segunda-feira, setembro 11, 2006

ABSALÃO, ABSALÃO

Carlos Mello

Sozinho, sentado na toalha para evitar as mordidas das baratinhas e vermes da areia, protegido do sol pela escassa sombra da barraca de praia, olho as pessoas que passam e vou-me dando conta de como as sucessivas gerações, a partir da minha, foram vindo cada vez mais altas, mais fortes e bonitas. Dou uma checada nas minhas pernas finas, nos braços sem músculos, na minha estatura que nem consegue fazer uma sombra razoável na brancura da areia. Nenhuma dessas mulheres maravilhosas, que passam à minha frente voando baixo, gasta mais de um segundo a olhar para mim. Todas dispõem de um radar seletivo, rápido e eficiente, e não perdem tempo. Eu é que olho pra elas embevecido, umas magras, mas coxudas, de pernas musculosas; outras mais para cheinhas, mas de corpo esguio, andar altaneiro. E todas com aquela cor entre o bronzeado de quem não sai da praia e aquele leve amorenado que faz a inveja das gringas, coitadas. Recém-chegadas aos trópicos, correm para a praia, besuntadas de cremes, na ânsia de trocar o azedo de sua brancura-rinso por uma certa morenidade. Pobrezinhas, passam pelas tonalidades mais inusitadas, primeiro ficam com aquele cor-de-rosa cafona, depois adquirem um tom entre o marrom claro e o bege, para finalmente descascarem e ficarem cheias de manchas escuras e brancas, como peixes. É duro ser branquelo. Mas é duro também ser baixinho, magrinho, meio barrigudo, reconheço.

O sol está a prumo, deve ser entre meio-dia e uma hora, tome de ultravioleta na pele. Devia dar uma caída na água, mas é sair dum forno e entrar num freezer, diabo de água gelada. Além disso, o aspecto desanima, há uma quantidade infinita de coisas boiando, restos de papel, copos de plástico, esse mar e essa areia são uma grande lixeira a céu aberto. Acho que vou tomar uma cerveja. Aqui não dá pra demorar, tudo esquenta rápido. Compro outra lata, é bom sentir na mão o contato da superfície gelada e roliça. Vou enxugando a terceira, enquanto observo a inventividade desses caras que percorrem a praia toda recolhendo latinhas. Põem cada uma em cima de um pedaço de madeira, dão uma pisada forte para achatá-la e vão recolhendo em um grande saco de plástico. Minha cabeça começa a ficar pesada, sinto vontade de deitar. O bom seria uma cadeira daquelas que viram quase uma cama. Na falta dela, improviso uma espécie de travesseiro com um montinho de areia sob a toalha e me estiro regalado. As vozes, o ruído da praia, vão ficando distantes, uma leve brisa torna o cochilo mais gostoso.

No meio da modorra sinto que alguém sentou ao meu lado, deve ser uma pessoa obesa e descomunal porque tapou o sol. Abro os olhos e levo um susto. Mas que é isso? Um hipopótamo? É um sujeito imenso, meio barrigudo, de pele lisa e cor de barro, com um ridículo calção vermelho e, na cabeça, uma coisa indefinida. Na minha tonteira, penso em “barrete frígio”. Será? Claro que não, o barrete frígio é outra coisa, parece mais uma touca, acho que é aquele chapéu que aparece na cabeça de Dante. O que é então? Um fez! É isso, me lembro bem, antigamente era acentuado pra não confundir com o e aberto de fez, singular de fezes, veja só aonde me leva meu raciocínio sonolento. Mas é isso mesmo, um chapeuzinho turco, em forma de cone cortado. Onde será que ele arranjou isso? E quem é essa figura? Algum turista indiano, desenturmado e solitário? Ele olha para mim com seus grandes olhos bovinos, eu desvio o olhar, finjo que estou dormindo. Mas ocorre uma coisa estranha, o cara começa a falar comigo em uma língua que nunca ouvi antes. E o misterioso é que entendo tudo, ele está me dizendo que está às ordens, que eu preciso dizer logo o que quero dele. É engraçado, fala que está às ordens, mas é ele que me ordena levantar e ir para casa. E eu obedeço, como se estivesse hipnotizado.

Quando entro em meu apê, o sujeito já lá está, sujando minha poltrona com a pele oleosa e cheia de areia. Ainda bem que minha mulher foi visitar a irmã. Ele me manda ficar de frente para o espelho do guarda-roupa e ir pedindo. E lá vou eu, mentalmente ordenando o que quero. Primeiro, passar dos meus modestos um metro e sessenta e poucos para um metro e noventa, não faço por menos. Mas fiquei um varapau horrível, é como esticar um elástico. Bom, então quero mais uns trinta quilos. O calção rasga-se e desce pelas pernas. Não, não é isso, não quero esse peso em banha, mas em músculo. Isso, agora fiquei parecendo um troglodita, parrudo e peludo. E careca, vamos botar cabelo aí, o cabelo que eu tinha aos 20 anos, negro e espesso. Mas continuo não gostando do conjunto, a cara não engana, falta aquele tchan que enlouquece as mulheres. Mando diminuir o nariz, inflar um pouco as bochechas, mas que diabo, parece que fiz botox. Começo a desesperar-me. Não dá pra melhorar, quando conserto um defeito, apresenta-se outro. E ainda estou muito peludo, as meninas não gostam desses king-kongs. Acho-me também um abominável ar envelhecido e suburbano.

