quarta-feira, setembro 27, 2006

FILHOS NATURAIS

Riobaldo Tatarana

O paraibano Guy Joseph é artista plástico premiadíssimo, homem de vasto saber e inteligência, combativo defensor das boas causas. E é também um espírito de humor refinado, inventivo e sagaz. De vez em quando, ele gosta de bulir com os descendentes e agregados de João Pessoa, o homem, cujo nome passou a ser o da bela capital da Paraíba. O Guy acha que esse negócio de chamar a cidade pelo nome de uma pessoa, seja ela quem for, é de mau gosto e constitui uma arbitrariedade, já que ninguém foi consultado sobre essa substituição. O assunto enseja troca de artigos candentes nos jornais da terra: de um lado a verve cáustica do Guy e do poeta Marcos Maia, seu parceiro; do outro, os defensores do nome atual, um variado conjunto, desde intelectuais sérios e cultos, como Elpídio Navarro, nosso confrade neste blog, até os parentes, aderentes e beneficiários do próprio Pessoa, que há muitas décadas repousam em gordas sinecuras à sombra do nome ilustre.

Aqui em Recife, já lá vai tempo, uma de nossas diversões era mexer com os brios dos nossos vizinhos do norte. Naquela época (falo de meados do século passado) era comum que jovens solteiros, vindos do interior ou sem parentes na cidade, alugassem uma casa (os apês eram raros), que se chamava “república”. A nossa república, no velho bairro da Boa Vista, era formada por três recifenses e um paraibano, cujo nome prefiro não referir, pois não sei onde anda, nem se é ainda vivo, e se gostaria de ver-se citado sem licença. Os paraibanos têm várias qualidades, são leais, valentes, honestos e de uma sinceridade contundente. Mas sua característica mais geral e proeminente é um imenso orgulho (não sem razão) de sua terra, a “pequenina e heróica Paraíba”. Por conta disso, e de seu pavio geralmente curto, aceitam qualquer provocação, passam recibo para qualquer piada. Os recifenses, que são, como os cariocas, eméritos gozadores, aproveitam-se disso sem pudor algum, e nós, da república, elegemos nosso companheiro paraibano como alvo.

Lembro-me que a gente costumava requentar velhas piadas, do tipo: “João Pessoa é melhor do que Recife, porque Recife não tem para onde ir. E João Pessoa, tem Recife”. Outras vezes, dizíamos com a mais fingida sinceridade: “Nós adoramos João Pessoa. Com certeza, é o melhor bairro do Recife”. Ou quando víamos passar um ônibus bem velho, soltando fumaça, comentávamos: “Já está no ponto de mandar para João Pessoa”. A todas essas piadas nosso amigo dava o troco, ora com alusões ao fedor de certas ruas recifenses, ora com algum gesto obsceno. Mas havia uma brincadeira que fazia chegar-lhe a salmoura ao nariz: era quando perguntávamos se ele era mesmo “filho natural de João Pessoa”. Em geral ele respondia que “sim, com sua mãe”. Mas felizmente sempre tivemos o bom-senso de nunca passar da conta, até porque era um companheiro querido, inteligente e trabalhador, que muitas vezes nos socorreu na nossa permanente dureza.

Velhas piadas, velhos tempos. Recife cresceu demais, continua lindíssima, mas ficou violenta, e isso leva uma grande parte de sua graça. João Pessoa também cresceu, e muito, também continua linda, e a violência lá é quase nada, comparada com a nossa selva, ou com o Rio e São Paulo, que estão em permanente guerra civil. Em João Pessoa discute-se tudo, política, arte, cultura, religião. Mas parece que ninguém quer discutir essa história do nome da cidade. O Guy e o Marcos Maia bolaram uma campanha bem-humoradíssima para discutir o assunto, da qual ressalto essa frase, um verdadeiro achado de criatividade: SOU PARAÍBA E NÃO NEGO. Esse “nego” fica por conta do dístico que há na bandeira paraibana, e que muita gente pensa que é “nêgo”. Quem teria tido essa infeliz idéia de colocar um verbo tão negativo em uma bandeira já de si tão cafoninha, que mais parece um galhardete da torcida do Flamengo? Nego o quê? Já me explicaram o que é, mas não me lembro. Ninguém lembra. E tome gozação!

Eu particularmente sou contra esse negócio de pôr nome de gente em cidade. É um perigo, ainda mais que em geral põem-se nomes de políticos, e nós bem sabemos quem são essas figuras. Corre-se sempre o risco de rebatizar uma cidade, que tinha um nome inocente e poético, com o nome de algum calhorda. Lembrem-se de que Santo Domingo, capital da República Dominicana, já se chamou Ciudad Trujillo, em homenagem àquele ditador feroz. Na Paraíba mesmo, se não me engano, há uma cidade chamada Juarez Távora, coisa que, convenhamos, ninguém merece. No estado do Rio tem Petrópolis e Teresópolis, mas aí, além de os homenageados serem figuras de melhor quilate, o “polis” depois do nome suaviza tudo. Ou então pode-se bolar uma forma reduzida, como se fez com Florianópolis, que todos chamam carinhosamente de Floripa. Não consigo atinar com uma solução dessas para João Pessoa. Simplesmente João? Ou somente Pessoa? Há quem fale Jotapê, mas isso parece pseudônimo de colunista da falecida Revista do Rádio.

Acho bom acabar de vez com essa mania desastrosa. Já basta a fúria dos vereadores, que, para fingir que servem para alguma coisa, danam-se a mudar nomes de ruas, sempre na intenção de puxar o saco de algum poderoso. Que desgraçada mania! Já Bandeira lembrava dos belos nomes das ruas de sua infância recifense: rua da União, rua da Amizade, “Rua do Sol (Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)”. Por isso, eu, que não tenho nada a ver com essa briga, mas que amo a Paraíba e os paraibanos (sobretudo as paraibanas), ofereço aqui minha humilde opinião favorável à campanha do Guy e do Marcos Maia. E apelo para o bom-senso dos paraibanos: voltem ao nome “Paraíba”. É tão bonito ter o mesmo nome do estado, como era antigamente, como é o Rio de Janeiro. Não já tem a praça João Pessoa? Então? Pra que esse negócio de sujeitar-se a piadas de mau gosto? E troquem de bandeira, pelo amor de Deus! De onde acharam que preto e vermelho podem representar uma terra que justamente prima pela beleza de seus mares azuis, do verde exuberante de sua generosa arborização, famosa em toda parte, do amarelo de seus paus-d’arco? Há um verso, de uma velha canção de exaltação à Paraíba, que assim diz: “onde o azul do céu é mais cor de anil”. E então, amigos paraibanos? Vocês cresceram tanto em tamanho, cresçam também nisso: nome e bandeira são símbolos sagrados para a terra. Queiram os melhores para esse “recanto bonito do Brasil”.

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