sexta-feira, setembro 29, 2006

LINDAURA 90

Elpídio Navarro

E aconteceu a festa. Lindaura Pedrosa conseguiu reunir amigos que há muitos anos não se encontravam, para comemorar seus 90 anos de nascimento. Hugo Caldas, Pereira Nascimento, Marcelo Borges, Zete Farias, Fernando Teixeira, Edinaldo Navarro, Fabiano do Egipto, Anunciada Fernandes, Jandira Mesquita e a simpatia da família, comandada pela sobrinha Germana. Claro que eu também estava por lá. A grande surpresa foi que após 50 anos de sua encenação, a nossa boa atriz conseguiu fazer a cena inicial de "Pluft, O Fantasminha" ao lado de Marcelo Borges. Foi uma festa! Ainda teve a performance de uma sua sobrinha neta Giovanna, anunciando que dificilmente ela não terá uma herdeira no teatro. Abaixo as fotos do acontecimento sócio-teatral. Os leitores que me desculpem, pois nunca fui bom em crônica social.

Lindaura e o elenco de "Pluft, O Fantasminha" após 50 anos da estréia.


Elpídio Navarro, Hugo Caldas, Lindaura Pedrosa e Marcelo Borges


Com Edinaldo Navarro, Pereira Nascimento e Enide Rufo


Com Jandira Mesquita


Com Fernando Teixeira

quarta-feira, setembro 27, 2006

FILHOS NATURAIS

Riobaldo Tatarana

O paraibano Guy Joseph é artista plástico premiadíssimo, homem de vasto saber e inteligência, combativo defensor das boas causas. E é também um espírito de humor refinado, inventivo e sagaz. De vez em quando, ele gosta de bulir com os descendentes e agregados de João Pessoa, o homem, cujo nome passou a ser o da bela capital da Paraíba. O Guy acha que esse negócio de chamar a cidade pelo nome de uma pessoa, seja ela quem for, é de mau gosto e constitui uma arbitrariedade, já que ninguém foi consultado sobre essa substituição. O assunto enseja troca de artigos candentes nos jornais da terra: de um lado a verve cáustica do Guy e do poeta Marcos Maia, seu parceiro; do outro, os defensores do nome atual, um variado conjunto, desde intelectuais sérios e cultos, como Elpídio Navarro, nosso confrade neste blog, até os parentes, aderentes e beneficiários do próprio Pessoa, que há muitas décadas repousam em gordas sinecuras à sombra do nome ilustre.

Aqui em Recife, já lá vai tempo, uma de nossas diversões era mexer com os brios dos nossos vizinhos do norte. Naquela época (falo de meados do século passado) era comum que jovens solteiros, vindos do interior ou sem parentes na cidade, alugassem uma casa (os apês eram raros), que se chamava “república”. A nossa república, no velho bairro da Boa Vista, era formada por três recifenses e um paraibano, cujo nome prefiro não referir, pois não sei onde anda, nem se é ainda vivo, e se gostaria de ver-se citado sem licença. Os paraibanos têm várias qualidades, são leais, valentes, honestos e de uma sinceridade contundente. Mas sua característica mais geral e proeminente é um imenso orgulho (não sem razão) de sua terra, a “pequenina e heróica Paraíba”. Por conta disso, e de seu pavio geralmente curto, aceitam qualquer provocação, passam recibo para qualquer piada. Os recifenses, que são, como os cariocas, eméritos gozadores, aproveitam-se disso sem pudor algum, e nós, da república, elegemos nosso companheiro paraibano como alvo.

Lembro-me que a gente costumava requentar velhas piadas, do tipo: “João Pessoa é melhor do que Recife, porque Recife não tem para onde ir. E João Pessoa, tem Recife”. Outras vezes, dizíamos com a mais fingida sinceridade: “Nós adoramos João Pessoa. Com certeza, é o melhor bairro do Recife”. Ou quando víamos passar um ônibus bem velho, soltando fumaça, comentávamos: “Já está no ponto de mandar para João Pessoa”. A todas essas piadas nosso amigo dava o troco, ora com alusões ao fedor de certas ruas recifenses, ora com algum gesto obsceno. Mas havia uma brincadeira que fazia chegar-lhe a salmoura ao nariz: era quando perguntávamos se ele era mesmo “filho natural de João Pessoa”. Em geral ele respondia que “sim, com sua mãe”. Mas felizmente sempre tivemos o bom-senso de nunca passar da conta, até porque era um companheiro querido, inteligente e trabalhador, que muitas vezes nos socorreu na nossa permanente dureza.

Velhas piadas, velhos tempos. Recife cresceu demais, continua lindíssima, mas ficou violenta, e isso leva uma grande parte de sua graça. João Pessoa também cresceu, e muito, também continua linda, e a violência lá é quase nada, comparada com a nossa selva, ou com o Rio e São Paulo, que estão em permanente guerra civil. Em João Pessoa discute-se tudo, política, arte, cultura, religião. Mas parece que ninguém quer discutir essa história do nome da cidade. O Guy e o Marcos Maia bolaram uma campanha bem-humoradíssima para discutir o assunto, da qual ressalto essa frase, um verdadeiro achado de criatividade: SOU PARAÍBA E NÃO NEGO. Esse “nego” fica por conta do dístico que há na bandeira paraibana, e que muita gente pensa que é “nêgo”. Quem teria tido essa infeliz idéia de colocar um verbo tão negativo em uma bandeira já de si tão cafoninha, que mais parece um galhardete da torcida do Flamengo? Nego o quê? Já me explicaram o que é, mas não me lembro. Ninguém lembra. E tome gozação!

Eu particularmente sou contra esse negócio de pôr nome de gente em cidade. É um perigo, ainda mais que em geral põem-se nomes de políticos, e nós bem sabemos quem são essas figuras. Corre-se sempre o risco de rebatizar uma cidade, que tinha um nome inocente e poético, com o nome de algum calhorda. Lembrem-se de que Santo Domingo, capital da República Dominicana, já se chamou Ciudad Trujillo, em homenagem àquele ditador feroz. Na Paraíba mesmo, se não me engano, há uma cidade chamada Juarez Távora, coisa que, convenhamos, ninguém merece. No estado do Rio tem Petrópolis e Teresópolis, mas aí, além de os homenageados serem figuras de melhor quilate, o “polis” depois do nome suaviza tudo. Ou então pode-se bolar uma forma reduzida, como se fez com Florianópolis, que todos chamam carinhosamente de Floripa. Não consigo atinar com uma solução dessas para João Pessoa. Simplesmente João? Ou somente Pessoa? Há quem fale Jotapê, mas isso parece pseudônimo de colunista da falecida Revista do Rádio.

Acho bom acabar de vez com essa mania desastrosa. Já basta a fúria dos vereadores, que, para fingir que servem para alguma coisa, danam-se a mudar nomes de ruas, sempre na intenção de puxar o saco de algum poderoso. Que desgraçada mania! Já Bandeira lembrava dos belos nomes das ruas de sua infância recifense: rua da União, rua da Amizade, “Rua do Sol (Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)”. Por isso, eu, que não tenho nada a ver com essa briga, mas que amo a Paraíba e os paraibanos (sobretudo as paraibanas), ofereço aqui minha humilde opinião favorável à campanha do Guy e do Marcos Maia. E apelo para o bom-senso dos paraibanos: voltem ao nome “Paraíba”. É tão bonito ter o mesmo nome do estado, como era antigamente, como é o Rio de Janeiro. Não já tem a praça João Pessoa? Então? Pra que esse negócio de sujeitar-se a piadas de mau gosto? E troquem de bandeira, pelo amor de Deus! De onde acharam que preto e vermelho podem representar uma terra que justamente prima pela beleza de seus mares azuis, do verde exuberante de sua generosa arborização, famosa em toda parte, do amarelo de seus paus-d’arco? Há um verso, de uma velha canção de exaltação à Paraíba, que assim diz: “onde o azul do céu é mais cor de anil”. E então, amigos paraibanos? Vocês cresceram tanto em tamanho, cresçam também nisso: nome e bandeira são símbolos sagrados para a terra. Queiram os melhores para esse “recanto bonito do Brasil”.

terça-feira, setembro 19, 2006

O RECIFE QUE NÓS PERDEMOS

Riobaldo Tatarana

Vocês querem me ver zangado? Convidem-me para qualquer comemoração da batalha dos Guararapes. Nada contra o glorioso Exército brasileiro. Deus sabe com que emoção olho para o auriverde pendão e canto o hino nacional, o mais belo de todos os hinos. Mas tenho inveja de outros povos, como os argentinos e americanos, que apesar de seus hinos e bandeiras cafonas, são extremamente patriotas todo o tempo – e não só nas copas do mundo - não se envergonham de sua pátria, nem de seu Exército, nem de sua bandeira. Não me venham com ditadura militar e outros papos cansados. Travou-se uma guerra, esquerda e direita lutaram com coragem, nós perdemos, eles ganharam, mas felizmente tudo passou, veio a redemocratização, e com ela o paraíso de que hoje desfrutamos. Que nisso tinha razão Roberto Campos, ao afirmar a vantagem das ditaduras de direita sobre as de esquerda: as primeiras são biodegradáveis, acabam com a morte ou a velhice de seus manda-chuvas; já as de esquerda, que o digam Stálin, Fidel, Mao, Ceausescu...

