terça-feira, maio 31, 2011

Faltou contar (2)

Ana Arnaud

Pois é, foi no que deu mexer no que estava quieto...

Como eu estava falando, ele se deteve reescrevendo a sua história e esta não poderia existir se com ela não viesse também a minha história.

E nesse revirar e remexer concluímos que as coisas não aconteceram como ele pensava que tinham acontecido. A visão míope do mundo além do sertão, a tosca capacidade de entender os fatos que nos acontecem, a emoção própria da juventude, a insegurança que o portão de entrada para a vida adulta nos causa, somadas às carências afetivas de um pequeno sertanejo deixado pelos pais na casa de um avô e muitas tias que, apesar de todo afeto e carinho, não conseguiram apagar as marcas da rejeição sofrida aos 4 anos de idade, fizeram com que esse ser planasse meio indefeso de si mesmo.

Aos 16 anos, sozinho, partiu em busca do pai, e desse encontro resultou uma nova certidão de nascimento com a sua idade alterada para 18 anos na tentativa de fazê-lo responsável por si mesmo, fantasiando-o de adulto. Voltou a caminhar só e esse caminho levou-o ao reencontro casual com a mãe depois de 8 anos sem vê-la. E quando pensou que teria acolhida, esta mais uma vez partiu para outra jornada individual e logo depois para sempre.

O ingresso na Polícia Militar da Paraíba, em João Pessoa, fez com que ele confundisse quartel com lar, acalmando, temporariamente, o seu coração; muitos irmãos, vários pais e sem mãe. E como acontece com todo homem, um dia ele esbarrou numa mulher e como acontece com todo menino sem mãe, ele pensou que a havia encontrado assim como o lar idealizado. Encantou-se, pensou que viveria para sempre protegido e paparicado, pensou que não precisaria ser pai de sua própria família, pensou que tinha, enfim, sido adotado. E então a vida deu a reviravolta necessária para que o ser adolescente pudesse ser adulto. Como sempre acontece, o menino que nunca ouviu Contos de Fada, e que nunca brincou de esconde esconde não soube sair do labirinto em que se encontrava e foi então que esbarrou em outra mulher que lhe contou o sonho das Mil e Uma Noites e quando acordou de uma dessas noites, depois de ter comido a maçã envenenada, precisou correr pela floresta mal assombrada procurando uma gruta encantada para se esconder da fúria da bruxa que não era boa. Não encontrou e fugiu para bem longe, para o Rio de Janeiro, deixando para trás de si um rastro de questões mal entendidas e por isso mal resolvidas.

O tempo passou e qual um caramujo esse homem viveu escondido de si mesmo, tentando viver experiências novas e sedutoras que tardiamente lhe apareceram até que uma menina, quase mulher, tirou-o daquele mundinho sem parceria e resolveram viver todos os contos, sentir todos os medos, correr todos os riscos, enlevar-se em todas as magias e, em nome de um amor que viria depois da paixão escrever uma história com os mesmos princípio e fim de qualquer outra: “Era uma vez...e viveram felizes para sempre.”

Bem, falava eu em remexer no que está quieto. E nesse remexido longo e sofrido aflorou uma poeira esquecida e quase perdida que lhe causou um AVC, que trouxe como seqüelas uma pequena e momentânea perturbação visual e também a sua libertação total de marcas deixadas em algumas páginas da vida que por muito tempo estiveram amassadas e jogadas no lixo do seu consciente. Abriu cuidadosamente cada uma delas, alisou bem, e não lhe restou senão se conformar com as tênues e definitivas marcas encontradas e se convencer de que elas deviam ser inseridas no livro a ser escrito. Agora, entendidas, sofridas, choradas, contadas com clareza e com verdades, sem simulações, sem disfarces, com arrependimentos ou com lamentos com choros ou com gargalhadas. E tudo aconteceu como brincadeira de dominó: cada pedra derrubada derrubava outra que derrubava outra que derrubava todas as outras e nos permitia ver, de cima, as peças caídas, emendadas, formando o desenho que desenhou a própria vida, antes tão incerto e impreciso.

E eu, teimando em recriar coisas, catando nas minhas quinquilharias acumuladas, histórias que eu pudesse viver como se fosse a boba da corte...



Outro dia continuo...

Um comentário:

Marise Artes disse...

Parece que estou ouvindo minha amiga contar essa história tão rica em detalhes de uma época já tão distante. Um dia, com certeza, irei ao lançamento de seu livro, ainda sem local e data, mas ele será realidade. Gosto muito de ler vc, minha amiga.