W. J. Solha
1) Passei uns dez dias, há coisa de um mês, separando para o lixo (com o coração na mão) minha enorme coleção de recortes com fotos de quadros e de esculturas, cerâmica e arquitetura, acumulada ao longo dos últimos... quarenta e cinco anos. Porque encontro tudo aquilo, hoje, no Google, com o número que juntei elevado à enésima potência, a impressora me repassando imediatamente qualquer imagem de que eu necessite. Cheguei a manter em meu gabinete, séculos atrás, mostras semanais dessas fotos (alfinetadas em isopor) ora dedicadas a naturezas-mortas de Scliar, ora a paisagens de Frans Post, retratos de Ivan Albright, desenhos de Holbein, o Moço, etc etc.
2) Dei-me ao luxo, às vezes, de falar muito baixo nas filmagens de que participei no ano passado no Recife, aqui, e no sítio Acauã - município de Aparecida, no alto sertão paraibano. O som direto capta tudo. Já em “O Salário da Morte” (1969), também no “Fogo Morto” e em “Soledade” (ambos de 1975), fui dublado, pois na época se fazia, na filmagem, apenas o chamado “guia-som”, que serviria de modelo para os próprios atores ou dubladores fazerem as gravações definitivas nos laboratórios do sudeste. Como não fiz parte do elenco principal em nenhum dos três longas, e como seria oneroso transportar-me para esse trabalho final, profissionais do ramo reproduziram minhas falas, o que, para mim, foi o mesmo que fumar de luvas.
3) Vejo meu neto de 14 anos fazer e acontecer em jogos cibernéticos ao meu lado, e me lembro de que na idade dele (1955) eu nem sonhava que, um dia, haveria passatempos desse tipo. Internet? Nem pensar, até o final dos anos 90! Quantas e quantas vezes datilografei artigos para os jornais, corrigi-os à mão, datilografei-os novamente e fui levá-los às redações, tendo o desgosto, depois, de ver erros terríveis de português ou simples lapsos cometidos pelo linotipista, na composição da página do diário. Guardo ainda várias versões datilografadas de romances meus, pois a cada revisão enchia-as de cortes e acréscimos que teria, em seguida, de eliminar na nova versão. Para mandar livros como “Israel Rêmora” e “A Canga” para concursos que exigiam sete cópias, tinha de datilografar tudo novamente em “papel flor” – finíssimo – com seis carbonos no meio. Uma mão-de-obra estúpida.
4) Quantas vezes vou numa calçada tomada por estudantes que vêm em sentido contrário e me vejo forçado a descer para o asfalto, para que eles passem. Quando eu era um deles e via um “senhor” se aproximando, cedia-lhe passagem, baixando pro calçamento, como fora educado a fazer com todos os meus colegas, na escola. E todos temíamos mestras como Dona Celeste e Dona Yayá. Hoje, as notícias que leio e vejo são de velhas professoras apavoradas com as crianças.
5) Vejo a velhice remoçada, nos últimos anos. Meus pais e meus sogros usaram dentaduras desde jovens, o que não lhes evitava o precoce emurchecimento das faces. Por outro lado, as roupas que usaram, no transcorrer do tempo, foram todas “de acordo com a idade”. Quem assistiu ao “Zorba, o grego”, viu aquele bando de velhas de preto, lenços negros na cabeça, lembrando urubus doidos pra saquear as casas dos defuntos que velavam, assim que os percebessem expirando. Vi algumas dessas figuras em Pombal, quando lá cheguei , em 63, rachadas de rugas.
6) De meus quinze aos vinte anos tive de passar toda noite – entre onze e onze e meia - por longas ruas desabitadas, sem energia elétrica, lá em Sorocaba, e nunca me imaginei vítima de ladrões.