E o que tem a batalha dos Guararapes a ver com isso? É que andei me informando melhor sobre o governo de Maurício de Nassau no Nordeste, suas obras, seus planos e projetos, e calculei o imenso prejuízo que tomamos com a expulsão dos holandeses. Se eles tivessem ficado por cá, muitas vantagens teríamos obtido, e que durariam até hoje, como até hoje duram as obras erigidas pelo nosso Johan Moritz van Nassau. Não foi por acaso que o povão criou essa expressão, “obra de holandês”, para referir-se a algo que dura muito tempo. Vejamos algumas dessas vantagens: em primeiro lugar, a tolerância religiosa. Apesar de calvinista, Nassau admitia, sem qualquer preconceito, a existência de quaisquer outras religiões, e até incentivava a construção de igrejas católicas perto de templos protestantes. Foi durante seu governo, precisamente em 1644, que erigiu-se em Recife a primeira sinagoga da América do Sul. Que diferença do rançoso e intolerante catolicismo ibérico, que para cá já nos enviara duas visitações do Santo Ofício, uma récua de sexopatas e fariseus, que puniram com terríveis castigos os judeus, homossexuais, adúlteros e quem mais ficasse atravessado em suas estreitas e infectas gargantas.

Mas há outras vantagens. Por exemplo, a língua. Falando holandês, certamente falaríamos também alemão, e aprenderíamos com muito mais facilidade o inglês. Como já tínhamos nosso bocado de português e tupi-guarani, afora umas tintas de francês, seríamos o único povo poliglota do mundo. Agora falamos apenas inglês e um pouco de português, que vai desaparecendo com nossa mania de americanalhar tudo, e com o lento e persistente trabalho de erradicação da língua lusa pelos internautas. Duvidam? Entrem numa sala de bate-papo da internet e verão que não são só os retardados mentais que conseguem comunicar-se em dialeto tatibitate. Ou leiam os manuais de aparelhos eletrônicos, sobretudo na área de informática, escritos, como bem disse João Ubaldo Ribeiro, em neandertalês. Nem nossa língua, “o idioma que o malandro pronuncia com voz macia”, o “brasileiro que já passou de português”, fomos capazes de amar e defender. Êta povinho, esse nosso!

Terceira vantagem: teríamos dupla nacionalidade, e poderíamos esnobar, como fazem as populações das Antilhas Holandesas, viajando sem passaporte, indo passar as férias nos Países Baixos, visitando os museus holandeses, apreciando in locu as pinturas de seus gênios, como Rembrandt e Van Gogh. Acham pouco? E nas copas do mundo poderíamos usar e abusar da bela cor laranja, em homenagem ao Orange de nosso patriarca. Em quarto lugar, quantos de nós não poderiam orgulhar-se de trazer em suas veias uma gota que fosse do sangue de Guilherme o Taciturno, nobilíssimo tio-avô do nosso Maurício? A quinta vantagem seria principalmente para nós, recifenses: nossa bela cidade seria belíssima, talvez a mais bela do mundo. Com a mania dos holandeses por água, seríamos de fato a “Veneza brasileira”, poderíamos perfeitamente percorrer a cidade de lanchas ou gôndolas, comer siri á beira d’água em Espinheiro e, quem sabe, ir até Igarassu e Goiana de barco.

A sexta e última das vantagens que vislumbro estaria na beleza irresistível de nosso povo. Os holandeses de hoje até que são meio mocoronguinhos, desbotados, enferrujadotes. Falta ali um bocado do vigoroso e ancestral sangue africano. Mas em Curaçao, em Barbados ou em Aruba, onde os galegos e galegas botaram pra quebrar com afro-descendentes e com os filhos e netos dos primeiros habitantes dali, vocês não fazem idéia da beleza daquela gente. É do Caribe! Que nós, como tivemos o aporte de muitos outros povos, acabamos até obtendo uma raça que, se não é bonita, é ao menos mui sestrosa e criativa. Imaginem como teríamos essas qualidades em grau maior se tivesse ocorrido um fluxo mais generoso de sangue batavo. Mas agora é tarde, fomos na onda de Henrique Dias, André Vidal e Felipe Camarão – este, o segundo índio colaboracionista do Brasil (o primeiro foi o Araribóia) - e mandamos barra afora nossos caros amigos holandeses. Bem feito! Os portugueses só queriam nosso ouro, nosso açúcar, nossa madeira. E construir igrejas imensas e tristonhas no lombo suado dos escravos. Mas também, quem nos mandou acreditar em piada de português?

segunda-feira, setembro 11, 2006

ABSALÃO, ABSALÃO

Carlos Mello

Sozinho, sentado na toalha para evitar as mordidas das baratinhas e vermes da areia, protegido do sol pela escassa sombra da barraca de praia, olho as pessoas que passam e vou-me dando conta de como as sucessivas gerações, a partir da minha, foram vindo cada vez mais altas, mais fortes e bonitas. Dou uma checada nas minhas pernas finas, nos braços sem músculos, na minha estatura que nem consegue fazer uma sombra razoável na brancura da areia. Nenhuma dessas mulheres maravilhosas, que passam à minha frente voando baixo, gasta mais de um segundo a olhar para mim. Todas dispõem de um radar seletivo, rápido e eficiente, e não perdem tempo. Eu é que olho pra elas embevecido, umas magras, mas coxudas, de pernas musculosas; outras mais para cheinhas, mas de corpo esguio, andar altaneiro. E todas com aquela cor entre o bronzeado de quem não sai da praia e aquele leve amorenado que faz a inveja das gringas, coitadas. Recém-chegadas aos trópicos, correm para a praia, besuntadas de cremes, na ânsia de trocar o azedo de sua brancura-rinso por uma certa morenidade. Pobrezinhas, passam pelas tonalidades mais inusitadas, primeiro ficam com aquele cor-de-rosa cafona, depois adquirem um tom entre o marrom claro e o bege, para finalmente descascarem e ficarem cheias de manchas escuras e brancas, como peixes. É duro ser branquelo. Mas é duro também ser baixinho, magrinho, meio barrigudo, reconheço.

O sol está a prumo, deve ser entre meio-dia e uma hora, tome de ultravioleta na pele. Devia dar uma caída na água, mas é sair dum forno e entrar num freezer, diabo de água gelada. Além disso, o aspecto desanima, há uma quantidade infinita de coisas boiando, restos de papel, copos de plástico, esse mar e essa areia são uma grande lixeira a céu aberto. Acho que vou tomar uma cerveja. Aqui não dá pra demorar, tudo esquenta rápido. Compro outra lata, é bom sentir na mão o contato da superfície gelada e roliça. Vou enxugando a terceira, enquanto observo a inventividade desses caras que percorrem a praia toda recolhendo latinhas. Põem cada uma em cima de um pedaço de madeira, dão uma pisada forte para achatá-la e vão recolhendo em um grande saco de plástico. Minha cabeça começa a ficar pesada, sinto vontade de deitar. O bom seria uma cadeira daquelas que viram quase uma cama. Na falta dela, improviso uma espécie de travesseiro com um montinho de areia sob a toalha e me estiro regalado. As vozes, o ruído da praia, vão ficando distantes, uma leve brisa torna o cochilo mais gostoso.