O indiano está impaciente e parece dizer: se não é isso que quer, então peça um novo modelo, totalmente diferente. Mas qual? Não quero ser sósia de nenhum artista da Globo. Rebusco na memória: Hércules, Adônis? Mas essas são figuras mitológicas, tenho de evocar alguém que já existiu, de carne e osso. Mas quem? Lá da reserva técnica da memória vem vindo um nome. Quem? Absalão? Mas quem é Absalão? Só então me lembro da passagem bíblica, acho que está num dos livros de Samuel. Diz mais ou menos assim: que em toda a terra de Israel não havia ninguém mais formoso que Absalão, terceiro filho do rei Davi. Diz mais que “da planta dos pés ao alto da cabeça era sem defeitos”. E que seu cabelo era tão basto, que ele tinha de cortá-lo e pesá-lo uma vez por ano. Taí, esse tipo me serve. Torno a olhar pro espelho e quase desmaio de susto. Lá está, em vez de minha figura simplória, um latagão de uns dois metros de altura, forte como um touro, com rosto de galã de cinema mudo, e uma cabeleira negra e revolta como uma juba. O indiano impaciente lembra que tem de ir embora e pergunta se é isso mesmo que eu queria? É. E ele sumiu.

Agora, estou com um problema concreto. Com esse novo corpo, como sair à rua? Minhas roupas não entram. Felizmente lembrei-me a tempo de um bermudão, que meu cunhado obeso usou no carnaval, e ficou guardado no meu armário, no fundo de alguma gaveta. Consegui vesti-lo a custo, ficou meio ridículo, mas pelo menos não estou mais nu. Agora, é correr a alguma loja próxima e abastecer-me de roupas e sapatos, sandálias, cintos, o diabo. Para isso tenho meu cartão de crédito. Mas, e se pedirem identidade? O cara vai morrer de rir quando conferir a foto e a idade. É capaz de chamar a polícia e aí é que eu estava arrumado. Melhor ir ao banco, pegar dinheiro vivo. O guarda olha feio, disfarço fingindo que vou pôr a camisa. Agora, com a grana no bolso, já sei onde vou. Há uma loja de surfistas aqui perto, sempre que passava na calçada lançava um olhar invejoso para aquelas roupas vistosas, mais distantes de mim do que o Himalaia. Agora, não. Entro na maior moral e já vou escolhendo uma bermuda, camisetas. A vendedora vem se derretendo, pergunta “você quer ajuda?” Você? Ah é claro, o tratamento de “senhor” ficou pra trás, ninguém trata um jovem como eu dessa forma. O que é o hábito!

Já saio da loja paramentado, lindo de morrer. No caminho de volta para a praia, conto pelo menos umas dez mulheres, de vários tipos e idades, suspiram para mim como para uma promessa inalcançável. Lá está minha velha barraca, mas quem precisa dela? Prefiro ficar de pé, as mulheres passam, olham, tornam a passar mais rente, comentam em voz baixa. Ainda bem que comprei óculos escuros, não sabem para onde estou olhando. Por ora, quero apenas gozar meu sucesso. Depois verei o que fazer. Mas a verdade é que até a glória cansa. Volto pra casa, tomo um grande banho, visto as roupas novas que comprei. Vou almoçar em um restaurante fino, quero ver o que acontece. O maître corre pressuroso, dobra-se em dois, leva-me para uma mesa bem localizada, faz tudo para agradar o que lhe parece ser um turista abastado. Sento-me impassível e vou conferindo. Não há uma só mesa de onde não partam, aqui e acolá, olhares furtivos. Pela primeira vez na vida sinto a inveja agressiva dos homens, ah, os machos, na sua insegurança, parecem bisões que se dão marradas para ver quem fica com as fêmeas. Não estou nem aí pra eles, quero sentir é o olhar pidão das moças.

De repente entram três coisas lindas, aviões, visões celestiais, educadas, bem-vestidas, alegres. Agora é o teste máximo. Se olharem pra mim, passei com nota dez. Elas não olham pra ninguém, conversam entre elas, sorriem, superioras, donas de sua beleza, são como deusas, ou ninfas. Fico triste. Lá vem meu velho complexo de volta! E eu que pensava que ia arrasar todas! Qual, essas aí são inalcançáveis, mesmo para um Absalão. Serão lésbicas? Essa é uma boa desculpa pra calar meu despeito. Mas por que será que não olham? Sou, ou não sou, o cara mais lindo desse restaurante? Tenho vontade de conferir com o maître. Preciso policiar-me para não cometer nenhum desatino. Finjo ler o cardápio, viro a cadeira de forma a ficar quase de costas para elas. Que se danem! Onde vão encontrar um gato como eu? Lá vem o maître, cheio de mesuras. Quero comer ostras. Com champanhe. Cara, eu nem sei se essa mistura está certa, mas já pedi, o maître afasta-se num silêncio respeitoso. As moças lá estão, vejo com o rabo do olho. Agora ficaram mais discretas, conversam em voz baixa. E olham pra mim, uma vez, duas vezes. Como são lindas!