7) Quando estava escrevendo “A Verdadeira Estória de Jesus” (entre 1975 e 78), bateu-me uma pergunta: Se Cristo não existiu, conforme estou concluindo, como colou? Bati um papo com o Dr. Paulo Lacerda, psiquiatra (ou psicanalista) do BB a respeito. Ele me emprestou dois volumes de Freud – “Moisés e o Monoteísmo” e “Tótem e Tabu”. Devolvi-os depois da leitura, insatisfeito. Ele me disse, então, que a resposta poderia estar no pequeno livro de Nise da Silveira que me passou: “Jung – vida e obra”. Empolguei-me pelo suíço, discípulo, depois dissidente de Freud. Mas onde conseguir livros dele? Como um colega do banco – Chico Dácio - ensinava em Recife, pedi-lhe que me comprasse o que fosse do homem, por lá. Encontrou apenas uma edição espanhola de “O Homem e seus Símbolos”, que me deu a resposta requerida, com sua teoria de que todos temos o Self – o Si mesmo, que é o mais profundo de nós todos -, personificado por figuras como Buda, Moisés... e Cristo. Acho que isso não passa de um deslocamento do superego freudiano, mas tudo bem: daí que – conclui-se - não adianta discutir a respeito dos furos no fundador do cristianismo com crentes como Washington Rocha, por exemplo, porque o amigo – apesar de intelectual - sente no mais fundo de si mesmo, no Self ou no superego, que o homem existiu, que era filho de Deus, e estamos conversados. Mas o ponto para o qual eu queria chamar a atenção é que, hoje, você encontra as obras completas de Jung (e de qualquer outro autor ) pela internet, em qualquer parte do mundo, inclusive nas editoras, nas nossas livrarias e, também, nos sebos, que estão todos, agora, interligados numa imensa rede.
8) A condição sine qua non femino pros casamentos, indispensáveis na minha juventude, era a virgindade. Daí que a rapaziada toda, de Sorocaba, namorava as moças e enchia a grande zona de meretrício, que ficava fora da cidade. Em João Pessoa o submundo florescia na Maciel Pinheiro e adjacências, centro da capital. Em Pombal, o “rói couro” era um arruado além da estrada de ferro. Como não existiam os motéis, na época, o que havia, em Patos, quando lá cheguei, em 62, eram as “casas de recurso”. As meninas, com a revolução sexual que marcou aquela época, já começavam a se soltar, ali e principalmente nos grandes centros, a prostituição a perder seu prestígio, ainda mais abalado com o surgimento da AIDS. A se soltar e a ocupar espaços. Eu já estava em João Pessoa, nos anos 70, quando o Banco do Brasil passou a admitir mulheres no funcionalismo.
9) Parece-me que grande parte do afrouxamento total dos costumes atuais aconteceu com as quedas e quebras de regras de todo tipo, nesse meio tempo, inclusive nas artes. As referências acabaram se dissolvendo e as pessoas ficaram perdidas, na defensiva, buscando refúgio na fé, ou partiram pro ataque pesado.
10) Vivi, na verdade, como aquele personagem de Chaplin que termina o filme indo pro horizonte, na fronteira, um pé nos Estados Unidos, outro no México. Fui burocrata durante 34 anos, zelando, com esse trabalho, pelo bem-estar da família e pela liberdade de pensamento, que usava nas horas extras. Sempre fui muito conservador, embora não hesitasse em fazer piquete até sozinho – com meu carro trancando a entrada do BB, na 13 de maio, em João Pessoa. E escrevi contos, poemas, ensaios, peças teatrais, romances, roteiros pra cinema, pra balé, libretos de ópera, pintei, modelei, trabalhei como ator no teatro e no cinema. Minha última experiência está sendo a série de “ensaios ilustrados”, que estou produzindo aqui para o eltheatro do Elpídio Navarro, em que as fotos e desenhos não complementam o texto, mas fazem parte dele, aproveitando-me, justamente, do infinito potencial do Google e do escâner.
Um comentário:
Pois é Solha, me parece que somos de uma geração que teve o privilégio de viver muitos contrastes... parabéns pelo belíssimo texto.
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