terça-feira, outubro 17, 2006

RECUERDO 11 - O Barão do Bujarí

De como se especula sobre uma possível, talvez-quem-sabe, inclusão à nobreza açucareira nordestina.

HUGO CALDAS

Por força das minhas atividades profissionais passei, há já algum tempo, a ir com frequência à cidade de Goiana, PE. Uma tia, muito chegada às coisas da nobreza me falou de um Pereira, parente não muito distante, que teria sido senhor de engenho, rico e barão. Que eu levantasse a ficha completa daquele parentesco. Tratava-se do Barão do Bujarí. Descobri então por intermédio do historiador Luís Corrêa, goianense ilustre, mais conhecido como Luís da Barba o que se conta abaixo:

Chamava-se o Barão do Bujarí, Antonio Francisco Pereira nascido em 1801 na cidade do Recife. Tinha um irmão gêmeo de nome Francisco Antonio Pereira. O pai, comerciante português radicado no Recife, deveria ter provavelmente o nome de Antonio ou Francisco Pereira. O velho Pereira envolveu-se com a Rebelião de 1817 apoiando os revoltosos, a exemplo de muitos outros comerciantes portugueses radicados no Recife. Sufocada a rebelião e embora não houvesse sofrido perseguição por parte do Governo Real, o Principe D. Pedro não alisava a cabeça de ninguém, mandou o velho Pereira seus dois filhos, à época com 18 anos de idade, à Paraíba a fim de salvaguarda-los de possíveis represálias. Os rapazes seguiram então para o engenho Tapuá, em São Miguel de Itaipu, PB, dirigido à época por frades beneditinos. Vejam vocês que não é de hoje que os beneditinos dão guarida a subversivos.

Em 1821, após a anistia, o velho Pereira sentindo-se mais tranqüilo, chama de volta os rapazes. Antonio Francisco e Francisco Antonio, desfrutando da maior boa vida se recusam a voltar para o Recife e sugerem ao pai a compra do Engenho Tapuá tendo os frades recusado a oferta. O velho Pereira então compra o Engenho Maraú, no mesmo município de São Miguel de Itaipu, na Paraíba e o entrega a Francisco Antonio. Os intermediários dessa compra foram exatamente os frades beneditinos. Logo em seguida, ainda contando com a intermediação dos beneditinos, o velho Pereira compra o Engenho Bujarí em Goiana, PE entregando a Antonio Francisco que mais tarde se tornaria o Barão do Bujarí por decreto do Imperador, datado de 23-11-1867, título de origem toponímica, tomado da propriedade da família. Não houve a baronesa visto ter o Barão morrido solteiro. Deixou, no entanto geração natural. Nove filhos tidos com oito mulheres diferentes. Todos devidamente reconhecidos. O Barão do Bujarí morreu de "cholera morbus" no dia 6-12-1868. Desfrutou apenas 1 ano do baronato. Na segunda metade do século 19, por volta de 1867/68, grassou em Pernambuco uma terrível epidemia de cólera.

A "Peste Bailarina” matou nada menos que 35 mil pessoas no estado, 5 mil só no Recife, foi trazida do estado do Pará por um navio de passageiros. Tinha o nome de bailarina pelo fato de ter sido uma bailarina italiana que vindo da Europa já infectada repassou a doença em Belém. O Barão não gozava das graças do imperador que o achava “uma pessoa intrigante.” De acordo com Luís Corrêa, "era o Barão de estatura mediana, cabeça pequena, quase imberbe e ostentava um bigodinho ralo, muito branco de olhos claros." Essa descrição me lembra muito a imagem de meu avô materno Ambrósio Pereira. Os restos mortais de Antonio Francisco Pereira, Barão do Bujarí, repousam em um jazigo na Igreja de Nossa Senhora do Amparo, em Goiana.

