domingo, outubro 01, 2006

TODO O SANGUE QUE FOR NECESSÁRIO

CARLOS MELLO

Sentado em sua mesa de trabalho, mais de trinta anos depois, Herculano olhava a ficha de internação e lembrava com nitidez aquele acontecimento que marcou tanto a sua vida. Era então um garoto pobre, filho de mãe viúva, e moravam na única casa humilde do bairro. Na verdade, a primeira casa que foi construída naquela rua, com um financiamento para funcionários públicos. Sala e saleta na frente, dois quartos, um banheiro, a cozinha, uma varanda nos fundos; e no quintal um tanque e a velha mangueira, mais velha que a casa. Ele e os garotos ricos da vizinhança construíram em seus galhos uma plataforma de madeira, que chamavam “o esconderijo”, para onde subiam por uma escada de corda, que depois era recolhida. Ali traçavam planos, fumavam escondido e guardavam as “armas” – uma faca enferrujada, dois chuços feitos de cabos de vassoura com prego na ponta, e o canivete suíço do João Marcos.
Os garotos foram crescendo, a brincadeira cansou, e com a morte do pai, Herculano teve de trabalhar, ajudando a mãe a entregar encomendas de bolos e costuras. Naquele lugar, ele sabia, ia ficando cada vez mais sozinho, já sentia a cara de enfado das mães dos garotos ricos quando ele os procurava. E aí chegou a festa da qual toda a rua já falava há tempos, na casa da família Raposo, em comemoração a três eventos memoráveis: o aniversário de quinze anos do João Marcos, sua conclusão do ginásio e o noivado da irmã, Cecília. A mãe de Herculano recebeu a encomenda do bolo e de salgadinhos, e ainda ajudou na confecção do vestido da dona da casa e da filha. Uma trabalheira tal que a deixou arriada no dia da festa. “Você vai, representa nossa família. Bota a calça nova de brim, a camisa branca. Comprei um sabonete para você dar ao Joãozinho”. A calça nova, ele sabia, era de um terno do pai, que ela reformara. A camisa foi feita de um corte de cambraia que ganhara de uma freguesa.
Festa de arromba mesmo, a rua ficou engarrafada, veio gente até de outros estados. João Marcos parecia um príncipe, de terno escuro e gravata vermelha, o mesmo traje do pai. Os outros rapazes da rua e de fora estavam também de terno, as moças com vestidos vaporosos de organza forrada, todos falavam alto, riam, conversavam sobre lugares e pessoas que ele não conhecia. Sentou na roda, com um copo de bebida numa das mãos, na outra o presente, que ainda não entregara ao aniversariante, mal o entrevira com os pais, a receber os convidados. Mas agora aí vem ele, os amigos fazem um arruído, as moças riem, abrem espaço para o grande herói da noite. Ele chega-se, dá tapinhas nas costas de um, abraça uma garota, dá beijoca em outra. De repente, olha sério para Herculano e pergunta em voz alta: “Quem te convidou? Eu, não fui”.
Foi como um soco no estômago. Os outros rapazes tentaram disfarçar, as moças continuavam rindo, uma delas olhou curiosa para ele. Suas orelhas ardiam, os lábios ficaram secos, sentiu uma leve tonteira. Levantou-se e foi saindo devagar, as lágrimas vieram aos olhos, não conseguiu reter. Ainda esperou que a mãe do João Marcos perguntasse por que estava indo embora, repreendesse o filho pela indelicadeza, o levasse de volta à roda. Mas ela desviou o olhar, certamente adivinhava tudo e até aprovava. Chegou em casa, a mãe dormia profundamente. Deixou o sabonete ainda no embrulho de presente sobre a mesa da sala, trancou-se no quarto e deixou o pranto correr solto. Mordia os lábios, apertava as mãos, respirava a custo. E ali mesmo fez uma jura: vingar-se daquela humilhação, nem que a isso dedicasse toda a sua vida.
