real não aprovou, deu a maior bronca e forçou os pombinhos a dar fim no Real Romance. O que fez ele? Contrariadíssimo entrou no Pub da esquina disposto a encher a cara com whisky nacional, lá deles? Não. Gente fina é outra coisa. Comprou um Land Rover (vejam vocês que o famoso utilitário inglês já participou de histórias bem mais edificantes) e se danou pelo mundo afora curtindo a maior dor de cotovelo. Batemos altos papos sobre as diferenças entre o Land Rover e o Jipe Willys.

- Já imaginou você, ignorando tudo, na maior inocência, atender ao avião da El Al, Israel Airlines que voltava das festividades da independência da Argentina trazendo seqüestrado no porão, dentro de um caixote, desacordado, o ex-oficial SS Adolf Eichman, fruto de uma bem sucedida ação do Mossad? Pois é, atendi ao avião, fiz depois a inspeção geral de costume e não notei nada de anormal. E o Eichman estava lá dentro, dormindo o sono dos injustos. Dopadinho que só ele!

Essas coisas aconteciam e eram a mais banal das normalidades. Hoje, com o passar dos anos e o devido distanciamento me dou conta de que era o tempo, juntamente com a História, passando…

Recuerdo 03 - MAMBEMBANDO

Hugo Caldas

Outra das minhas melhores lembranças é que estando de plantão no Aeroporto dos Guararapes, em uma bela manhã de sol, encontrei todo o elenco do Teatro do Estudante da Paraíba, a caminho de mais um Festival e de mais um prêmio. O pessoal todo fardadinho, tudo nos trinques. Para mim foi uma festa vê-los. Festa que terminou assim que continuaram a viagem, e eu fiquei no aeroporto a morrer de inveja, olhando o avião desaparecer por completo atrás das nuvens. Entrei de férias em alguns dias e me mandei para Brasília, com viagem marcada para Buenos Aires. Pensava encontrar o pessoal do TEP. Dito e feito. Brasília era uma festa. O restante da viagem foi cancelado ali mesmo no aeroporto.

Eram os tempos do “IIº Festival Nacional de Teatro de Estudantes”, que neste ano, com Paschoal Carlos Magno à frente, logo após a inauguração da cidade, seria realizado na jovem Capital Federal, a “Novacap”.

Ao término do Festival em Brasília cada grupo recebeu um roteiro com algumas cidades a serem visitadas no trajeto Brasília – Niterói onde o Festival efetivamente deveria terminar. Seguimos de ônibus pelo Triângulo Mineiro e nossa primeira parada foi uma cidade chamada Perdizes. Parecia mais ilustração de conto da carochinha pelo seu tamanho. Era uma pequena rua em L. Mas tinha tudo. Prefeitura, cinema, até uma “Praça de Touros”, menos um teatro. A função daquela noite teria mesmo que ser no recinto do cinema, vetusto prédio cinza, porém simpático.

A peça era “Isabel do Sertão” de Luís Jardim e usava muitas palavras regionais, o que talvez dificultasse o entendimento das pessoas do país mineiro. Fui incumbido então de ir à frente do pano, dizer o motivo da nossa presença e agradecer as autoridades, na pessoa do Senhor Prefeito, a acolhida recebida, ao mesmo tempo em que explicava o significado dos vocábulos nordestinos.

Para o fiel cumprimento da minha tarefa procurei saber com alguém do cinema o nome completo do prefeito e demais autoridades. De posse da informação corri a cumprir o que por pouco não se constituiu em uma tragédia. Quando na frente do pano explicava tudo, passei então a agradecer a colaboração da cidade, “em nome do senhor prefeito, fulano de tal”, notei que um burburinho se espalhava desde a entrada até às primeiras filas. Pessoas tossindo, falando alto, mudando de posição nas cadeiras, enfim, algo estranho estava acontecendo. Final da minha apresentação fui lá pra fora fumar um cigarrinho. Foi quando um sujeito com cara de simpático se chegou e perguntou quem havia me dito o nome do prefeito. Disse-lhe que não sabia e ele com um ar de riso bem matreiro retrucou: pois meu caro você escapou de boa. O nome citado por você é o do sujeito que “come a mulher do prefeito e manda na prefeitura”. Todo mundo aqui sabe disso. Daí então, tremendo de alto a baixo compreendi o motivo de toda àquela agitação”.

Recuerdo 02 - O INCIDENTE DO SEGUNDO PERNOITE

Hugo Caldas

O noticiário dos jornais e televisões mostrando toda essa movimentação dos funcionários da Varig, a tentativa desesperada de salvar a empresa indo até Brasília etc, me levam de volta ao túnel do tempo e parece que vivo novamente os estertores da morte da Panair do Brasil, em parte causada por Rubem Berta, Presidente da Varig, que há muito cobiçava as rotas da Panair na Europa e no Oriente Médio, pelo General Castelo Branco, Presidente de plantão, e pelo Ministro Eduardo Gomes, da Aeronáutica.

… no final de março de 1959 vim ao Recife me inscrever para um concurso na Panair. Contava que tudo iria dar certo.

E deu. Passei no concurso e deixei João Pessoa definitivamente no dia nove de abril de 1959. Trabalhar no aeroporto dos Guararapes foi uma experiência absolutamente enriquecedora. Principalmente em se tratando do meu primeiro emprego.