Conta-se que perto da morte, o padre Lima, capelão do engenho Bujarí muito interesseiro, tentou convence-lo a casar-se com uma das 8 mulheres a fim de alcançar o Reino dos Céus e morrer em paz com a Igreja, com Deus, com direito a missa de sétimo dia e tudo o mais. Verdadeiro passaporte para o paraíso. O Barão, homem de caráter forte e grande nobreza d’alma recusou a oferta. Não houve casamento, preferindo ele arriscar uma chegada ao inferno. Não achava justo casar com uma e deixar as outras ao Deus dará.

- Muito bem, disse ele ao padre Lima, “caso com uma, mas o que eu terei a dizer às outras?”.

Conta a lenda que esta mesma família Pereira já por aqui estava em meados do século XVII e seus integrantes ofereciam feroz combate aos holandeses. De acordo com Luís Corrêa, o eufemismo “feroz combate” carece de veracidade. O que acontecia na realidade era que os Pereira com freqüência cortavam o pescoço aos holandeses que encontravam pela frente. Gente brava, essa...

Episódio bastante interessante sobre as mulheres da Família Pereira: Conta-se que Francisco Antonio, do Engenho Maraú, em São Miguel de Itaipu, PB, tinha uma filha que a exemplo do pai era muito obstinada. Certa feita se desentendeu com ele, não se sabe ao certo o motivo, tudo leva a crer que o pai queria impor um casamento com alguém que não lhe era muito simpático, coisa bastante comum na época. Altas horas da noite a jovem mandou selar um animal e cavalgou durante a madrugada até Goiana, ao engenho do tio barão que imediatamente a acolheu dando-lhe guarida, não sem antes repreende-la pelo perigo que havia corrido, porém bastante orgulhoso da sobrinha.

Sabe-se que por causa do episódio acima, os dois irmãos Francisco Antonio e Antonio Francisco se desentenderam e cortaram relações surgindo daí uma inimizade bastante forte e nada comum entre irmãos gêmeos. Ficaram anos sem se falar. Um em Goiana e outro em São Miguel de Itaipu. Ocorre que Francisco Antonio adoece e sentindo que talvez passasse dessa para melhor, resolveu ir até Goiana a fim de fazer as pazes com o irmão. Antonio Francisco, após um sonho no qual sentia que Francisco Antonio precisava da sua ajuda, resolveu por sua vez acabar com àquela pendenga e também se pôs a caminho de São Miguel. Encontraram-se no meio da viagem e ali mesmo, na estrada, fizeram as pazes após trocarem um grande e emocionado abraço. Francisco resolveu procurar o irmão com receio de morrer em malquerença. Antonio, após o sonho, não sabia explicar que força estranha o impelia à Paraíba.

Existe ou existiu um parente próximo de nome Gerôncio Pereira que residia em Itambé e tinha ou tem um filho chamado Ednaldo. No Instituto Histórico no Recife está guardada a Carta de Brasão. Tudo leva a crer que nós descendemos do irmão gêmeo Francisco Antonio que se estabeleceu no Engenho Maraú, perto da comarca do Pilar.

De acordo com declarações da minha Mãe, Maria Dalva Pereira Caldas, Tia Mocinha, irmã de Ambrósio Pereira – meu avô materno, teve dois filhos gêmeos, também chamados Francisco Antonio e Antonio Francisco respectivamente. Coincidências se encontrando mais de cem anos depois? Ambrósio Pereira nasceu em São Miguel de Itaipu PB em 7-12-1876 oito anos após a morte do Barão.