No meio da modorra sinto que alguém sentou ao meu lado, deve ser uma pessoa obesa e descomunal porque tapou o sol. Abro os olhos e levo um susto. Mas que é isso? Um hipopótamo? É um sujeito imenso, meio barrigudo, de pele lisa e cor de barro, com um ridículo calção vermelho e, na cabeça, uma coisa indefinida. Na minha tonteira, penso em “barrete frígio”. Será? Claro que não, o barrete frígio é outra coisa, parece mais uma touca, acho que é aquele chapéu que aparece na cabeça de Dante. O que é então? Um fez! É isso, me lembro bem, antigamente era acentuado pra não confundir com o e aberto de fez, singular de fezes, veja só aonde me leva meu raciocínio sonolento. Mas é isso mesmo, um chapeuzinho turco, em forma de cone cortado. Onde será que ele arranjou isso? E quem é essa figura? Algum turista indiano, desenturmado e solitário? Ele olha para mim com seus grandes olhos bovinos, eu desvio o olhar, finjo que estou dormindo. Mas ocorre uma coisa estranha, o cara começa a falar comigo em uma língua que nunca ouvi antes. E o misterioso é que entendo tudo, ele está me dizendo que está às ordens, que eu preciso dizer logo o que quero dele. É engraçado, fala que está às ordens, mas é ele que me ordena levantar e ir para casa. E eu obedeço, como se estivesse hipnotizado.

Quando entro em meu apê, o sujeito já lá está, sujando minha poltrona com a pele oleosa e cheia de areia. Ainda bem que minha mulher foi visitar a irmã. Ele me manda ficar de frente para o espelho do guarda-roupa e ir pedindo. E lá vou eu, mentalmente ordenando o que quero. Primeiro, passar dos meus modestos um metro e sessenta e poucos para um metro e noventa, não faço por menos. Mas fiquei um varapau horrível, é como esticar um elástico. Bom, então quero mais uns trinta quilos. O calção rasga-se e desce pelas pernas. Não, não é isso, não quero esse peso em banha, mas em músculo. Isso, agora fiquei parecendo um troglodita, parrudo e peludo. E careca, vamos botar cabelo aí, o cabelo que eu tinha aos 20 anos, negro e espesso. Mas continuo não gostando do conjunto, a cara não engana, falta aquele tchan que enlouquece as mulheres. Mando diminuir o nariz, inflar um pouco as bochechas, mas que diabo, parece que fiz botox. Começo a desesperar-me. Não dá pra melhorar, quando conserto um defeito, apresenta-se outro. E ainda estou muito peludo, as meninas não gostam desses king-kongs. Acho-me também um abominável ar envelhecido e suburbano.

O indiano está impaciente e parece dizer: se não é isso que quer, então peça um novo modelo, totalmente diferente. Mas qual? Não quero ser sósia de nenhum artista da Globo. Rebusco na memória: Hércules, Adônis? Mas essas são figuras mitológicas, tenho de evocar alguém que já existiu, de carne e osso. Mas quem? Lá da reserva técnica da memória vem vindo um nome. Quem? Absalão? Mas quem é Absalão? Só então me lembro da passagem bíblica, acho que está num dos livros de Samuel. Diz mais ou menos assim: que em toda a terra de Israel não havia ninguém mais formoso que Absalão, terceiro filho do rei Davi. Diz mais que “da planta dos pés ao alto da cabeça era sem defeitos”. E que seu cabelo era tão basto, que ele tinha de cortá-lo e pesá-lo uma vez por ano. Taí, esse tipo me serve. Torno a olhar pro espelho e quase desmaio de susto. Lá está, em vez de minha figura simplória, um latagão de uns dois metros de altura, forte como um touro, com rosto de galã de cinema mudo, e uma cabeleira negra e revolta como uma juba. O indiano impaciente lembra que tem de ir embora e pergunta se é isso mesmo que eu queria? É. E ele sumiu.

Agora, estou com um problema concreto. Com esse novo corpo, como sair à rua? Minhas roupas não entram. Felizmente lembrei-me a tempo de um bermudão, que meu cunhado obeso usou no carnaval, e ficou guardado no meu armário, no fundo de alguma gaveta. Consegui vesti-lo a custo, ficou meio ridículo, mas pelo menos não estou mais nu. Agora, é correr a alguma loja próxima e abastecer-me de roupas e sapatos, sandálias, cintos, o diabo. Para isso tenho meu cartão de crédito. Mas, e se pedirem identidade? O cara vai morrer de rir quando conferir a foto e a idade. É capaz de chamar a polícia e aí é que eu estava arrumado. Melhor ir ao banco, pegar dinheiro vivo. O guarda olha feio, disfarço fingindo que vou pôr a camisa. Agora, com a grana no bolso, já sei onde vou. Há uma loja de surfistas aqui perto, sempre que passava na calçada lançava um olhar invejoso para aquelas roupas vistosas, mais distantes de mim do que o Himalaia. Agora, não. Entro na maior moral e já vou escolhendo uma bermuda, camisetas. A vendedora vem se derretendo, pergunta “você quer ajuda?” Você? Ah é claro, o tratamento de “senhor” ficou pra trás, ninguém trata um jovem como eu dessa forma. O que é o hábito!

Já saio da loja paramentado, lindo de morrer. No caminho de volta para a praia, conto pelo menos umas dez mulheres, de vários tipos e idades, suspiram para mim como para uma promessa inalcançável. Lá está minha velha barraca, mas quem precisa dela? Prefiro ficar de pé, as mulheres passam, olham, tornam a passar mais rente, comentam em voz baixa. Ainda bem que comprei óculos escuros, não sabem para onde estou olhando. Por ora, quero apenas gozar meu sucesso. Depois verei o que fazer. Mas a verdade é que até a glória cansa. Volto pra casa, tomo um grande banho, visto as roupas novas que comprei. Vou almoçar em um restaurante fino, quero ver o que acontece. O maître corre pressuroso, dobra-se em dois, leva-me para uma mesa bem localizada, faz tudo para agradar o que lhe parece ser um turista abastado. Sento-me impassível e vou conferindo. Não há uma só mesa de onde não partam, aqui e acolá, olhares furtivos. Pela primeira vez na vida sinto a inveja agressiva dos homens, ah, os machos, na sua insegurança, parecem bisões que se dão marradas para ver quem fica com as fêmeas. Não estou nem aí pra eles, quero sentir é o olhar pidão das moças.

De repente entram três coisas lindas, aviões, visões celestiais, educadas, bem-vestidas, alegres. Agora é o teste máximo. Se olharem pra mim, passei com nota dez. Elas não olham pra ninguém, conversam entre elas, sorriem, superioras, donas de sua beleza, são como deusas, ou ninfas. Fico triste. Lá vem meu velho complexo de volta! E eu que pensava que ia arrasar todas! Qual, essas aí são inalcançáveis, mesmo para um Absalão. Serão lésbicas? Essa é uma boa desculpa pra calar meu despeito. Mas por que será que não olham? Sou, ou não sou, o cara mais lindo desse restaurante? Tenho vontade de conferir com o maître. Preciso policiar-me para não cometer nenhum desatino. Finjo ler o cardápio, viro a cadeira de forma a ficar quase de costas para elas. Que se danem! Onde vão encontrar um gato como eu? Lá vem o maître, cheio de mesuras. Quero comer ostras. Com champanhe. Cara, eu nem sei se essa mistura está certa, mas já pedi, o maître afasta-se num silêncio respeitoso. As moças lá estão, vejo com o rabo do olho. Agora ficaram mais discretas, conversam em voz baixa. E olham pra mim, uma vez, duas vezes. Como são lindas!

Enquanto o garçom vai dispondo os pratos e o champanhe, o maître aproxima-se com um sorriso meio tímido. Sussurra qualquer coisa sobre as moças, parece que elas me convidam à mesa delas. Mando o recado de volta, elas que venham para cá, eu cheguei primeiro. E elas chegam-se, na maior classe, como se de repente tivessem descoberto um velho amigo. Sou cavalheiro, fico de pé, puxo cadeiras, ajudado pelo maître. Querem saber de onde sou. Daqui mesmo. Mas não parece. Essa é boa! Por quê? Não sabemos, mas desde que chegamos, vimos que você é uma cara estranha. Aposto que é a primeira vez que vem a esse restaurante? É. Ta vendo? A gente sempre vem aqui, nunca te vimos antes. Bem, eu sou carioca, mas estava fora há muitos anos. É mesmo? Morando no exterior? Não, no sul. Tenho negócios lá, fazenda, empresa de comércio exterior. É mesmo? Nós também somos daqui, mas estávamos no exterior. Eu em Paris, elas duas no México. No México? Nunca fui lá. É legal? Muito, um país encantador. E a conversa vai fluindo por aí, as moças aderiram ao champanhe, mas já estão examinando o cardápio para o prato principal.

