
W. J. Solha
Tive um prazer enorme ao fazer o conto “Capitu. E Escobar”, pra coletânea organizada por Rinaldo de Fernandes... ... entre outras coisas, por conta da reconstituição histórica a que me vi forçado, a fim de recriar o ambiente bem Rio de Janeiro 1899, quando o livro foi lançado.

Mas se deu que, num determinado ponto, escrevi:
Escobar pôs o havana entre os dentes, pegou a valise de sobre a mesa, seguiu Capitu até o gabinete de Bentinho,viu-a dar a volta ao bureau e sentar-se na poltrona giratória.
Pumba: alguém me disse que não havia poltronas giratórias na época. E realmente não as havia... brasileiras. As primeiras, fabricadas aqui, segundo alguns, são de 1953, conforme outros, de 1930. Mas eu vira – antes de trabalhar no conto – uma dessas peças – trazida dos Estados Unidos - na foto do escritório de uma professora de Piracicaba, SP, no final do século XIX, fato que parece confirmado por este anúncio de antiquário:

Bentinho era rico e mandara buscá-la. Why not?...
Mas tudo depende do contexto. Quando, em 1969, na Paraíba, produzimos em branco e preto (porque não tínhamos capital para um filme em cores) o longa-metragem “O Salário da Morte”, do Linduarte Noronha, eu e o José Bezerra Filho fomos considerados anacrônicos e falimos. Quando, DOIS ANOS DEPOIS, Bogdanovich fez – também em preto e branco - “A Última Sessão de Cinema” - foi elogiadíssimo... porque retratava os anos 50... e fizera um grande filme.
O bigode de Dali, repetindo (e exagerando) , no século XX, o de Felipe IV – retratado por Velásquez, no século XVII – nem por isso foi anacrônico, pois ao fazer algo que há séculos não mais se fazia, cumpriu sua função: manter o mundo antenado no fato de que ali havia alguém... diferente, doido como seus quadros.

Tratava-se de um gracejo. Como o destas ilustrações.

Às vezes o anacronismo é casual.

O que se vê na foto abaixo, com Ben-Hur numa quadriga emparelhada com um calhambeque parece nonsense, anacronismo, porém o carro apenas conduz as câmeras. Mas calhambeque? Em 1959?

Não, trata-se da filmagem de uma cena da versão anterior à que todos conhecemos, em branco e preto, de 1925.

Em 1991 houve o grande sucesso deste disco , porque Natalie Cole, “anacronicamente”, fizera (revolucionariamente) dueto com o pai, Nat King Cole, falecido vinte e seis anos antes, ...o que não foi novidade, pois lemos em Mateus, capítulo 17:

Tomou Jesus consigo a Pedro e aos irmãos Tiago e João e os levou a um alto monte. E transfigurou-se ante eles. Seu rosto resplandecia como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz. E eis que lhes apareceram Moisés e Elias, falando com ele.Nos dois casos, houve a valorização de personagens atuais ao apresentá-los coadjuvados por outros, antigos, então de mais prestígio. De igual modo, o Renascimento – no século XV – e o Barroco, que veio a seguir, foram tentativas de reedição da Idade de Ouro greco-romana. Bernini, por exemplo, em seu Davi, retoma a poderosa precisão anatômica e a força de expressão alcançadas pelo Laocoonte de Agesandro, Atenodoro e Polidoro, da ilha de Rodes.

Miguelângelo, por sua vez, ao conceber a cúpula da catedral de São Pedro, em Roma - foto à direita, abaixo – anacronicamente reproduziu o Panteão, de Apolodoro de Damasco, construído na mesma cidade, mil e duzentos anos antes.

E isso teve herdeiros. Abaixo, foto que tirei de minha mulher (com bela intervenção vermelhona do ônibus de dois andares) ante a catedral anglicana de São Paulo, em Londres, do século XVII, com sua cúpula que é a segunda maior do mundo, depois da de São Pedro. Sequer superou a original.

O mesmo se deu com o domo do Capitólio, em Washington, do início do século XIX, que de americano só tem a bandeira:

E aqui vai outro brutal atópico (fora de lugar) anacronismo: a Bolsa de Valores de Nova York, na famosa Wall Street, em que se tentou dar a seu objetivo a importância que teria o do Pártenon, da Grécia antiga. Afinal, ali também se dizia bem alto: “In God we trust!”


Neste meu livro há o roteiro para um longa-metragem – “Os Gracos” – que começa com a imagem do Tribunal da Justiça de João Pessoa – como na foto abaixo – acrescentados os caracteres: ROMA 133. A.C.