A Saga dos Pereira deve seguir....

sexta-feira, outubro 06, 2006

HISTÓRIAS DE TRANCOSO

DJANIRA SILVA iniciou-se nas letras em Pesqueira, nos jornais
A Voz de Pesqueira e a Folha de Pesqueira.
No Recife colaborou para o Diário de Pernambuco, Jornal do Comércio, Diário da Noite e Folha da Manhã. Tem inúmeros livros publicados, entre eles A Magia da Serra; Em Ponto Morto; Maldição do Serviço Doméstico; Olho do Girassol; Memória do Vento; Pecados de Areia, Do Quintal Para o Mundo, que lhe valeram mais de dez prêmios literários.
Pertence à Academia de Artes e Letras de Pernambuco,
Academia de Letras e Artes do Nordeste Brasileiro,
Academia Recifense de Letras e U.B.E. - União Brasileira de Escritores. É sócia efetiva da AIP – Associação de Imprensa de Pernambuco. Luiz Gonzaga Lopes

HISTÓRIAS DE TRANCOSO

Djanira Silva

Cresci ouvindo falar de Trancoso e de seus ditos populares, ditos extraídos de contos rudimentares e que subsistiram na memória do povo, principalmente no Nordeste onde a expressão histórias de Trancoso equivale a histórias da carochinha.

Minha mãe costumava dizer: não conte o seu segredo a ninguém, você que é o dono não guardou não pode esperar que os outros guardem. Ou então, nunca peça perdão para quem merece castigo.

Há algum tempo, pesquisando sobre os fundamentos do conto na língua portuguesa, encontrei entre os precursores, o nome de Gonçalo Fernandes Trancoso, de quem infelizmente, pouco se conhece. Até as datas de nascimento e morte são presumidas.

Sabe-se que foi contemporâneo de Cervantes, Montaigne, Shakespeare, Erasmo e Camões, não podendo, no entanto equiparar-se a eles uma vez que foi mais testemunha do que participante. Era conhecido como um zeloso moralista, e praticante de uma supersticiosa religiosidade. Tendo por base a cultura popular, inseriu o conto português na grande corrente européia. Segundo Teófilo Braga foi no século XVI que o conto português recebeu a forma literária dada por Gonçalo Fernandes Trancoso.

Escreveu cerca de trinta e oito histórias e teve seus trabalhos reeditados, mesmo depois da sua morte, até o século XVIII. Possui um estilo agradável marcado pela tradição oral, embora Agostinho de Campos o defina como homem de poucas letras, pouco versado em cultura clássica e muito versado em temas de justiça e de tribunal. Autor de Contos e Histórias de Proveito e Exemplo teve a primeira parte publicada, possivelmente, em 1575 e a segunda, em 1596, depois de sua morte.

O primeiro dos seus contos é precedido por uma epígrafe onde se lê: Do que acontece a quem quebranta os mandamentos de seu pai e o proveito que vem de dar esmola e o dano que sucede aos ingratos.

Neste conto narra a história de um homem que, sabendo-se no fim da vida, chama seu único filho a quem diz: quero te dar alguns conselhos e espero que para teu próprio bem os sigas à risca:

Primeiro, não deves deixar a tua casa aqui na quinta, lugar seguro onde viveste até hoje. Não te mudes para a cidade. Lá há muita gente e muita maldade.

Segundo: nunca, nem mesmo se o Duque te pedir o presenteeis com o que quer que seja, porque se o fizeres ele há de pensar que dispões de muito e te considerará, daí por diante, foreiro tributário, isto é, aumentará os teus impostos.

Terceiro- Do mesmo jeito que não deves dar, também não peças nada a ninguém, e não intercedas por malfeitores que por seus crimes devam ser castigados.
E o último e quarto conselho, não contes os teus segredos a ninguém, pois se tu, o dono, não o guardaste, como irás querer que os outros o guardem? Cuida-te, principalmente, contra tua mulher porque quando tiver uma raiva será a primeira a contá-los a todo mundo. O rapaz escutou os conselhos e prometeu cumpri-los. Morto o pai, o jovem, por simples curiosidade, decidiu-se a fazer o contrário para ver o que aconteceria.

Mudou-se para a cidade e logo começou a dar esmolas e a ajudar os outros mesmo sem lhe pedirem. Deu de presente ao Duque dois valiosos potros e em troca recebeu um alvará que lhe garantia o direito de, em qualquer tempo, solicitar um favor por maior que fosse.