Enquanto o garçom vai dispondo os pratos e o champanhe, o maître aproxima-se com um sorriso meio tímido. Sussurra qualquer coisa sobre as moças, parece que elas me convidam à mesa delas. Mando o recado de volta, elas que venham para cá, eu cheguei primeiro. E elas chegam-se, na maior classe, como se de repente tivessem descoberto um velho amigo. Sou cavalheiro, fico de pé, puxo cadeiras, ajudado pelo maître. Querem saber de onde sou. Daqui mesmo. Mas não parece. Essa é boa! Por quê? Não sabemos, mas desde que chegamos, vimos que você é uma cara estranha. Aposto que é a primeira vez que vem a esse restaurante? É. Ta vendo? A gente sempre vem aqui, nunca te vimos antes. Bem, eu sou carioca, mas estava fora há muitos anos. É mesmo? Morando no exterior? Não, no sul. Tenho negócios lá, fazenda, empresa de comércio exterior. É mesmo? Nós também somos daqui, mas estávamos no exterior. Eu em Paris, elas duas no México. No México? Nunca fui lá. É legal? Muito, um país encantador. E a conversa vai fluindo por aí, as moças aderiram ao champanhe, mas já estão examinando o cardápio para o prato principal.

Isso não é propriamente um almoço, mas um banquete, de pratos requintados, vinhos caríssimos. A conta é astronômica, mas elas exigem dividir. Boas moças corretas. E ricas. Estão no carro de uma delas, um BMW verde escuro. Convidam-me para um café em casa de uma delas. Vamos para um terraço envidraçado, que avança sobre o mar. Poltronas sofás imensos e acolhedores, uma música discreta, um café com pauzinho de canela. Elas sentam-se à vontade, desinibidas, têm pernas maravilhosas. A que está ao meu lado segura minha mão, acaricia meu rosto. De repente nossos lábios estão colados. As outras se aproximam, sou dono das três. Ah se a turma me visse agora! Mas, de que adiantaria? Não iam me reconhecer nessa nova embalagem. As moças são como serpentes, deslizam suavemente, são ainda mais lindas sem roupas. Uma delas pergunta meu nome, engraçado, só agora lembraram disso. Eu não consigo falar, acabo de beijar uma, outra já vem com a boquinha sequiosa. E continuam a perguntar, querem saber o nome. Como posso dizer, se elas não param de beijar-me a boca? Começo a ficar sufocado, não consigo falar, pedir que parem um minuto. E elas a querer saber o meu nome. Estou sem ar, tento empurrá-las, mas cadê minha força?

Graças a Deus, elas me deixaram. Agora tem outra, bem diferente, que olha para mim, tão meiga. Conheço essa cara. É minha mulher! Ela sorri, passa a mão na minha cabeça. Olho para meu corpo é o velho corpo original, o do gatão hebreu sumiu. Estou suado, confuso, mas feliz. Minha mulher repreende-me, com seu jeito maternal. Bem que falou para eu não misturar, tinha tomado uísque, depois jantei com vinho. Mas onde estou? E as moças? Que moças, bem? Você estava sonhando! Eu? E o indiano? Que indiano querido? Acordei com seus gritos, vi que estava num pesadelo. Fui buscar uma toalha, para enxugar seu rosto. Não tem moça nenhuma, nem indiano. Não? Claro que não, bobo! Ainda bem que acordou, que parou de gritar! Gritar? O que eu estava gritando? Sei lá, uma palavra esquisita. Que palavra? Não sei, era como se fosse Absalão! Absalão!


2 comentários:

Anônimo disse...

Gostei muito do seu conto. Espero
que você reúna todos os escreveu
em um livro. Terei imenso prazer
em adquiri-lo. Fique certo que,
primeiro, talento não lhe falta;
segundo, não estou jogando confete
em você, já que nunca fiz, nem
farei, isso.
Um forte e estreito abraço,
Serafim

Anônimo disse...

Amigos do blog,
Este é um adendo ao meu primeiro
comentário que, por falta minha, não foi incluído naquela oportuni-
dade. Os contos de Carlos Mello
têm algo específico que os enqua-
dram nesse gênero literário: têm
raconto. A meu ver, conto sem ra-
conto não é conto. É o mesmo caso
do soneto que, se não tem o acento
na 6ª e 10ª sílabas poéticas, não
é soneto. Exemplo:
"Alma minha,gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente..." (Camões)
Assim, existem muitos "sonetistas",
por aí, sem saber o que é soneto;
como existem muitos "contistas"
que jamais analisaram Maupassant,
Thecov ou Aníbal Machado (amo, de
modo especial, "O iniciado do vento", do livro "A Porta-Estandarte e outras estória"). Fico
feliz em ler, ultimamente, os contos de Carlos, que são contos.
Um abraço para todos,
Serafim