A câmera, então, faria uma panorâmica para a direita, mostrando a rua – com muita gente e automóveis – com a nítida intenção de mostrar o quanto é contemporânea a luta pela reforma agrária tentada no Império Romano, e que custou vidas como a dos irmãos Tibério e Caio Graco, eleitos tribunos da plebe com essa plataforma. Para que o espectador não se esquecesse disso, o filme deveria ser pontuado por outros (anacrônicos) cenários paraibanos equivalentes, como este:


Por falar nisso, no primeiro capítulo deste meu romance ...dois de meus personagens - Padre Martinho e Corrinha - fazem cooper ao redor da Praça da Independência, na mesma João Pessoa, e narro, em certo ponto:
Corrinha olha para o carregamento de flores chegando numa camioneta para os floristas do pavilhão de altas colunas, cujos degraus desembocam na calçada logo à frente deles, edifício que o amigo dissera-lhe conhecer como Gloriette, na Áustria, igual ao – lindíssimo - que havia no alto dos jardins do castelo de Schönbrunn. “Igual” é exagero. Mas aqui vão os prédios decorativos paraibano e austríaco :

Nada demais, numa terra “pequenina e doida”, a nossa, que tem a história de Hamlet recontada num romance - “A Bagaceira”, de 1928 -, cujo autor – José Américo de Almeida, também hamletiano -, teria, dois anos depois, aqui, seu Elsinor: o Palácio da Redenção.

Bem. Hegel observa que todos os fatos de grande importância na História ocorrem, por assim dizer, duas vezes. Ao que Marx acrescentou: a primeira como tragédia, a segunda como farsa. Realmente: quem não se lembra de Perón com o primeiro governo vinculado a Evita, o segundo a Isabelita?

Foi o mesmo que se deu com Getúlio no segundo período como presidente, de 51 a 54, quando já não era, mais, o revolucionário de 30.
Anacronismo pode, também, ter outra função. Usei-o como forma de expandir a narrativa nesse roteiro dos Gracos e em meus romances “Shake-up” (UFPB 1997) e “A Verdadeira Estória de Jesus” ( Ática, 1979). Neste, Moisés torna visível sua semelhança de porte com o também judeu Marx, quando põe o charuto entre os dentes; e o evangelista Mateus, em ataque de fúria, diz que quer destruir “aquela Roma novaiorquina”, mandando - os que considerarem isso impossível – que se lembrem “de que Ho Chi Minh, com seu general Giap expulsaram a América do Vietnã”.
Observe, na foto abaixo, da “Adoração dos Magos” de Roger van der Weyden, o crucifixo entre os arcos, sob o telheiro:

Esse anacronismo prospectivo convoca o cristão à piedade pelo recém-nascido, cujo destino é ser sacrificado. Sequer damos atenção, depois disso, a outros anacronismos e atopismos involuntários da obra, como o da cidade de Belém ao fundo, ou o dos figurinos dos personagens que chegam, em nada fiéis aos costumes do Oriente no século I.
A razão disso é que, embora a História venha dos tempos de Heródoto, é relativamente novo o seu estudo mais científico, organizando escavações por toda parte, acompanhadas pelo trabalho de alta especialização nas universidades. Os artistas plásticos anteriores a isso, desinformados, cometeram “liberdades” como a acima, ou a de Velásquez ao criar seu “Marte” com enorme bigodão de portuga...


... enquanto Moliére posava pra um retrato no papel de Júlio César, que era assim, ... mas com a peruca típica de sua França do século XVII:

A propósito: no “Julius Caesar” de Shakespeare há um anacronismo famoso, no que o senador Cassius diz que o relógio bateu três horas:
- The clock has stricken three. Não havia relógios zoando em Roma, em 44 a.C.

El Greco incorreu no mesmo erro ao colocar, ao lado de Jesus, no “Espólio” - que me deixou de queixo caído na sacristia da catedral de Toledo -, um soldado com uma armadura produzida... na época do pintor e em sua própria cidade.
Já o barroco Tiépolo, no afresco abaixo, fez de Cleópatra uma autêntica Madame Pompadour, contemporânea dele.

E aí está mancada bem mais recente - hollywoodiana - no topete de “galã americano” do inglês Richard Burton, típico dos anos 50, no filme “O Manto Sagrado”...

... erro que não se repetiu no seu penteado à romana, ao fazer Marco Antonio em “Cleópatra”:

O futuro do passado (como o que abriga a figura do crucifixo no presépio) é fácil de se conceber. Nosso porvir, no entanto – pelo menos por agora – é indevassável. E ao criador é quase impossível escapar da estética em que vive, por mais científica que seja sua ficção. Daí - na divertida antevisão que se fez em “Perdidos no Espaço”, seriado de sucesso, rodado de 1965 a 68
– o anacronismo nos penteados das duas moças que estão em pé.

Não escaparam da moda corrente na ocasião:

Ainda mais equivocado foi o vaticínio excessivamente otimista de Kubrick no filme “Uma Odisseia no Espaço”, dessa mesma época – 1968 – com o ser humano chegando a... Júpiter ... em 2001, ano em que o fato mais marcante dos terráqueos acabou sendo a implosão do World Trade Center.

Mas que importa, quando o filme permanece, até hoje, ... tão deslumbrante quanto o quadro de El Greco?