Tornou-se querido porque além de atender aos que lhe pediam, ainda oferecia ajuda espontaneamente. Em poucos anos não havia na cidade e nos arredores uma só pessoa a quem ainda não tivesse dado presentes ou feito algum favor. Tido por muito rico tornou-se o alvo dos mais variados pedidos. Já não tinha sossego.

Certo dia a polícia capturou um assassino e ladrão que andava pelos arredores da cidade matando e saqueando. Arrastado pelas ruas e praças foi levado ao pelourinho onde lhe seriam decepadas as mãos e logo em seguida, a cabeça.
Ao saber da notícia o rapaz foi à presença do Duque pedir perdão e liberdade para o condenado, uma vez que o alvará de que era possuidor lhe reconhecia este direito. O Duque relutou. Porém, diante do documento por ele mesmo escrito e assinado, teve que honrar a palavra dada, mandando, mesmo a contragosto, libertar o malfeitor. Rasgou o alvará e virou as costas ao jovem que, a partir daquele momento, passou a considerar seu pior inimigo.
O Duque possuía um falcão, ave rara, valiosa e agressiva que o acompanhava nas caçadas.
Um dia o pássaro voou do seu ombro para dentro da mata de onde não mais voltou. Feita uma devassa nos arredores não encontraram nem sinal do falcão fugitivo. O Duque mandou apregoar que perdoaria qualquer delito a quem o encontrasse e, a quem o encontrasse e o retivesse, daria a pena de morte. Por um acaso a ave fora parar na quinta do jovem, que dela se apossou, escondendo-a bem escondida.

Na hora do jantar disse a sua mulher: vou te contar um segredo, o pássaro que o Duque procura veio cair no nosso jardim. É uma ave de rapina que mata as outras, razão pela qual a abati, depenei, assei e trouxe para o nosso jantar. A mulher recusou-se a comer e passou a reclamar e insultar o marido. Tanto falou, que ele, irritado, derrubou-a com uma bofetada. Ao se levantar ela abriu a porta, correu para a rua aos brados de que o marido era um criminoso, havia matado a ave que pertencia ao Duque. Logo toda a cidade ficou sabendo e o homem foi preso e levado a julgamento. No tribunal não faltaram testemunhas que jurassem tê-lo visto matar, depenar, assar e comer a ave, a toda essa gente ele havia ajudado.

Foi condenado à morte e teve todos os bens confiscados. Surgiu, porém, um problema, não havia carrasco para executar a sentença, uma vez, que a maioria das pessoas, se recusava a fazer aquele tipo de trabalho. Foi oferecida uma valiosa recompensa. Logo se apresentou o malfeitor, o mesmo salvo do patíbulo pelo jovem e que disse ser um prazer executá-lo porque só assim se veria livre de uma presença que o lembrava sempre do favor recebido.

Já estava tudo pronto, para a execução, quando o capelão do ducado, a quem o jovem havia narrado a verdadeira história do aparecimento do falcão na sua quinta, contou tudo ao Duque mostrando-lhe que o jovem era vítima de uma injustiça.

Sabedor de que a ave estava viva e bem guardada e, diante do pedido do sacerdote, liberou o condenado porque queria justiça e não vingança.

Mandou que ele voltasse a morar na quinta e, por castigo, vivesse com a mulher até o fim dos seus dias.