No aeroporto da Panair trabalhava-se em rodízios. Como em hospital. Dois dias de 06.00hs às 14.00hs, dois dias de 14.00hs às 22.00hs e dois dias de 22.00hs às 06.00hs. Folgávamos dois dias, para tudo recomeçar de 06.00hs às 14.00hs… etc. No segundo pernoite era um horror, dizia-se que por força da noite anterior não dormida, trabalhávamos com o piloto automático ligado.

Um belo dia, já ao final do tal segundo pernoite, por volta das cinco e trinta da manhã, barba por fazer, olheiras denotando a noite praticamente em claro, gravata aberta, cabelos desalinhados, frio de rachar, intratável todo, percebo que alguém pousa suavemente uma passagem de funcionário da empresa no balcão.

Olho para o passageiro e de imediato sinto uma sensação estranha, que se agrava quando o tal passageiro diz…

- Aposto que você está pensando, “eu conheço esse velhote não sei de onde”.

(era o que realmente eu estava pensando)

- Disse ele então…”em todas as agencias da Panair tem um retrato meu…”

Tremi na base. Meu Deus do céu. É o Comandante Sampaio, Presidente da Companhia. Instintivamente tentei ajeitar a gravata, os cabelos, e até forçar um ar de riso amarelo…

- “Deixa pra lá meu jovem, disse ele percebendo a minha angústia. Como ainda não chegou praticamente ninguém, eu fico aqui no balcão, enquanto você vai rápido ao banheiro, lavar esse rosto, ajeitar a gravata e a camisa. Passe um pente nos cabelos. Comigo não há problema, mas eu conheço muito bem o seu chefe, Narciso, que deve chegar a qualquer momento! Ai de você se ele te pega assim. Se cuide e volte para me despachar. Vá, rápido!”

No pátio, ao pé da escada para entrar na aeronave ele pegou suavemente no meu braço e disse baixinho…

- “Não vá ficar pensando que todo dia é Dia Santo!”

Um último aceno na porta do avião, e comigo ficou a satisfação de poder compartilhar um pequeno segredo com tão importante figura.

Recuerdo 01

Hugo Caldas


Essa palavrinha, “recuerdo” é algo que pode alterar um pouco a realidade. Todos nós tendemos a esquecer o passado e a modificá-lo. Psicólogos demonstram que uma fotografia pode levar qualquer pessoa a reviver experiências que na realidade nunca viveu. Quem sabe não seria àquela sensação que sentimos de vez em quando, ao chegarmos a um determinado lugar e nos vem de imediato o seguinte pensamento… “Tenho a certeza que já estive aqui antes ou, isso já se passou comigo," você jura! De tanto ouvir histórias contadas em família às vezes tenho a impressão que de algumas delas eu participei.

Salvador Dali, mestre da pintura surrealista, cita em sua autobiografia, “Diário de Um Gênio”, intrigantes “Recuerdos Intra-Uterinos e Falsos Recuerdos de Infância”. Sempre tive vontade de colocar no papel alguns acontecimentos que tiveram a minha participação, ou não. Já não sei ao certo o que é real ou ficção.

E com a devida licença de quem de direito… nada de Realismos Mágicos.

Esse “recuerdo” é a mais nítida e a mais antiga recordação que sempre me ocorre. Aparece. Que nem alma penada. Lembro da Igreja Matriz, enorme, dominando a rua principal, que se estendia numa bonita praça onde, menino, caçava borboletas. O zelador fazia vista grossa. Isso acontecia porque o meu avô era o prefeito da cidade. Algum tempo mais tarde, dia seguinte à sua derrota em uma eleição o tal zelador declarou fechada a estação de caça às lepidópteras….

Mas o fato se deu ao final da década de vinte, século passado, na cidade de Pilar, no agreste paraibano. Um escândalo…

Missa dominical, igreja lotada, calor insuportável, padre Luís Gonzaga falava compenetrado no alto do púlpito, e lá pelo meio do sermão achou de mandar um recado às senhoras zeladoras da igreja, “para que fossem mais cuidadosas com as coisas da casa de Deus”, pois, mais uma vez naquela semana havia se quebrado um jarro de flores. Nesse exato momento, num ímpeto da mais sagrada fúria, a Matriarca Donana Viegas, antiga e cuidadosa zeladora, levanta-se e dedo em riste, grita a plenos pulmões…

- "Isso é comigo safado…?"

Um burburinho percorreu a igreja desde as portas, passando pela nave indo até o altar-mor. Padre Luis, lívido com a inesperada reação termina o sermão e a missa sagrada naquele momento. Desceu, despiu a alva e demais paramentos, deixando-os ali mesmo, “no altar do Deus, que alegrava a sua juventude” e dirigiu-se calado, pálido, olhos injetados de ódio, ao adro a fim de esperar a saída dos fiéis. Ao deparar-se com Donana Viegas, plantou-lhe um direto nos queixos, que a veneranda senhora rodopiou em câmara-lenta e caiu desacordada. Por conta desse infeliz incidente, a cidade de Pilar recebeu punição exemplar da Diocese, passando dez anos sem ter direito a um padre. De castigo. A carolagem toda forçada a ir assistir missa, batizar e casar noutra freguesia, melhor dizendo, no município vizinho de São Miguel de Taipu, terra de Zé Lins do Rego. Um sufoco. Mas isto já é outra história. Ou recuerdo…

Entrou por uma perna de pinto…