quinta-feira, julho 20, 2006

PIOR FOI A EMENDA

Elpidio Navarro

No início dos anos cinqüenta a festa de Nossa Senhora das Neves era um dos eventos mais importantes de João Pessoa, não só por tratar-se da comemoração da data da nossa Santa Padroeira e da fundação da Cidade, conseqüentemente do Estado da Paraíba, mas também pela tradição de costumes que existiam, mantidos só naquele período, que ia do dia 27 de julho a 5 de agosto. Tudo acontecia na Rua Nova, já na época denominada de General Osório, entre o Grupo Escolar Thomaz Mindelo e a Catedral Metropolitana, rua de largas calçadas bem afeitas a passeios, à colocação de barracas para vender cachorro-quente, aos cercados para os jogos de argolas, roletas e tiro ao alvo. Também eram construídos os pavilhões por associações beneficentes, para servir bebidas e comidas, realização de leilões e concursos de rainhas da festa, com o lucro destinado a uma causa social. Indo em direção à Catedral, a última quadra do calçadão do lado direito era destinada ao passeio do quem me quer, onde as jovens de família desfilavam de braços dados, flertando com os rapazes de família que ficavam, a maioria com seus ternos brancos, formando um cordão de isolamento à beira da calçada. Ali surgiam os namoros, os fuxicos, os rompimentos amorosos e ninguém pagava nada para participar. Já ao lado esquerdo da Catedral ficava o local denominado a bagaceira, reservado às moças e rapazes que não eram de família, ou seja, o pessoal mais pobre, as piniqueiras, soldados de polícia, guardas noturnos, cabeceiros etc., não faltando também os rapazes de família que para lá se dirigiam após a hora do recolhimento das moças de família, que da bagaceira só tinham notícias ou uma visão geral de cima da roda-gigante. Os rapazes de família iam à procura de aventura sexual com alguma empregadinha e tinham, geralmente, a compreensão das suas namoradas, moças de família, que, àquela época, ainda casavam virgens.

Uma outra tradição bem forte eram os jornais da festa. Entre eles O Gongo, pelo qual eram responsáveis Arlindo Delgado, Genildon Gomes, José Morais Souto, Valdez Silva e eu, entre outros. O jornalzinho publicava tudo: fofocas, aniversários, humor, pensamentos… Nessa de pensamentos foi publicado num dos seus números: “Mais vale uma velha do que um balaio de brotos”, atribuído Biu Bate-Bate, que era o apelido de Severino Alves de Andrade, estudante de Direito, noivo de um moça mais velha do que ele, porém alta funcionária federal. Dia seguinte à publicação, já esperávamos uma reação, possivelmente até violenta, dele. E não deu noutra: estávamos no jornal, eu e Arlindo Delgado, quando avistamos Biu Bate-Bate vindo em nossa direção. Não contamos conversa: nos escondemos por trás das impressoras. Na redação estava Humberto Melo, também estudante de Direito, que não se dava bem com o esperado visitante e que por uma infeliz coincidência havia nos pedido para publicar uma notinha de aniversário, a qual estava redigindo numa das máquinas de escrever. Biu parou na porta da redação, olhou para Humberto e desafiou:

- Só podia ser coisa sua, seu cabra safado! Agora venha para a rua apanhar. Só não vou lhe quebrar a cara aí porque eu, como estudante de Direito, conheço as leis: não posso invadir recintos particulares. Mas aqui no meio da rua eu acabo com você! Venha se é homem!

Humberto Melo atônito, sem saber o que estava acontecendo e nem por que estava sendo desacatado, não se mexeu na cadeira onde estava sentado, não falou uma só palavra. Biu continuou ameaçando, mas ao notar que estava chamando a atenção das pessoas que passavam na rua, retirou-se dizendo que iria pegá-lo noutra ocasião. Saímos da nossa toca e ainda encontramos Humberto sob o efeito da injusta agressão sofrida. Quando nos viu, perguntou ainda com certa dificuldade:

- O que foi que eu fiz?!… O que foi que houve?!…
- Do quê você está falando, Humberto?