domingo, outubro 01, 2006

PLANTA PARA O JARDIM

LUIZ GONZAGA LOPES

O homem que me atendeu foi solícito, sorridente, talvez pelo desejo de realizar a venda, aliviar o estoque de suas mercadorias, sobretudo sementes. Abriu o tosco armário de grossas madeiras, arrastou de dentro dele um gavetão tão rude quanto o armário, e se entregou ao trabalho de procurar o produto solicitado por mim. Revirava as pequenas sacolas em forma de envelopes, onde estavam contidas as sementes. Com dificuldade lia os rótulos, desajeitadamente remexia na gaveta, recomeçava a busca, por fim decidiu desistir. “Está em falta” disse, com ar de decepção, “mas posso providenciar para amanhã, ou depois, se o senhor desejar”.
Despedi-me do prestimoso homem, prometi voltar na próxima semana, talvez lá ele já tivesse conseguido repor no estoque de seu pequeno comércio a semente solicitada por mim.
Segui meu caminho.
Não foi preciso andar muito, no outro lado da rua avistei um estabelecimento similar.
Ao invés de um prestimoso senhor, fui recebido por uma amável e linda jardineira, moreno-clara, de olhos verdes e belo sorriso branco. Antes de formular meu pedido, conversamos sobre diversas espécies de plantas decorativas ali expostas, algumas próprias para sol, outras, para dependências internas.
Após ouvir variadas explicações, e muito aprender com a agradável moça, expliquei a ela que na parte da frente de minha casa, ao lado da piscina, eu havia reservado uma área para arborização. No meio dessa área, na verdade um grande canteiro, eu desejava plantar uma árvore que me parecia a mais adequada para o local, de acordo com o que estava idealizado em minha cabeça. Ao término da exposição, pedi-lhe a semente da já comentada árvore. A moça não pensou um segundo sequer, foi brevíssima na resposta: “não temos, nem nunca ouvi falar da existência dessa semente”.
Despedi-me frustrado, mas esperançoso. Se as duas sementeiras visitadas não dispunham do produto, outras, possivelmente, teriam. Levei no capricho a empreitada de realizar meu desejo, afinal o canteiro havia sido preparado com amor, nele um gramado bem verdinho, circundado por seixos rolados, de tamanhos uniforme, todos brancos, um primor. No centro, deixei como marca um pequeno círculo sem qualquer vegetação, destinado a receber a semente ou, numa hipótese ainda melhor, receber uma muda já crescida da almejada árvore.
Sempre fui persistente em minhas pretensões, só deixo de perseguir meus intentos depois de convencido da absoluta impossibilidade de realizá-los, não por esgotamento de minhas forças, mas por razões que escapam à lógica do possível. Com essa determinação entrei em diversas outras floriculturas, até que, em uma delas, a atendente, revelando-se pessoa das mais competentes, trouxe lá de dentro um enorme catálogo, espécie de dicionário de todas as plantas do mundo. Pela ordem alfabética abriu o enorme livro na letra indicada, precisamente a letra “G”. Percorreu com dedos e olhos, as páginas de cima a baixo, por fim abanou a cabeça em sinal negativo, “não tem”, ela disse.
Não convencida, resolveu dar outra pesquisada no volumoso catálogo. Para evitar qualquer vestígio de obscuridade, pediu que eu repetisse o nome da árvore desejada.
Não só tornei a falar do modo mais claro possível, como empunhando uma caneta, escrevi bem legível, em letras de imprensa:

ÁRVORE GENEALÓGICA.