Isso não é propriamente um almoço, mas um banquete, de pratos requintados, vinhos caríssimos. A conta é astronômica, mas elas exigem dividir. Boas moças corretas. E ricas. Estão no carro de uma delas, um BMW verde escuro. Convidam-me para um café em casa de uma delas. Vamos para um terraço envidraçado, que avança sobre o mar. Poltronas sofás imensos e acolhedores, uma música discreta, um café com pauzinho de canela. Elas sentam-se à vontade, desinibidas, têm pernas maravilhosas. A que está ao meu lado segura minha mão, acaricia meu rosto. De repente nossos lábios estão colados. As outras se aproximam, sou dono das três. Ah se a turma me visse agora! Mas, de que adiantaria? Não iam me reconhecer nessa nova embalagem. As moças são como serpentes, deslizam suavemente, são ainda mais lindas sem roupas. Uma delas pergunta meu nome, engraçado, só agora lembraram disso. Eu não consigo falar, acabo de beijar uma, outra já vem com a boquinha sequiosa. E continuam a perguntar, querem saber o nome. Como posso dizer, se elas não param de beijar-me a boca? Começo a ficar sufocado, não consigo falar, pedir que parem um minuto. E elas a querer saber o meu nome. Estou sem ar, tento empurrá-las, mas cadê minha força?

Graças a Deus, elas me deixaram. Agora tem outra, bem diferente, que olha para mim, tão meiga. Conheço essa cara. É minha mulher! Ela sorri, passa a mão na minha cabeça. Olho para meu corpo é o velho corpo original, o do gatão hebreu sumiu. Estou suado, confuso, mas feliz. Minha mulher repreende-me, com seu jeito maternal. Bem que falou para eu não misturar, tinha tomado uísque, depois jantei com vinho. Mas onde estou? E as moças? Que moças, bem? Você estava sonhando! Eu? E o indiano? Que indiano querido? Acordei com seus gritos, vi que estava num pesadelo. Fui buscar uma toalha, para enxugar seu rosto. Não tem moça nenhuma, nem indiano. Não? Claro que não, bobo! Ainda bem que acordou, que parou de gritar! Gritar? O que eu estava gritando? Sei lá, uma palavra esquisita. Que palavra? Não sei, era como se fosse Absalão! Absalão!


sexta-feira, setembro 08, 2006

CRÔNICA DE DOMINGO

Vejam vocês: encontrei em meus arquivos implacáveis esta crônica de Valdez Juval datada de 27-07-2003. Como o conteúdo continua atualíssimo não resistí a tentação e a compartilho com todos. E pensar que corremos o risco serio de mais ... Deixa pra lá! Outubro vem aí. Hugo

Valdez Juval

ATÉ QUANDO?
Decepção! O que vemos e sentimos agora é um retrato triste de uma esperança frustrada. É o mesmo que nos prostrarmos diante de um espelho e comungarmos momentos de retorno; volta melancólica de um passado que ninguém quer reviver.
E relembramos um regime militar ditatorial, uma inércia de um Sarney, um confisco de um Collor, uma desesperança de um Fernando.

Ficamos sonhando para que, um dia, alguém pudesse vir salvar a Pátria.
E o povo acreditou. Acreditou em tudo o que foi dito. Ficou aguardando as mudanças prometidas. E as esperanças renasceram.
Por pouco tempo a demagogia barata se propalou.

Formou-se um Ministério sem preparo, contraditório e ridículo, chegando a culpar os nordestinos da fome e da miséria do País, oferecendo peixe, mas não sabendo ensinar como pescar. Assim mesmo o povo colabora. (Em termos, nova campanha dê ouro para o bem do Brasil).

Lembremos dos que convocam os pobres e ignorantes para que façam invasão na promessa de que chegando primeiro serão os beneficiados.
Recordemos ofertas de milhões de reais para tantas coisas ao mesmo tempo em que ninguém sabe se um dia chegarão ao destino. Até o funcionário público sonhou com a glória e o prazer de ter um aumento de salário depois de oito anos... Ridiculamente recebeu um por cento.
E que dizer da proibição de se protestar, um direito de todos e tão defendida no passado pelos atuais dirigentes, barrando-se pela força. A própria casa legislativa vive subordinada a um deus qualquer que usa máscaras tão sujas e feias que jamais seriam fabricadas até para um carnaval medíocre.

Ainda teríamos que falar sobre a Previdência, uma reforma necessária, mas em termos justos, não esquecendo que não adianta se arrecadar mais para continuar deixando nas mãos dos ladrões e sonegadores.

É muito mais fácil tirar dos que são obrigatoriamente bons pagadores como tão bem se pratica na arrecadação do imposto de renda.

Quanto às viagens... Parabéns, Presidente. O recorde já é seu.

Uma advertência para as pessoas do bem, os pacatos do Brasil: Cuidado! A baderna começou. As casas, as estradas, os campos, estão sendo invadidos com a devida omissão e proteção dos poderosos chefões. Não sabemos em que abismo vamos cair.
Uma pergunta apenas, adaptando a frase de Cícero:

"ATÉ QUANDO ABUSARÃO DE NOSSA PACIÊNCIA?"

quarta-feira, setembro 06, 2006

Introdução aos Conceitos de Platão - A Herança Socrática

Amigos
A cada dia o Blog fica mais importante. Hoje estamos honradíssimos com a bela matéria do Professor Serafim. Se não tomarmos cuidado isso aqui vai se transformar numa nova Academia.
Hugo

Antônio Serafim Rêgo Filho

O ano 407 a. C. foi decisivo para a filosofia grega e, por conseqüência, para todo o pensamento filosófico posterior. Foi nele que Platão, aos vinte anos de idade, tornou-se discípulo de Sócrates, então com sessenta e dois anos, permanecendo em sua companhia até a morte deste, em 399 a. C.

A forte personalidade do mestre, o novo espírito que ele introduzia nos debates intelectuais, com o sobrepujamento da reflexão cosmológica pela antropológica, seu destemor e visão crítica, calaram profundamente no ânimo do jovem discípulo, marcando-o para o resto da vida: “... meu querido e velho amigo Sócrates, a quem não temo proclamar o homem mais justo de seu tempo, ...” (Carta VII, 324 e), afirmará Platão em 354 a. C., aos setenta e três anos de idade, na qualidade de filósofo consagrado, distante quarenta e cinco anos do ocaso fatídico em que Sócrates tomou cicuta, após haver passado o dia no cárcere, cercado por seus amigos, discutindo sobre a alma e propondo uma teoria do conhecimento (Fédon, 117 c e ss.).
Eis por que julgamos conveniente discorrer, em rápidas observações, sobre os princípios socráticos, para que se possa melhor compreender Platão, especialmente nos primeiros escritos.

Numa guinada de 180 graus, em relação aos ensinamentos da Escola de Mileto e aos eleáticos, como também em comparação a seus contemporâneos Anaxágoras e Demócrito, Sócrates dedica-se ao exame dos problemas do homem. Não do homem abstrato, mas do ser humano concreto, do cidadão, tendência que Platão seguirá sempre que tratar dos valores éticos e cívicos do Estado.

“Um homem é assim, a meus olhos ... aquele que harmoniza suas palavras e seus atos segundo o modo dórico e não o jônico, e menos ainda ao frígio ou lídio, mas segundo o único verdadeiramente grego.” (Láques, 188 d)
“Vou raciocinar como se tratasse de cidadãos e atenienses reais e atuais.” (Timeu, 27 b)

Como Sócrates acreditava na exeqüibilidade de atingir uma certeza que independesse de subjetivismos, sem os artifícios dos sofistas, contra este destina grande parte de seus pronunciamentos. Protágoras sustentara que não há nada de fixo, não há verdades universais, que todas as aparências são verdadeiras e que, finalmente, o homem é a medida de todas as coisas. Este ceticismo e relativismo era visto por Sócrates como uma influência dissolvente para a moral. Por isso, procurava incutir na juventude ateniense a necessidade de conceitos claros e definições corretas.

