sexta-feira, maio 20, 2011

Ócio remunerado

Ana Arnaud

Enfim a tão esperada notícia! Estou aposentada. Agora poderei fazer tudo que eu quiser na hora que quiser. Tudo que deixei de fazer pensando que um dia o faria... Ledo engano!

Para começar alugamos um apartamento em Cabo Frio, com vista para o mar e a um quarteirão da praia. Um sonho realizado. Aquele mar azul esmeralda, aquelas areias brancas e finas como polvilho, aquela água fria e renovadora de ondas envolventes e serenas. A felicidade estava completa: eu, ele e o mar. E todo o tempo do mundo para fazermos o que quiséssemos. E aí veio a triste constatação: Não éramos mais os mesmos de 40 anos atrás. Aquilo que achávamos que queríamos ainda fazer um dia, na verdade não era mais o que queríamos, nem podíamos.


Passar o dia inteiro na praia, ao sol, como nos anos 60, nem pensar. Há dois anos eu havia contraído um câncer de pele (melanoma) e estava terminantemente proibida de ficar ao sol das 10 as 16 horas. E nos outros horários sair de casa representava ter que me besuntar com protetor solar da cabeça aos pés. Portanto, caiu a primeira ilusão. Mas tudo bem, o mar não dorme e eu ainda tinha o início da manhã, o fim da tarde e a noite. Quem sabe então eu descobria um novo prazer, mas... À noite nem pensar: ele não iria comigo e sozinha não tinha o menor cabimento. À tarde tentamos algumas vezes, no verão, mas tínhamos que dividir a areia com os atobás que vinham comer os restos de comidas e outros dejetos e ainda evitar grupos de turistas embebedados que insistiam em esticar o dia de sol batendo uma bolinha aqui e acolá. Sobrou então o início da manhã. OK, horário saudável, areia limpa, sol esquentando, crianças correndo, atletas do cotidiano tentando manter a forma à custa de longas caminhadas, tênis nos pés e roupas esportivas. Água ainda gelada e muitos bacuris na areia, fugindo ao rangido dos nossos pés. Para tal, tínhamos que acordar bem cedo e por conseqüência dormir também bem cedo. E aqui a segunda desilusão: continuávamos dependentes do relógio, nem que fosse o relógio de areia, sem descuidar do tamanho da sombra aos nossos pés. Além disso, àquela hora a praia era deserta, sem vida, com poucas pessoas. No início um paraíso, mas depois de algum tempo uma monotonia. Então, na nossa caminhada diária pela areia, de maiô e pés descalços, de uma ponta a outra da Praia do Forte, começamos a nos conhecer de verdade.

Já não falávamos dos filhos e de todos os problemas que ocuparam as nossas vidas durante aquelas quatro últimas décadas. Nossos três filhos estavam agora vivendo as suas próprias vidas e embora sempre preocupados conosco sabiam que estávamos bem e era isso o que importava. Moravam distante: um em Maceió, outro em Natal e a filha na cidade do Rio de Janeiro, portanto, “o que os olhos não vêem o coração não sente”. Então nossas conversas passaram a ser sobre nós mesmos, nossas poucas expectativas, nossa ânsia desesperada para viver mais e bem, nossos sonhos não vividos, nossas angústias pela constatação do envelhecimento evidente.

Nossas conversas diárias eram entremeadas pelas expressões: “Vamos tentar”,”Quem sabe ainda dá” ou “Agora já era” ou ainda “Não vamos desistir”, “Não viemos aqui para chorar o leite derramado”, ” vamos à luta”, “ Se não dá com espadas usemos a tesoura”... E foi assim que, literalmente peguei a tesoura e outros apetrechos e fui cuidar do meu tão esquecido artesanato. Pintei caixinhas, decorei pequenas peças, fiz cursos, ensinei, comprei pincéis, papéis , comprei tintas, berloques, botões, enfeites, confetes, linhas, fitinhas, e fiz, e pintei, e bordei...E assim, as horas da sobra do tempo começaram a ser preenchidas.

Quanto a ele, retirou do baú do tempo alguns registros de memórias que havia começado a escrever há vinte anos atrás e, usando pela primeira vez o teclado de um computador, sob a minha orientação, passou a revolver e a reescrever a sua vida.

Assim, quando não estávamos na praia, nem no comércio, nem nas refeições, nem na cama, estávamos, cada um, envolvidos com coisas que só a cada um de nós dizia respeito. Eu, no meu atelier improvisado no quartinho ou na varanda do apartamento, mexendo e remexendo em quinquilharias e, ele, no quarto de hóspedes, especulando as maravilhas de um computador e desfolhando o grande fichário amarelado e frágil de suas memórias.

O resto eu conto depois...

3 comentários:

Fábia Lívia disse...

Adorei o texto de Ana Arnaud. Não a conheço, mas gostei do jeito dela escrever, da sensatez e sensibilidade. Fábia

Ana Arnaud disse...

Obrigada Fábia. Abraços!

Mary Caldas disse...

Ana Arnaud o seu texto é muito bom!
Gostei muito quando você descreve a sua nova realidade de aposentada sem amargura mas com muito sentimento e sensibilidade. Passei pelo mesmo há cerca de três anos e me ví nas situações que você vivenciou. Um grande abraço, Mary.