segunda-feira, setembro 04, 2006

PÍLULAS DE VIDA DO DR. ROSS

Mais um que nos chega. Bem vindo, meu caro Salatiel. Pela primeira "pílula" vocês já devem estar sabendo de onde vem o personagem. Divirtam-se. H.C.

SALATIEL DA ANTUÉRPIA

Aí pelo final dos anos 50, uma minha tia, já madura, casou com um fazendeiro da Paraíba, homem de alguma posse, mas generosamente ignorante. Foram morar em Recife, na Rosa e Silva, no tempo em que essa rua era cheia de casas apalaçadas e terrenos fartamente arborizados. E ali viviam pacificamente, sempre no terraço, apreciando o movimento dos carros e ônibus, comendo pão de queijo e tomando cafezinho.

Em 1960, apareceu em Recife, vindo não sei de onde, Sua Majestade Hailé Selassié, imperador da Etiópia. Foi recebido, como era de direito, com honras de chefe-de-estado, ficou hospedado no Palácio das Princesas e deslocava-se pelas ruas em carro oficial, precedido de batedores e viaturas da polícia de sirene ligada, atroando a cidade que era, naqueles belos tempos, tão linda quanto hoje, mas muito mais pacífica e civilizada.
Minha tia estava com o marido no remanso do terraço quando, de repente, lá vem aquele escarcéu, o estrondo das motocicletas, a risada de hiena das viaturas, tudo em velocidade, fazendo o trânsito deslocar-se para o meio-fio. Ela, assustada, perguntou ao marido o que era aquele pandemônio. E ele: “É Salatiel, o rei da Antuérpia”.

AS TORTURAS DA DEMOCRACIA

Meu amigo Ivanildo, cearense de boa cepa, é dono da mais promissora loja de material de construção de Pedra de Guaratiba. De vez em quando, quando o sol está mais frio, pego a bicicleta e vou até lá, conversar com ele, matar saudades daquele tão expressivo quanto engenhoso falar nordestino. Um dia desses cheguei lá, ele conversava com um galego, um sarará entroncado, também dono de uma loja assim, em ponto menor, que queria passar-lhe seu estoque de querosene.
Uns sujeitos da Prefeitura tinham ido lá e perguntado pela licença para vender inflamáveis. Como ele não tivesse, nem jamais tivesse sabido de tal exigência, foi intimado, no prazo de uma semana, a desfazer-se das latas, ou seria multado e teria as latas apreendidas.
Meu amigo argumentava que não tinha espaço para tanto querosene, mas o homenzinho era insistente. Resolvi meter minha colher na conversa e perguntei por que ele não ia à Prefeitura e tirava a tal licença, resolvendo assim de uma vez o problema, sem perder a possibilidade de negociar com tão lucrativa mercadoria. E ele:

- Eu já fui lá, fiquei uma manhã inteira, mas desisti. É a maior democracia!

BENS INTOMBÁVEIS

Peguei um táxi para a rua do Bispo, no bairro do Estácio, em cima da hora para a aula na Universidade. Trânsito lento comecei a ficar nervoso, pois em universidade particular o regime do professor é prussiano: qualquer atraso, por menor que seja, o professor perde a primeira hora, e ainda fica obrigado a dar a aula, sem receber nada por ela.
Finalmente fomos chegando e o motorista, notando meu nervosismo, perguntou se eu trabalhava ali.

- É, sou professor da Universidade.

Ele conhecia bem aquela área, quando garoto pulava o muro pra tirar manga, roubar jaca. Era um enorme sítio, antes de ser comprado pela Universidade, que derrubou todas as árvores e só deixou de pé o casarão antigo, branco de janelas azuis, onde instalou a reitoria.

- Devia ser bem antigo isso aqui, hein? – perguntei.
E ele:

- Se é! Antiqüíssimo! Essa casa é pré-histórica. Por isso é que ela não pode ser tombada...

MARIA, DE FALA RUDE E SINCERA

O casal amigo mora em um belo apartamento no Leblon e tem a sorte de ter por cozinheira a Maria, uma baiana, moradora da Rocinha, que trouxe de sua terra guardados segredos de culinária. Faz qualquer prato, do trivial ao fino, tudo com maestria, uma verdadeira cordon bleu nacional.
Mas tem um problema, a Maria: a cada quatro palavras, pelo menos duas são palavrões cabeludos, capazes de fazer corar um deputado. Por isso, quando o casal amigo resolveu convidar um outro casal, mais ou menos de cerimônia, para jantar, advertiu a mestra-cuca: Maria, você hoje não fala nada! Nem que a casa esteja pegando fogo. Sirva o jantar caladinha, porque são pessoas de cerimônia, não queremos problemas.
E assim foi. O jantar, delicioso, seguido de uma divina sobremesa, foi gabado com os mais rasgados elogios pelos convidados. E a Maria, uma tumba. Apenas sorria, com seu alegre sorriso baiano.
Chega a hora de ir embora, os convidados despedem-se. Mas querem agradecer à Maria aquele sublime banquete. A dona da casa grita para a copa:

- Maria, os amigos já vão, estão te dando boa-noite!
E ela, enfiando a carinha brejeira pela porta da cozinha:

- Boa noite! E desculpem qualquer escrotidão...

SÁBIAS PALAVRAS DE UMA SÁBIA

Antonieta é a dona da editora de Belo Horizonte que, já lá vão duas décadas, publicou meu livrinho infantil. Lançamento no Rio, tarde de autógrafos em vários colégios bacanas de Belzonte, ainda tínhamos de ir a Itabira, para uma escola pública, cujas diretoras são colegas e amigas da Antonieta.
E lá fui eu, comovido como o diabo, por visitar a terra do Drummond, aquela que para o poeta era “apenas um retrato na parede. Mas como dói!” Mal sabia eu que uma emoção ainda maior me esperava. Os alunos tinham preparado uma adaptação da estorinha para o teatro, e eu vi ali, com os olhos piscando, aquele pequeno conto, que inventei para minha filhota, encenado com toda a graça.
Na volta, pegamos a estrada já de noite, escura, deserta. Na frente, Antonieta e o marido, atrás eu e a Elvira, escritora e artista excepcional, que ilustrara o livrinho. Na altura do Caraça, talvez inspirado pela escuridão, e o medo ancestral que ela nos inspira, lembrei aos amigos que o Pedro Nava fala, em suas memórias, de um político mineiro, senador ao tempo do Rio capital federal, que lhe confidenciara:

- Quando estou de noite em meu apartamento, na Av. Atlântica, ando sem problema de um lado pra outro, vou à cozinha, ao banheiro. Mas quando estou na minha casa, na fazenda, tenho medo que me apareça um trem.
Rimos muito do receio do senador. E aí a Antonieta contou que na fazenda deles os peões falam muito de sacis, mulas-sem-cabeça, zumbis. Um dia ela resolveu consultar Sinhá Ana, uma preta velha que é uma espécie de matriarca dos empregados, sabe rezas fortes, mezinhas para qualquer doença, dá conselhos judiciosos, enfim, uma grande e nobre figura.

- Sinhá Ana, o pessoal aqui vive falando em saci, mula-sem-cabeça, comadre Fulozinha.
Essas coisas existem mesmo? E Sinhá Ana, do alto de sua sabedoria secular:

- Dona Antonieta, tudo que tem nome existe.

Um comentário:

Anônimo disse...

Olá, Hugo!
Não conhecia o seu blog.
Gostei, principalmente do seu texto.
Parabéns!
Rodrigo