Com a morte de seu mestre, Platão empunhará a bandeira da anti-sofística e não a abandonará mais.
“Protágoras pôde dissimular a toda a Grécia que está enganando e estropiando aos que se acercam dele, que os faz partir de seu lado piores que quando os recebeu.” (Ménon, 91 e)
“Dizendo a verdade, é impossível que seja sábio, posto que estabelecemos que não sabe de nada.” (Sofista, 268 b)

No Teeteto, obra de seu derradeiro período, ridiculariza os sofista declarando que “a ciência não é outra coisa que a sensação” (151 e), o que coincide com uma das teses de Protágoras.
Para Sócrates, conhecer é saber por conceitos, que exprimem o que as coisas, na realidade, são. Dizer o que são os fatos, é dizer a verdade. O conceito revela o percebido, portanto, é, no plano ontológico, a própria essência da realidade, sem deixar de ter, ao mesmo tempo, uma função lógica, e de constituir-se em uma nova ética, já que devemos agir de conformidade com os julgamentos formulados. Virtude é conhecimento, e a felicidade é o resultado da virtude, ou seja, não é possível ser virtuoso sem o saber.

“Conhece-te a ti mesmo”, dizia a inscrição no frontispício do Templo de Delfos, cujo sentido religioso ganha, com Sócrates, uma dimensão não só ética como política. Platão não ficará indiferente ante o postulado délfico-socrático, repetindo-o, inclusive, em fases distintas de seu escritos.
“Envergonhar-me-á menos confessar meu erro que conceder que se possa ser sábio sem sabê-lo, pois, pelo que me diz respeito, definiria gostosamente a sabedoria como o conhecimento de si mesmo, de acordo com o autor da inscrição de Delfos.”
(Cármides, 164 d)
“Nem seria possível que conhecêssemos o que nos convém se não conhecêssemos a nós mesmos.” (Alcibíades, 133 d)
“Acaso todos aqueles que se desconhecem a si mesmos não são necessariamente vítimas desta ilusão? “ (Filebo, 48 d)
O mal, constata-se pelos textos citados, deriva de um desconhecimento de si que é tomado como conhecimento, isto é, ninguém erra por querer, mas por necedade, que é a mais temível das enfermidades, asseverava Sócrates e confirmará Platão.
“ Todos os maus, em todas as suas faltas, são involuntariamente maus.” (Leis, IX, 860 d)

Isto apenas sanciona um posicionamento assumido desde os primeiros diálogos, e que será uma constante em sua filosofia, como o comprovam o Hípias Menor, 370 e; Górgias, 509 e; Protágoras, 357 d-e, 358 c; Alcibíades 117 a, 118 a; Sofista, 228 d, 229 c, 230 a; e o Timeu 86 b, 88 b.

Em suas investigações, Sócrates empregava um método peculiar: a ironia e a maiêutica. Afirmando, logo de início, que nada sabia sobre a proposição a ser debatida, levava seu interlocutor a ajuizar o seu significado.
"... não sou capaz de criar a sabedoria, daí a acusação que muitos me fizeram de que dedico meu tempo a interrogar aos demais sem que eu mesmo descubra coisa alguma por carecer em absoluto de sabedoria, acusação que resulta verdadeira.” (Teeteto, 150 c)

Ato contínuo, através de sucessivas perguntas que conduziam a um fim determinado, induzia seu interlocutor a admitir que a definição proposta era inadequada, que a erudição dele era bem menor do que pensava ou fazia crer.
“... será menos pesado para os que freqüentam tua conversação, e inclusive mais humano, porque já não pensarão que sabes o que realmente não sabes. Esse é todo o poder de minha arte. Nada mais pretende.” (Teeteto, 210 c)

Chegava-se, deste modo, a uma situação paradoxal: aquele que parecia saber, não sabia; o que dissera não saber, sabia.
“Por Héracles! Temos Sócrates outra vez com a sua costumeira ironia. Eu já havia dito a estes que tu não querias contestar e que simularias tuas conhecidas argúcias em vez de responder ao que se te perguntasse.” (República, I, 327 a)

O procedimento pedagógico socrático não se encerrava com a verificação do desacerto. Fazia-se necessário encontrar a verdade ou, no mínimo, indicar caminhos que pudessem levar a ela. Daí a segunda fase do seu método, a maiêutica, que consistia em, mais uma vez por intermédio de consecutivas interrogações e respostas, obter, por indução, um conceito geral do assunto objeto do diálogo que, segundo Sócrates, hibernava no indivíduo. A maiêutica, por conseguinte, assemelha-se a um parto provocado.
“A maior atração desta arte é que permite experimentar a todo evento se é uma imagem falsa, ou fecunda e verdadeira, a que engendra a inteligência do jovem. ... Resulta evidente, entretanto, que nada aprenderam de mim, pelo contrário, encontraram e iluminaram a si mesmos esses numerosos e formosos pensamentos.” (Teeteto, 150 c)
Sem deixar de registrar que lhe havia feito, antes, a apologia no Êutifron, no Sofista (230 b), por meio do Estrangeiro que orienta o contencioso, Platão enuncia ser esta a melhor técnica de ensino.

Sócrates, dirigindo-se a Teeteto, no texto que leva este nome, afirma: “Chegou, pois, o momento, querido Teeteto, de que descubras tua alma e de que eu a examine.” (Teeteto, 145 b)
A partir deste ponto, o método socrático dominará toda esta obra, embora – exceção feita ao Filebo - venha a ser a última vez que, neste período de produção filosófica, que vai do Parmênides ao Epínomis, Sócrates venha a se constituir no principal personagem. Aliás, precisamente no Filebo, não é o mesmo Sócrates dos primeiros escritos que fala, posto que demonstra uma atitude conciliatória entre a espiritualidade absoluta e o relativismo moral anteriormente não tolerado por ele.

Nas páginas dialéticas do Parmênides, Sofista e Político, Sócrates desempenha um papel secundário, cedendo seu ofício tradicional a Parmênides, no texto de idêntico nome, e ao Estrangeiro, nos outros dois diálogos. No Timeu e no Crítias, dominam o debate os personagens que emprestam seus nomes aos títulos. Finalmente, nas Leis e no Epínomis, que têm no Estrangeiro ateniense o condutor das disputas verbais, Sócrates sequer é mencionado.

Denunciado ao tribunal de júri por Meleto, Anito e Lícon no ano 400 a. C., sob uma acusação de caráter estritamente religioso – as inculpações políticas estavam proibidas – de corromper a mocidade ateniense por instigá-la a não crer nos deuses do Estado (Apologia, 29 a), o julgamento, ainda que terminando com a condenação de Sócrates, serviu para consagrá-lo como imbatível na capacidade de argumentar. Por outro lado, coerente com sua própria doutrina, mantém-se impassível, mesmo diante da ameaça real de ter a sua existência ceifada antecipadamente.

“Com efeito, temer a morte não é outra coisa que crer ser sábio sem o ser, pois é o mesmo que crer saber o que não se sabe: ninguém sabe sequer se a morte é para o homem o maior de todos os bens, e, não obstante, temem-na como se tivessem certeza de que seja o maior de todos os males.” (Apologia, 29 a).

“ Por não quererdes esperar um pouco mais de tempo, ireis obter má fama e ser objeto de incriminações: os que querem injuriar a cidade dirão que sois os assassinos de Sócrates, um homem sábio, pois, naturalmente me chamarão de sábio, embora não o seja, os que vos querem desaprovar.” (Apologia, ibidem)

Muitos anos mais tarde, já provecto, Platão ainda lembrará emocionado aquela cena, declarando, enfaticamente, que ela mudou o seu destino.
“ ... quiseram associá-lo a outros encargos de levar por força um cidadão para condena-lo à morte. ... Sócrates não obedeceu e preferiu expor-se aos piores perigos do que fazer-se cúmplice de ações criminosas. À vista de todas estas coisas, e de muitas outras do mesmo tipo e de não menor importância, senti-me cheio de indignação e apartei-me das desgraças desta época.” (Carta VII, 324 e – 325 a)

A convicção moral profunda, a exigência de conceitos universais presentes em todos os textos platônicos, tiveram como fonte de inspiração os ensinamentos socráticos. Não se trata, contudo, de uma repetição porquanto, com Platão, ganharam uma amplitude que não tinham antes. Agora os valores éticos serão questionados, esmiuçados em obras expostas à crítica e associados às virtudes da urbe e do cidadão; em conseqüência, cessarão de restringirem-se somente ao comportamento ético do citadino para estender-se à cidade: como for o primeiro, assim será a segunda.