TODO O SANGUE QUE FOR NECESSÁRIO

CARLOS MELLO

Sentado em sua mesa de trabalho, mais de trinta anos depois, Herculano olhava a ficha de internação e lembrava com nitidez aquele acontecimento que marcou tanto a sua vida. Era então um garoto pobre, filho de mãe viúva, e moravam na única casa humilde do bairro. Na verdade, a primeira casa que foi construída naquela rua, com um financiamento para funcionários públicos. Sala e saleta na frente, dois quartos, um banheiro, a cozinha, uma varanda nos fundos; e no quintal um tanque e a velha mangueira, mais velha que a casa. Ele e os garotos ricos da vizinhança construíram em seus galhos uma plataforma de madeira, que chamavam “o esconderijo”, para onde subiam por uma escada de corda, que depois era recolhida. Ali traçavam planos, fumavam escondido e guardavam as “armas” – uma faca enferrujada, dois chuços feitos de cabos de vassoura com prego na ponta, e o canivete suíço do João Marcos.
Os garotos foram crescendo, a brincadeira cansou, e com a morte do pai, Herculano teve de trabalhar, ajudando a mãe a entregar encomendas de bolos e costuras. Naquele lugar, ele sabia, ia ficando cada vez mais sozinho, já sentia a cara de enfado das mães dos garotos ricos quando ele os procurava. E aí chegou a festa da qual toda a rua já falava há tempos, na casa da família Raposo, em comemoração a três eventos memoráveis: o aniversário de quinze anos do João Marcos, sua conclusão do ginásio e o noivado da irmã, Cecília. A mãe de Herculano recebeu a encomenda do bolo e de salgadinhos, e ainda ajudou na confecção do vestido da dona da casa e da filha. Uma trabalheira tal que a deixou arriada no dia da festa. “Você vai, representa nossa família. Bota a calça nova de brim, a camisa branca. Comprei um sabonete para você dar ao Joãozinho”. A calça nova, ele sabia, era de um terno do pai, que ela reformara. A camisa foi feita de um corte de cambraia que ganhara de uma freguesa.
Festa de arromba mesmo, a rua ficou engarrafada, veio gente até de outros estados. João Marcos parecia um príncipe, de terno escuro e gravata vermelha, o mesmo traje do pai. Os outros rapazes da rua e de fora estavam também de terno, as moças com vestidos vaporosos de organza forrada, todos falavam alto, riam, conversavam sobre lugares e pessoas que ele não conhecia. Sentou na roda, com um copo de bebida numa das mãos, na outra o presente, que ainda não entregara ao aniversariante, mal o entrevira com os pais, a receber os convidados. Mas agora aí vem ele, os amigos fazem um arruído, as moças riem, abrem espaço para o grande herói da noite. Ele chega-se, dá tapinhas nas costas de um, abraça uma garota, dá beijoca em outra. De repente, olha sério para Herculano e pergunta em voz alta: “Quem te convidou? Eu, não fui”.
Foi como um soco no estômago. Os outros rapazes tentaram disfarçar, as moças continuavam rindo, uma delas olhou curiosa para ele. Suas orelhas ardiam, os lábios ficaram secos, sentiu uma leve tonteira. Levantou-se e foi saindo devagar, as lágrimas vieram aos olhos, não conseguiu reter. Ainda esperou que a mãe do João Marcos perguntasse por que estava indo embora, repreendesse o filho pela indelicadeza, o levasse de volta à roda. Mas ela desviou o olhar, certamente adivinhava tudo e até aprovava. Chegou em casa, a mãe dormia profundamente. Deixou o sabonete ainda no embrulho de presente sobre a mesa da sala, trancou-se no quarto e deixou o pranto correr solto. Mordia os lábios, apertava as mãos, respirava a custo. E ali mesmo fez uma jura: vingar-se daquela humilhação, nem que a isso dedicasse toda a sua vida.
E foi bom que meses depois apareceu alguém oferecendo uma grande quantia pela casa – pelo terreno, deixavam claro – muito valorizado por ser o último daquela rua grã-fina. Mudaram logo, para um apartamento perto do centro, mais à mão para os trabalhos da mãe e para o curso que começou a fazer – auxiliar de enfermagem, a mesma profissão do pai. Com muito esforço, trabalhando em dois hospitais, correndo como um louco, conseguiu depois cursar a faculdade, tornou-se enfermeiro diplomado. E tinha jeito para a profissão, era requisitado pelos médicos nas cirurgias mais complicadas, sabia os procedimentos, conhecia o instrumental como ninguém. Logo passou a chefe de enfermagem. Com a morte da mãe, vendeu o apartamento, comprou outro financiado, em um lugar mais decente, e foi pagando. Namorou, ficou noivo, casou, vieram duas filhas. Com os qüinqüênios, os adicionais de insalubridade e outros benefícios, aposentou-se cedo. E decidiu aceitar o convite para chefiar a enfermagem daquele hospital, numa cidade pequena, fora de toda a azáfama da capital, bem longe.