E foi bom que meses depois apareceu alguém oferecendo uma grande quantia pela casa – pelo terreno, deixavam claro – muito valorizado por ser o último daquela rua grã-fina. Mudaram logo, para um apartamento perto do centro, mais à mão para os trabalhos da mãe e para o curso que começou a fazer – auxiliar de enfermagem, a mesma profissão do pai. Com muito esforço, trabalhando em dois hospitais, correndo como um louco, conseguiu depois cursar a faculdade, tornou-se enfermeiro diplomado. E tinha jeito para a profissão, era requisitado pelos médicos nas cirurgias mais complicadas, sabia os procedimentos, conhecia o instrumental como ninguém. Logo passou a chefe de enfermagem. Com a morte da mãe, vendeu o apartamento, comprou outro financiado, em um lugar mais decente, e foi pagando. Namorou, ficou noivo, casou, vieram duas filhas. Com os qüinqüênios, os adicionais de insalubridade e outros benefícios, aposentou-se cedo. E decidiu aceitar o convite para chefiar a enfermagem daquele hospital, numa cidade pequena, fora de toda a azáfama da capital, bem longe.
Sentado em sua mesa de trabalho, Herculano olhava a ficha de internação e não queria acreditar. Não, não era possível! Mas ali estava, que diabo, não havia dúvida. Paciente de emergência, trazido pela ambulância da polícia rodoviária, ferido em acidente na rodovia, era rotina naquele hospital. Havia até placas à margem da estrada avisando: “Em caso de acidente, levar os feridos para o Hospital X na cidade Y”. Mas aquele não era um acidentado qualquer, estava lá na ficha o nome: João Marcos Gotthelp Raposo. Pelo nome, pela filiação, pela foto da carteira de identidade, era ele, o autor da grande humilhação de sua vida! Que assim vinha parar em suas mãos, trazido pelo destino, pela justiça divina, por satanás! Não era mais o jovem de terno escuro e gravata vermelha, arrogante e altaneiro. Não. Agora era um apenas um ferido, quase sem vida, que tinha de ser operado às pressas. Perdera muito sangue com o rompimento da artéria femural, o médico já estava na sala de cirurgia. Na ficha estava também o tipo sangüíneo do paciente: 0 negativo, um sangue raro. E o médico já avisara: vai ser necessária a transfusão.
E agora? A cena toda passava e repassava em seu cérebro, como num cinema. Sentia as orelhas arderem, a boca secar, ouvia as risadas das moças, o olhar cúmplice da mãe do Raposo... e em casa, o ressonar suave de sua mãe, a mesa velha de pinho onde deixara o presente. De repente o filme se partia, as imagens aceleravam-se e lá estava o carro acidentado, a ambulância da polícia rodoviária. Há outros feridos? Não, só ele, vinha em grande velocidade, deve ter se desviado de algum caminhão. Tem fratura femural, já garroteamos. Mas perdeu muito sangue. E agora? Agora é fácil, muito fácil. Basta remover um pequeno traço, um tracinho de nada, e o tipo sangüíneo torna-se 0 positivo, pode ocorrer precipitação das hemácias, uma insuficiência renal aguda. Humilha agora, cachorro! Riam agora, putinhas de luxo! Que o seu príncipe encantado vai morrer todo sujo, sem uma perna, em um hospital de interior! Riam todos, vamos rir muito, isso aqui é uma festa, a festa de um motivo só: o dia da grande vingança!
No corredor do hospital, o médico discute com a enfermeira. Felizmente você chegou, Herculano! Não tem uma gota de sangue 0 negativo, a bagunça desse hospital é incrível. Já falei com o Dr. Celso, um hospital de emergência tem de ter estoque de sangue para três dias. E se fossem vários feridos com o mesmo tipo sangüíneo? Bom, você é um profissional experiente, único enfermeiro diplomado dessa cidade, sabe de que estou falando. E não tem culpa disso. Mas estou sem saber o que fazer vai ser necessária a transfusão. A D. Nadir me diz que seu tipo sangüíneo também é O negativo. Você pode ceder? Temos de fazer uma transfusão braço a braço, não há tempo a perder. Claro, ninguém pode obrigá-lo a isso. Mas onde encontrar um doador a essa hora de uma noite de sábado? Vamos para a sala de cirurgia.
Herculano ia andando como um autômato. O filme cessou de passar em sua cabeça, agora a cena é real: um leito de cirurgia, um homem entubado, uma fratura em bisel, um hemograma revelando anemia profunda. Os olhos do médico e da Dona Nadir vão do acidentado para Herculano, voltam para o paciente, tornam a voltar para ele. Sem uma palavra, ele despe o jaleco, coloca o garrote no braço esquerdo e deita na cama. Fecha os olhos, não quer ver nada, nem o filme nem a cena. Ouve a voz do médico:

- Herculano, talvez tenha de tirar um pouco mais, uns 400 gramas de sangue, ele está muito anêmico. Tudo bem?
- Tudo bem, doutor. Todo o sangue que for necessário.

Nenhum comentário: