segunda-feira, março 10, 2008

ÚLTIMA CORRIDA DE TOUROS DE SALVATERRA.


Do amigo Breno Grisi recebo a matéria abaixo:

Caro amigo Hugo:

Eis que há alguns dias atrás reuni-me com mais três colegas dos tempos da escola de Tércia Bonavides e veio à tona uma conversa sobre ensino, educação e conteúdo (este último, cada vez mais raro hoje em dia; vejam-se as já famosas “pérolas do ENEM” que abundam nas mensagens pela internet). E após tal encontro, eis que um deles, Everardo Nóbrega de Queiroz (filho do Dr. Otacílio Queiroz), envia-me um texto de Rebelo da Silva, tirado da famosa Crestomatia, com o título de ÚLTIMA CORRIDA DE TOUROS DE SALVATERRA. Na Wikipédia, a primeira linha sobre este autor reza: Luís Augusto Rebelo da Silva (Lisboa, 2 de Abril de 1822 — Lisboa, 19 de Setembro de 1871) foi um jornalista, historiador, romancista e político português, colaborador activo de múltiplos periódicos e membro das tertúlias intelectuais e políticas lisboetas da última metade do século XIX.

Em se apresentando oportunidade e conforme a conveniência e coerência com o “Blog do Hugão”, talvez seja bom este “recuerdo” do tempo da Crestomatia e do curso ginasial. Em anexo o texto sumarizado.

Abraço, Breno

Última Corrida de Touros em Salvaterra

O sr. D. José, primeiro do nome, era em Salvaterra um rei em férias. Uma tourada real chamara a corte a Salvaterra. Os fidalgos respiravam nestas ocasiões menos oprimidos. Não os assombrava tão de perto a privança do ministro. Os touros eram bravos, os cavaleiros destros, o anfiteatro pomposo e o cortejo das damas adorável. O prazer ria na boca de todos. Por cúmulo de venturas o marquês de Pombal ficara em Lisboa, retido pelo conflito com o embaixador de Espanha.

Mas vamos aos touros reais. Desses é que o ministro (Marquês de Pombal) não gostava nada. Mas El-Rei D. José, cedendo em tudo ao marquês, quanto aos touros não admitia reflexões.

Correram-se as cortinas da tribuna real. Rompem as músicas. Chegou El-Rei, e logo depois entra pelos camarotes o vistoso cortejo, e vê-se ondear um oceano de cabeças e de plumas. Na praça soam brava alegria as trombetas, as charamelas e os timbales. Aparecem os cavaleiros, fidalgos distintos todos, com o conto das lanças nos estribos e os brasões bordados no veludo das gualdrapas dos cavalos. Os capinhas e forcados vestem com garbo à castelhana antiga. No semblante de todos brilha o ardor e o entusiasmo.

O Conde de Arcos, entre os cavaleiros, era quem dava mais na vista. O seu trajo, cortado à moda da antiga corte de Luís XV, de veludo preto, fazia realçar a elegância do corpo. Filho do Marquês de Marialva e discípulo querido de seu pai, do melhor cavaleiro de Portugal, e talvez da Europa, a cavalo, a nobreza e a naturalidade do seu porte enlevavam os olhos.

A bizarria com que percorreu a praça, domando sem esforço o fogoso corcel, arrancou prolongados e repetidos aplausos. Na terceira volta, obrigando o cavalo quase a ajoelhar-se diante de um camarote, fez que uma dama escondesse turvada no lenço as rosas vivíssimas do rosto. Principiou o combate.

Tinham-se picado alguns bois. Abriu-se de novo a porta do curro, e um touro preto investiu com a praça. Era um verdadeiro boi de circo. Armas compridas e reviradas nas pontas, pernas delgadas e nervosas, indício de grande ligeireza, e movimentos rápidos e bruscos, sinal de força prodigiosa.

Nenhum dos cavaleiros se atreveu a sair contra ele. De repente viu-se o Conde dos Arcos firme na sela provocar o ímpeto da fera. Um rugido tremendo, uma aclamação imensa do anfiteatro inteiro, e as vozes triunfais das trombetas e charamelas encerraram esta sorte brilhante. Quando o nobre mancebo passou a galope por baixo do camarote, diante do qual pouco antes fizera ajoelhar o cavalo, a mão alva e breve de uma dama deixou cair uma rosa, e o conde, curvando-se com donaire sobre os arções, apanhou a flor do chão sem afrouxar a carreia, levou-a aos lábios e meteu-a no peito.

O mancebo desprezava o perigo e pago até da morte pelos sorrisos, que seus olhos furtavam de longe, levou o arrojo a arripiar a testa do touro com a ponta da lança. Precipitou-se então o animal com fúria cega e irresistível. O cavalo baqueou trespassado e o cavaleiro, ferido na perna, não pode levantar-se. Voltando-se sobre ele o boi enraivecido arremessou-o aos ares, esperou-lhe a queda nas armas, e não se arredou senão quando, assentando-lhe as patas sobre o peito, conheceu que o seu inimigo era um cadáver. El-Rei D. José, com as mãos no rosto, parecia petrificado. Mas o drama ainda não tinha concluído. O Marquês de Marialva assistira a tudo do seu lugar e o marquês perdido o filho, luz da sua alma e ufania das suas cãs, não proferiu uma palavra, não derramou uma lágrima; mas os joelhos fugiam-lhe trêmulos, e a elevada estatura inclinou-se vergando ao peso da mágoa excruciante.

Volveu, porém, em si, decorridos momentos. A lívida palidez do rosto tingiu-se de vermelhidão febril subitamente. Sem querer ouvir nada, desceu os degraus do anfiteatro, seguro e resoluto como se as neves de setenta anos não lhe branqueassem a cabeça.

- Sua majestade ordena ao Marquês de Marialva, que aguarde as suas ordens! Disse um camarista detendo-o pelo braço. O velho estremeceu como se acordasse sobressaltado. Desviando depois a mão que o suspendia, baixou mais dois degraus.

- Sua majestade entende que este dia foi já bastante desgraçado e não quer perder nele dois vassalos. O marquês desobedece às ordens de El-Rei?!

- El-Rei manda nos vivos e eu vou morrer! - atalhou o ancião, em voz áspera mas sumida - Aquele é o corpo do meu filho! - e apontava para o cadáver - Está ali! Sua Majestade pode tudo menos desarmar o braço do pai, menos desonrar os cabelos brancos do criado que o serve há tantos anos. Deixe-me passar, e diga isto.

O pai angustiado ajoelhou junto do corpo do filho e pensou-lhe depois um ósculo na fronte. Desabrochou-lhe o talim e cingiu-o, levantou-lhe do chão a espada e correu-lhe a vista pelo fio e pela ponta de dois gumes. Passou depois a capa no braço e esbriu-se. Decorridos instantes estava no meio da praça e devorava o touro com a vista chamejante, provocando-o para o combate. Fez-se no circo um silêncio gélido.

O touro arremete contra ele.Uma e muitas vezes o investe cego e irado, mas a destreza do marquês esquiva sempre a pancada. O combate demora-se. A vida dos espectadores resume-se nos olhos.

A imensidade da catástrofe imobiliza todos. De súbito, solta El-Rei um grito e recolhe-se para dentro da tribuna. O velho aparava a peito a marrada do touro, e quase todos ajoelharam para rezarem por alma do último Marquês de Marialva.

A aflitiva pausa apenas durou momentos. Por entre as névoas, de que a pupila trémula se embaciava, viu-se o homem crescer para a fera, a espada fuzilar nos ares e logo após sumir-se até aos copos entre a nuca do animal. Clamores unísonos saudaram a vitória. O marquês, que tinha dobrado o joelho com a força do golpe, levantava-se mais branco do que um cadáver. Sem fazer caso dos que o rodeavam, tornou a abraçar-se com o corpo do filho, banhando-o de lágrimas e cobrindo-o de beijos. El-Rei, de pé e muito pálido, tinha junto de si o marquês de Pombal.

- Foi a última corrida, marquês. A morte do Conde de Arcos acabou com os touros reais enquanto eu reinar.

- Assim o espero da sabedoria de Vossa Majestade. Não há tanta gente nos seus reinos, que possa dar-se um homem por um touro...

D. José I cumpriu a palavra dada ao seu ministro. No seu reinado nunca mais se picaram touros reais em Salvaterra.

in Rebelo da Silva, "Contos e Lendas"

Um comentário:

jana disse...

uma tristeza esse negócio de tourada. Covardia sem nome. Apertam os testículos do touro, ele fica brabo, claro, pulam em cima do bicho e se acham machérrimos. Umas bichas enrustidas, esses espanhóis.