Sentado em sua mesa de trabalho, Herculano olhava a ficha de internação e não queria acreditar. Não, não era possível! Mas ali estava, que diabo, não havia dúvida. Paciente de emergência, trazido pela ambulância da polícia rodoviária, ferido em acidente na rodovia, era rotina naquele hospital. Havia até placas à margem da estrada avisando: “Em caso de acidente, levar os feridos para o Hospital X na cidade Y”. Mas aquele não era um acidentado qualquer, estava lá na ficha o nome: João Marcos Gotthelp Raposo. Pelo nome, pela filiação, pela foto da carteira de identidade, era ele, o autor da grande humilhação de sua vida! Que assim vinha parar em suas mãos, trazido pelo destino, pela justiça divina, por satanás! Não era mais o jovem de terno escuro e gravata vermelha, arrogante e altaneiro. Não. Agora era um apenas um ferido, quase sem vida, que tinha de ser operado às pressas. Perdera muito sangue com o rompimento da artéria femural, o médico já estava na sala de cirurgia. Na ficha estava também o tipo sangüíneo do paciente: 0 negativo, um sangue raro. E o médico já avisara: vai ser necessária a transfusão.
E agora? A cena toda passava e repassava em seu cérebro, como num cinema. Sentia as orelhas arderem, a boca secar, ouvia as risadas das moças, o olhar cúmplice da mãe do Raposo... e em casa, o ressonar suave de sua mãe, a mesa velha de pinho onde deixara o presente. De repente o filme se partia, as imagens aceleravam-se e lá estava o carro acidentado, a ambulância da polícia rodoviária. Há outros feridos? Não, só ele, vinha em grande velocidade, deve ter se desviado de algum caminhão. Tem fratura femural, já garroteamos. Mas perdeu muito sangue. E agora? Agora é fácil, muito fácil. Basta remover um pequeno traço, um tracinho de nada, e o tipo sangüíneo torna-se 0 positivo, pode ocorrer precipitação das hemácias, uma insuficiência renal aguda. Humilha agora, cachorro! Riam agora, putinhas de luxo! Que o seu príncipe encantado vai morrer todo sujo, sem uma perna, em um hospital de interior! Riam todos, vamos rir muito, isso aqui é uma festa, a festa de um motivo só: o dia da grande vingança!
No corredor do hospital, o médico discute com a enfermeira. Felizmente você chegou, Herculano! Não tem uma gota de sangue 0 negativo, a bagunça desse hospital é incrível. Já falei com o Dr. Celso, um hospital de emergência tem de ter estoque de sangue para três dias. E se fossem vários feridos com o mesmo tipo sangüíneo? Bom, você é um profissional experiente, único enfermeiro diplomado dessa cidade, sabe de que estou falando. E não tem culpa disso. Mas estou sem saber o que fazer vai ser necessária a transfusão. A D. Nadir me diz que seu tipo sangüíneo também é O negativo. Você pode ceder? Temos de fazer uma transfusão braço a braço, não há tempo a perder. Claro, ninguém pode obrigá-lo a isso. Mas onde encontrar um doador a essa hora de uma noite de sábado? Vamos para a sala de cirurgia.
Herculano ia andando como um autômato. O filme cessou de passar em sua cabeça, agora a cena é real: um leito de cirurgia, um homem entubado, uma fratura em bisel, um hemograma revelando anemia profunda. Os olhos do médico e da Dona Nadir vão do acidentado para Herculano, voltam para o paciente, tornam a voltar para ele. Sem uma palavra, ele despe o jaleco, coloca o garrote no braço esquerdo e deita na cama. Fecha os olhos, não quer ver nada, nem o filme nem a cena. Ouve a voz do médico:

- Herculano, talvez tenha de tirar um pouco mais, uns 400 gramas de sangue, ele está muito anêmico. Tudo bem?
- Tudo bem, doutor. Todo o sangue que for necessário.