Perguntou Arlindo fingindo surpresa, enquanto eu me esforçava para não rir. Humberto relatou o acontecido e Arlindo, mais um vez, demonstrava ser um bom ator:

- Que absurdo, Humberto! A gente não ouviu nada disso devido ao barulho das máquinas. Esse Biu está ficando doido, isso é bebida demais!
Eu vou procurá-lo, Humberto. Ele vai ouvir umas verdades…

E seguimos para o Ponto de Cem Reis, pois já era hora do encontro diário com o resto do pessoal, para colher as notícias, artigos, matérias para a edição do dia do nosso O Gongo. Parados na calçada da Farmácia Regis, ponto combinado com a turma, eis que surge Biu com cara de poucos amigos:

- Acabo de ir lá naquele jornalzinho de merda mas só encontrei o safado do Humberto Melo, que não teve coragem de sair para apanhar! Mas só podia ser coisa dele o que vocês publicaram…

- Um momento Severino, um momento! Primeiro você chamando jornalzinho de merda não está atingindo Humberto, porque ele nem pertence ao corpo de redatores. Se estava lá foi mera coincidência. Segundo, você está atingindo pessoas que você nem conhece, que são donas do jornal, como, por exemplo, Elpídio que está aqui ao meu lado. Terceiro, explique o que está acontecendo, o que foi que lhe deixou dessa forma. Sentenciou Arlindo, encarando Biu, enquanto eu permanecia ao lado, calado e com medo. Então, já mais calmo, o nosso agressor tenta explicar a sua atitude:

- Aquele pensamento, aquele negócio do balaio de brotos, aquilo foi sacanagem… - É, eu li quando já estava publicado, não podia fazer mais nada… Também não achei que fosse causar tanto descontentamento da sua parte.. Mas certamente não foi Humberto o responsável. A notinha chegou na redação e na pressa de fechar a edição, alguém jogou no meio das outras. Mas eu lhe garanto um retratamento ainda na edição de hoje!

E lá se foi Severino mais ou menos satisfeito enquanto Arlindo aguardava alguns segundos para desatar numa risada! Ele havia sido o autor do tal pensamento! Ainda rindo da situação, voltamos ao jornal para concluí-lo e foi lá que ele escreveu e saiu publicada a seguinte jóia de pedido de desculpas:

Nota da Redação - O Jornal O Gongo, tendo publicado na sua edição de ontem o pensamento “mais vale uma velha do que um balaio de brotos” atribuído ao nosso futuro jurista Severino Alves de Andrade, conhecido como Biu Bate-Bate, vem de público pedir desculpas ao atingido pelo tal pensamento de que “mais vale uma velha do que um balaio de brotos”, afirmando que nós não achamos que “mais vale uma velha do que um balaio de brotos” pois, mesmo que comungássemos com esse pensamento de que “mais vale uma velha do que um balaio de brotos”, jamais iríamos fazer a afirmação de que “mais vale uma velha do que um balaio de brotos” e atribuí-la a uma pessoa que não acha que “mais vale uma velha do que um balaio de brotos”. Assim, mais uma vez pedimos desculpas ao nosso amigo Biu Bate-Bate, garantindo-lhe que ele nunca mais será atingido por pensamentos iguais a esse de que “mais vale uma velha do que um balaio de brotos”.

Dia seguinte, mesma calçada, mesmo Ponto de Cem Reis, mesmas pessoas. Surge Biu com um semblante enigmático. Arlindo não lhe deu oportunidade de falar primeiro:

- Leu a nota? Pedi desculpas umas três vezes, para deixar bem claro que não estávamos de acordo com aquele negócio. Gostou? Pela sua reação agora, já sei que gostou! Mas não precisa agradecer nada! Fizemos a nossa obrigação! Torpedeado por tantas perguntas e afirmações, Biu ficou meio confuso mas ainda fez uma pequena reclamação:

- Eu achei meio repetitiva, meio insistente naquela frase. Não será que foi pior a emenda do que soneto? Tenho a impressão de que a nota só fez piorar a situação! E enigmaticamente retirou-se.

Um comentário:

Anônimo disse...

Grande Elpídio, também eu recebi promessas de bordoada pelo O Tabefe, porque o criticados não tiveram o necessário senso de humor. Até à polícia fui chamado e quase peguei um processo por injúria. Tudo porque usei uma frase do Millor, dirigida a um certo cidadão caça-dotes daí: "Há certos matrimônios que deviam chamar-se Patrimônios".