O seu modelo de homem, entrementes, continuará sendo Sócrates, o especulador, o pensador por excelência. Para provar esta assertiva, nada mais eloqüente que nos lembramos que, exceção feita aos diálogos Leis e Epínomis, quase todas as páginas de Platão têm Sócrates como um dos personagens, senão como o principal interlocutor.
Recordemos também que a Apologia não é um singelo registro da sentença condenatória de Sócrates, mas uma contundente confirmação da sua superioridade sobre os seus acusadores, quer no aspecto moral, quer na habilidade de aduzir os raciocínios. A missão educativa de Sócrates, sua coragem e retidão são de igual modo sublinhadas no Críton e no Êutifron. O Górgias foi redigido com a finalidade precípua de livrá-lo de uma injusta infâmia. O Banquete conclui com um longo e passional elogio de Alcibíades a este filósofo, e as palavras finais do Ménon exaltam-no como ser humano e como pensador.

O desempenha de Platão como reformados do homem e da cidade de seu tempo, sem dúvida, está impregnado do engenho socrático que não pretende ser só espectador privilegiado da circunstância histórica vivenciada, mas que quer incitar seus concidadãos ao que imaginava ser o bem para eles e para a cidade. Sob este prisma, Platão é o continuador das análises, do método e da dialética de Sócrates.

Eis por que os primeiros escritos platônicos são inquirições minuciosas acerca das virtudes cívicas. Neles polemizam-se o dever (Críton), a coragem (Láques), a amizade (Lísis), a piedade (Êutifron), nos quais a figura de Sócrates exercita um recurso único, qual seja, a maiêutica. Em uma de suas felizes observações, Werner Jaeger observa: “Parece que se está a assistir a um curso prático de lógica elementar, dirigido por um cérebro superior.” (Paidéia, p. 555)

Em tais oportunidades, torna-se difícil estabelecer com precisão o que é platônico e o que é socrático. Todos os textos têm, entretanto, uma característica genérica: nenhum deles encerra-se com uma explicação categórica do objeto da investigação, provavelmente porque Platão apenas ensaiava os seus passos iniciais na senda da autonomia filosófica. Neste diálogos, o desfecho quando não é negativo, tem a sua solução interrompida. Exemplos do que acabamos de afirmar são o Hípias Maior, o Cármides, o Láques, o Lísis e o Protágoras. Essa suspensão do tema, deixando-o inconcluso, é peculiar deste primeiro período, denominado socrático.

Com o passar dos anos, as qualidades morais não serão esquecidas. Permanecerão como uma inquietação constante do filósofo até as derradeiras obras, apenas adquirindo uma acentuada tonalidade política.
Este arrebatamento pelas virtudes corre paralelo à sua obsessão invariável pelo bem e pela sabedoria, além de, não raras vezes, estarem intimamente vinculados. Virtude, conhecimento e bem são equiparados e relacionados na filosofia de Platão.

“A sabedoria é a única entre todas as ciências que tem ao mesmo tempo como objeto a si mesma e a todas as demais ciências.” (Cármides, 166 e)
“A sabedoria ocupa o primeiro lugar entre os bens divinos.” (Leis, I, 631 e)
Nesse estágio de seu desenvolvimento intelectual, Platão se revela preocupado em entender a natureza da matéria deste saber, que é o Bem, o que só será explicado através do expediente do Mundo das Idéias.

Sócrates fixara a norma para a cognição do Bem: para tê-lo, são indispensáveis a sabedoria e a virtude. Platão quer encontrar a via que conduz à sua realização, e que suporá haver conseguido ao definir os elementos constituintes da formação de um homem superior: o filósofo, único ser apto a contemplar o Bem e a efetuá-lo na cidade.
“As cidades não cessarão em seus males até que as governem os filósofos.” (República, VI, 487 e)

A realização do Bem pressupõe, em conseqüência, na filosofia platônica, a sabedoria, que é o conhecimento de si mesmo (Cármides, 104 d) pois, somente com a sua posse, é viável aperfeiçoar o ser humano, enquanto a ignorância é por ele tida como uma demência (Timeu, 86 b), a maior das enfermidades (Timeu, 88 b). Uma alma bem formada por uma educação correta deve ser boa, justa e sábia (Epínomis, 979 c).

O Protágoras é o ponto para onde convergem todas as discussões anteriores sobre as virtudes, nele condensadas sob o conceito de arte política que “... não pode ser ensinada, e que é inútil procurar o conhecimento dela em outro homem.” (319 b). A arte política compreende os quatro valores cívicos: a justiça, a prudência, a santidade e o pudor, que “... não são mais que distintos nomes de um único todo.” (Protágoras, 329 d)

Aqui aflora, mais uma vez, a vigorosa influência de Sócrates sofrida por Platão, uma vez que para o própria efetivação da virtude e, como efeito, do Estado modelo, só os bem-nascidos para uma educação exemplar (Político, 309 ab), os que são capazes de chegar à cognição de si mesmos, de avaliar o que cabe a si e aos outros, devem ser considerados aptos para a sua consecução. Por isto, têm a obrigação de encarregarem-se dos negócios da cidade.

Digno de nota é o duelo verbal que, no Protágoras, Platão, por intermédio do personagem Sócrates, trava com Pródicos, Hípias e o próprio Protágoras acerca da questão de se a virtude pode ser ensinada, quando, mais que dois pensamentos antagônicos, ressaltam-se dois métodos contrastantes: os sofistas apegam-se a longas exposições e ao comentário dos poetas, Sócrates aferra-se à discussão dialética. Ao final do diálogo, os interlocutores de Sócrates são flagrados asseverando o que a princípio negavam. E a contradição dá-se sem que eles a percebam.

Platão endereça aos sofistas os adjetivos mais injuriosos. No Sofista (223 b ss), define-os, consecutivamente, como caçadores de jovens ricos, comerciantes, vendedores de ensinamento, atletas de combates verbais, magos da linguagem que convertem o verdadeiro em falso até que exista o que não existe. Persiste em evidenciá-los como venais e, reputando ser a política o mais honroso encargo a que pode ser destinado um cidadão, conclui que os sofistas não podem ser autênticos políticos (Político, 291 c). Sustentando que a técnica sofista tem apenas semelhança com a ciência (Sofista, 231 b, 233 c), sentencia inexorável: “Dizendo a verdade, é impossível que seja sábio posto que concluímos que não sabe nada.”
(Sofista, 268 b)

Platão foi, como esperamos que tenha ficado manifesto, não só o melhor amigo e discípulo de Sócrates, mas igualmente o continuador de sua obra pedagógica e cívica. Os oitos anos de convivência com seu mestre, ouvindo os seus ensinamentos, observando seu processo de lidar com aliados e opositores, extasiando-se com a sua grandeza moral, marcaram-no para sempre. Não é por outra causa que o mais nobre encômio que Platão subscreveu a um contemporâneo em suas páginas, foi dirigido a Sócrates.

“Assim foi, ó Eqüécrates, o fim de nosso amigo, de um varão que, podemos afirmar, foi o melhor além de ser o mais sensato e justo dos homens de seu tempo que nos foi dado conhecer.” (Fédon, 118 a)

segunda-feira, setembro 04, 2006

AS FÃS DE FRANK SINATRA E AS DE ROBERTO CARLOS

ELPÍDIO NAVARRO

Lendo a matéria onde Tarcisio Pereira notícia que sua peça “As fãs de Roberto Carlos” está sendo montada por Edílson Alves (Companhia Paraibana de Comédia) e que são duas irmãs solteironas, um filme começou a ser exibido na minha memória mostrando a última vez que dirigi Ednaldo do Egipto. Foi em “As Fãs de Frank Sinatra”, de José Maria Rodrigues, também a história de duas solteironas apaixonadas pelo cantor americano, confundido por elas com um corretor de imóveis interessado na venda do apartamento. Antes que alguém imagine coisas, o texto de Tarciso nada tem a ver com o de Zé Maria, a não ser o título parecido. A lembrança veio por conta de ter sido a montagem mais inusitada de todas que realizei nesses mais de cinqüenta anos de teatro. É melhor começar a contar do começo, para não se perder o fio da meada.

Foi em 1982 que Ednaldo do Egipto convidou-me para dirigir “As Fãs de Frank Sinatra”, de José Maria Rodrigues Monteiro, seu amigo pessoal e naquela época fazendo teatro no Rio de Janeiro. Zé Maria também era meu amigo e durante a década anterior, quando ainda morava em João Pessoa, o havia dirigido em dois espetáculos: “Viva a Nau Catarineta” e “Pedro Corredor”. Escolhemos o elenco: Anunciada Fernandes e Zezita Matos nos papeis das duas irmãs e o próprio Ednaldo, no de corretor de imóveis. Haviam também mais dois papeis menores que a memória já não me permite lembrar quais eram.

Tudo corria bem e estávamos nos ensaios finais, de afinação, quando se deu a melódia: havia uma cena onde uma das irmãs ( a vivida por Anunciada Fernandes) fazia menção de pegar nas "partes" frontais do corretor (Ednaldo) e este recuava, evitando assim que ela alcançasse o seu intento. Num dos últimos ensaios Ednaldo não recuou e Anunciada alcançou o objetivo da personagem.

Foi uma confusão dos seiscentos diabos, com Anunciada acusando Ednaldo de não ter recuado propositadamente e Ednaldo justificando como um erro de tempo na ação. Enquanto Anunciada esbravejava, Ednaldo ia ficando vermelho. E explodiu: “Se eu fosse Alain Delon, Elpídio Navarro ou Zé Bezerra, você não estaria reclamando nada!” Aí acabou de complicar. Anunciada entregou o papel e retirou-se do elenco. Ednaldo, que era o produtor do espetáculo, não esmoreceu e chamou Lucy Camêlo para substituí-la. Outra excelente atriz, que nunca se furtou a socorrer elencos desesperados. E também foi essa a última vez que dirigi Lucy.

Anunciada Fernandes não perdeu tempo e reuniu outro elenco e foi montar a mesma “As Fãs de Frank Sinatra”, com o propósito de estrear, como vingança, no mesmo dia da nossa. E aconteceu: uma montagem no Theatro Santa Roza e outra no Teatro Lima Penante. E no programa da encenação de Anunciada dizia: "Direção de Anunciada Fernandes baseada na Direção de Elpídio Navarro”.

elnavarro@eltheatro.com

PÍLULAS DE VIDA DO DR. ROSS

Mais um que nos chega. Bem vindo, meu caro Salatiel. Pela primeira "pílula" vocês já devem estar sabendo de onde vem o personagem. Divirtam-se. H.C.

SALATIEL DA ANTUÉRPIA

Aí pelo final dos anos 50, uma minha tia, já madura, casou com um fazendeiro da Paraíba, homem de alguma posse, mas generosamente ignorante. Foram morar em Recife, na Rosa e Silva, no tempo em que essa rua era cheia de casas apalaçadas e terrenos fartamente arborizados. E ali viviam pacificamente, sempre no terraço, apreciando o movimento dos carros e ônibus, comendo pão de queijo e tomando cafezinho.

Em 1960, apareceu em Recife, vindo não sei de onde, Sua Majestade Hailé Selassié, imperador da Etiópia. Foi recebido, como era de direito, com honras de chefe-de-estado, ficou hospedado no Palácio das Princesas e deslocava-se pelas ruas em carro oficial, precedido de batedores e viaturas da polícia de sirene ligada, atroando a cidade que era, naqueles belos tempos, tão linda quanto hoje, mas muito mais pacífica e civilizada.
Minha tia estava com o marido no remanso do terraço quando, de repente, lá vem aquele escarcéu, o estrondo das motocicletas, a risada de hiena das viaturas, tudo em velocidade, fazendo o trânsito deslocar-se para o meio-fio. Ela, assustada, perguntou ao marido o que era aquele pandemônio. E ele: “É Salatiel, o rei da Antuérpia”.

AS TORTURAS DA DEMOCRACIA

Meu amigo Ivanildo, cearense de boa cepa, é dono da mais promissora loja de material de construção de Pedra de Guaratiba. De vez em quando, quando o sol está mais frio, pego a bicicleta e vou até lá, conversar com ele, matar saudades daquele tão expressivo quanto engenhoso falar nordestino. Um dia desses cheguei lá, ele conversava com um galego, um sarará entroncado, também dono de uma loja assim, em ponto menor, que queria passar-lhe seu estoque de querosene.
Uns sujeitos da Prefeitura tinham ido lá e perguntado pela licença para vender inflamáveis. Como ele não tivesse, nem jamais tivesse sabido de tal exigência, foi intimado, no prazo de uma semana, a desfazer-se das latas, ou seria multado e teria as latas apreendidas.
Meu amigo argumentava que não tinha espaço para tanto querosene, mas o homenzinho era insistente. Resolvi meter minha colher na conversa e perguntei por que ele não ia à Prefeitura e tirava a tal licença, resolvendo assim de uma vez o problema, sem perder a possibilidade de negociar com tão lucrativa mercadoria. E ele:

- Eu já fui lá, fiquei uma manhã inteira, mas desisti. É a maior democracia!

BENS INTOMBÁVEIS

Peguei um táxi para a rua do Bispo, no bairro do Estácio, em cima da hora para a aula na Universidade. Trânsito lento comecei a ficar nervoso, pois em universidade particular o regime do professor é prussiano: qualquer atraso, por menor que seja, o professor perde a primeira hora, e ainda fica obrigado a dar a aula, sem receber nada por ela.
Finalmente fomos chegando e o motorista, notando meu nervosismo, perguntou se eu trabalhava ali.

- É, sou professor da Universidade.

Ele conhecia bem aquela área, quando garoto pulava o muro pra tirar manga, roubar jaca. Era um enorme sítio, antes de ser comprado pela Universidade, que derrubou todas as árvores e só deixou de pé o casarão antigo, branco de janelas azuis, onde instalou a reitoria.

- Devia ser bem antigo isso aqui, hein? – perguntei.
E ele:

- Se é! Antiqüíssimo! Essa casa é pré-histórica. Por isso é que ela não pode ser tombada...

MARIA, DE FALA RUDE E SINCERA

O casal amigo mora em um belo apartamento no Leblon e tem a sorte de ter por cozinheira a Maria, uma baiana, moradora da Rocinha, que trouxe de sua terra guardados segredos de culinária. Faz qualquer prato, do trivial ao fino, tudo com maestria, uma verdadeira cordon bleu nacional.
Mas tem um problema, a Maria: a cada quatro palavras, pelo menos duas são palavrões cabeludos, capazes de fazer corar um deputado. Por isso, quando o casal amigo resolveu convidar um outro casal, mais ou menos de cerimônia, para jantar, advertiu a mestra-cuca: Maria, você hoje não fala nada! Nem que a casa esteja pegando fogo. Sirva o jantar caladinha, porque são pessoas de cerimônia, não queremos problemas.
E assim foi. O jantar, delicioso, seguido de uma divina sobremesa, foi gabado com os mais rasgados elogios pelos convidados. E a Maria, uma tumba. Apenas sorria, com seu alegre sorriso baiano.
Chega a hora de ir embora, os convidados despedem-se. Mas querem agradecer à Maria aquele sublime banquete. A dona da casa grita para a copa:

- Maria, os amigos já vão, estão te dando boa-noite!
E ela, enfiando a carinha brejeira pela porta da cozinha:

- Boa noite! E desculpem qualquer escrotidão...

SÁBIAS PALAVRAS DE UMA SÁBIA

Antonieta é a dona da editora de Belo Horizonte que, já lá vão duas décadas, publicou meu livrinho infantil. Lançamento no Rio, tarde de autógrafos em vários colégios bacanas de Belzonte, ainda tínhamos de ir a Itabira, para uma escola pública, cujas diretoras são colegas e amigas da Antonieta.
E lá fui eu, comovido como o diabo, por visitar a terra do Drummond, aquela que para o poeta era “apenas um retrato na parede. Mas como dói!” Mal sabia eu que uma emoção ainda maior me esperava. Os alunos tinham preparado uma adaptação da estorinha para o teatro, e eu vi ali, com os olhos piscando, aquele pequeno conto, que inventei para minha filhota, encenado com toda a graça.
Na volta, pegamos a estrada já de noite, escura, deserta. Na frente, Antonieta e o marido, atrás eu e a Elvira, escritora e artista excepcional, que ilustrara o livrinho. Na altura do Caraça, talvez inspirado pela escuridão, e o medo ancestral que ela nos inspira, lembrei aos amigos que o Pedro Nava fala, em suas memórias, de um político mineiro, senador ao tempo do Rio capital federal, que lhe confidenciara:

- Quando estou de noite em meu apartamento, na Av. Atlântica, ando sem problema de um lado pra outro, vou à cozinha, ao banheiro. Mas quando estou na minha casa, na fazenda, tenho medo que me apareça um trem.
Rimos muito do receio do senador. E aí a Antonieta contou que na fazenda deles os peões falam muito de sacis, mulas-sem-cabeça, zumbis. Um dia ela resolveu consultar Sinhá Ana, uma preta velha que é uma espécie de matriarca dos empregados, sabe rezas fortes, mezinhas para qualquer doença, dá conselhos judiciosos, enfim, uma grande e nobre figura.

- Sinhá Ana, o pessoal aqui vive falando em saci, mula-sem-cabeça, comadre Fulozinha.
Essas coisas existem mesmo? E Sinhá Ana, do alto de sua sabedoria secular:

- Dona Antonieta, tudo que tem nome existe.

domingo, setembro 03, 2006

MINHA AVENTURA COMO UM CRAQUE DE FUTEBOL

Aline Alexandrino é uma espécie de Bruxa misturada com Mulher-Gato. Grande figura. Grande professora. Grande amiga. Quando a gente pensa que a conhece na sua totalidade eis que ela tira mais alguma coisa do seu cinto de utilidades. Mas deixa a garota falar. Seja bem vinda caríssima: Hugo Caldas

Aline Alexandrino

Hugo, este conto, tinha que ter 20 linhas, fora o título, tinha que ser sobre este tema, e tinha que ser uma estória completa. Quando comecei tinha 2 páginas. Fui cortando daqui e dali, deu um trabalho danado mas valeu a pena porque ganhei um concurso, com jurados e tudo, da finada Rede Manchete, onde o prêmio era (tchan-tchan-tchan-tchan): IR PARA A COPA DE 1986 NO MÉXICO, POR 15 DIAS, COM TUDO PAGO, VIAGEM DE 1ª CLASSE, HOTEL 5 ESTRELAS EM ACAPULCO, INGRESSOS VIP PARA OS JOGOS,INCLUSIVE AS FINAIS, TRANSLADO PARA OS LOCAIS DOS JOGOS EM JATO EXCLUSIVO (a merda é que o Brasil perdeu...) E UMA AJUDA DE CUSTO DE US$ 500!!!! E EU FUI !!! Detalhe: a estória é verdadeira e aconteceu com a Degas aqui...


"Minha aventura como um craque de futebol começou com o sarampo do Alvinho. Eu tinha 7 anos e era goleiro reserva do time da rua. Alvinho era o titular, muito bom, e eu nunca tinha vez (apesar de que a bola era minha...). Mas era a semana de um jogo decisivo com o time da outra rua e dessa vez eles não podiam me barrar. Afinal, eu estava em forma porque treinava duro. Quem, melhor do que eu, pulava muro e subia em árvore com aquelas pernas enormes e flexíveis? Ainda assim, não foi fácil convencê-los. Argumentei, chorei, implorei, tive até que prometer a coleção de bolas de gude que meu pai trouxera do Rio. Finalmente chegou o dia do jogo e não podia ser melhor. Minha mãe estava na cidade fazendo compras e a empregada namorava na esquina. Fomos para o mangue, atrás da minha casa, me posicionei entre os 2 paus de vassoura que serviam de trave, e mandei ver. Foi um deslumbramento !... Agarrei tudo, até pensamento. Aí, justo quando o time estava me aceitando, aconteceu o inesperado. Meu pai voltou mais cedo do escritório e me flagrou no mangue, com lama até o olho, jogando com os meninos. Até hoje lembro o que senti. Ele freou o carro bruscamente, saltou, e caminhou para mim, que nem piscava. Apontou para o portão do quintal e disse: "JÁ PRA DENTRO! DESDE QUANDO MENINA JOGA FUTEBOL?!...
Naquela época, ser mulher dava cartão vermelho..."

Terra da Gente - Paraíba - Ecos Do Grande Evento


Amigos:

Transcrevo parte da coluna de Carlos Aranha, jornalista consagrado do Correio da Paraíba, data de hoje, 03-09-06, dando conta do imenso sucesso do lançamento do livro de Guy Joseph.
Hugo Caldas

"O setembro paraibano começou com chuva durante o dia e vento frio na madrugada, numa prova de que Mãe Natureza não faz mais climas nordestinos como os de antigamente.
Começou com chuva, mas sem estragar a verdadeira confraternização que foi a abertura da exposição de Guy Joseph na Usina Cultural Saelpa: “Terra da gente Paraíba”.

Além da presença do autor, que também lançou livro-álbum, a de Hugo Caldas, seu primo, vindo do Recife, me fez matar saudades. Hugo, que foi ator de teatro em João Pessoa e na Veneza Brasileira - onde decidiu morar - instalou cursos de inglês, continua um figuraço, com quem pude conversar ao lado de mestre Antônio Serafim do Rêgo Filho. Aliás, a noite esteve farta para boas conversas: Sérgio de Castro Pinto, Sônia Diniz, Goretti Zenaide, Francisco Barreto, Raimundo Nonato Filho (Bola), Altemir e Rosely Garcia, Gilberto Pekala, José Altino, Petrônio Souto, Wills Leal, Vitória Lima, Flávio Tavares, Fred Svendsen, Reginaldo Marinho... Uma refestança, que Guy merecia e sempre merecerá."

Caro amaigo "Spider" , data venia, não consegui me comunicar com Vossa Mercê a fim de rogar-lhe a devida autorização. Meu abraço juntamente com agradecimento pela carinhosa citação da minha humilde figura. Hugo

sábado, setembro 02, 2006

O JORNAL

VALDEZ JUVAL


Apanhei o jornal e levei comigo como companhia. Acessei a varanda do apartamento e lá tudo que queria já estava a postos. Minha eficiente secretária colocara o litro de rum, a coca, o isopor com gelo e rodelas de limão em um pires, alem de meu copo preferido.

Antes que preparasse a dose, comecei a verificar a importância daquele jornal em minhas mãos. Meu companheiro, meu debatedor, meu informador, meu amigo que faria esquecer momentos de solidão. Surpreendí-me com fatos que até então ignorava e que a própria internet não havia me comunicado (ainda).

De qualquer forma comecei a me deleitar com o que estava lendo, o que escrevia os cronistas, especialistas em suas colunas. Outro mundo que concordaría ou não, mas não tínha tido o prazer de conhecer.

Fui, pouco à pouco, entre goles da bebida que havía preparado, sentindo aquela existência existindo ao meu redor. Pena, e que pena! O jornal me sujava as mãos e as vestes. Tinta preta que soltava e me fazia sujo e portador de sujeira. Não gostaria que fosse assim. Fui me lavar algumas vezes até que resolvi não mais usá-lo.

Lamentável decisão! O jornal, meu companheiro, amigo, confessor (?) (revelava segredos que somente ele me fazia chegar ao subconsciente) teria que ser desprezado, jogado ao lixo pois me deixava marcas que forçava o abandono.

Pensando melhor: não teria mais valor o que ele me fazia ler que a simples tinta preta que me colocava nas mãos e nas vestes? E para a minha solidão? Que outra companhia teria se o jogasse fora? Lógico que não pude abandoná-lo e sinto sempre como é bom tê-lo diante dos olhos e em minhas mãos.

Ainda acho que não é de se trocar um jornal que nos suje as mãos por notícias divulgadas em um computador.

(EXCLUSIVO para os Sites “eltheatro”, ”semfronteiras” e o Blog “Unlimited”)