quinta-feira, maio 19, 2011

DESCI EM JOÃO PESSOA JÁ ERA NOITE





Francisco Nunes



DESCI EM JOÃO PESSOA JÁ ERA NOITE
. Cheguei, como todo sertanejo, na terra alheia, cheio de confiança no futuro.

O caminhão parou numa praça grande e arborizada, em frente a um prédio, que chamou a minha atenção pela suntuosidade. Disseram-me que ali funcionavam os Correios e Telégrafos. Não podia imaginar, naquela ocasião, que, um dia, a minha vida estaria ligada a ele. Toda a minha bagagem se resumia a umas poucas peças de roupas, dobradas dentro de um pacote amarrado com barbante, com uma alça improvisada, imitando uma mala. Situação semelhante de quando saí de Jatobá. Agora trazia mais um paletó mandado confeccionar por meu pai, em Brejo do Cruz, aproveitando um corte de tecido cáqui destinado ao seu fardamento.

Enfim, estava eu na capital! Vestia a melhor roupa que possuía: calça e paletó feitos pelo Chiru, em Patos, camisa branca e aquele desconfortável par de sapatos que quase me atrapalhou a viagem.

Uma larga e longa avenida iluminada deixava a noite clara. O caminhão ficou parado, na praça, algum tempo. Algumas pessoas, como eu, olhavam deslumbradas ao redor. Pousei o incômodo pacote na beira da calçada e fiquei, sem dizer nada, observando extasiado. Aquele era um momento mágico em minha vida, o meu primeiro contato com a cidade grande, a capital, que eu conhecia apenas através de alguns comentários de meu pai e do meu amigo Ivo.

O motorista, enquanto ajudava as pessoas a descer do caminhão, não tirava o olho de mim.

Relaxei. Eu estava completamente perdido, mas sabia que ele me ajudaria.

Depois que todos os passageiros se foram, ele se aproximou de mim e disse:

— Agora vamos ver o que posso fazer por você.

Fez sinal para um policial que passava e indagou se sabia onde poderíamos encontrar transporte para Bahia da Traição.

— É difícil, pelo avançado da hora — disse o militar ajeitando o bibico na cabeça. — Tem que ir para Cabedelo e lá pegar uma barca de pescadores. Não sei se conseguirão isso ainda hoje!

O motorista agradeceu, coçou a cabeça, pensativo, e aconselhou-me a procurar uma pensão para passar a noite e, no dia seguinte, logo cedo, seguir para Cabedelo, onde embarcaria para Bahia da Traição.

Pensei melhor e disse:

— Não, eu tenho outra opção. Minha mãe reside aqui em João Pessoa — expliquei. — É separada de meu pai. Há muito tempo que não a vejo. Ele falou-me, certa vez, que ela residia atrás da Cadeia Pública. Acho melhor procurá-la e ficar em sua casa esta noite.

O motorista ficou mais aliviado. Estava preocupado com a minha pouca idade e queria atender às recomendações de meu “tio”.

Ele demonstrou conhecer o local onde ficava a Cadeia. Convidou-me a subir na boléia do caminhão, seguiu por uma rua, deu a volta no quarteirão e parou numa esquina, exatamente nos fundos da Cadeia Pública. Descemos para tentar encontrar a casa de minha mãe. Deviam ser 21 horas. As ruas estavam desertas. Alguns policiais se movimentavam, ao longe. Vi que uma senhora de meia idade se aproximava e indaguei:

— A senhora conhece Severina Emília de Oliveira, que mora aqui por perto?

Ela arredou uns dois passos e, apontando para uma parte mais baixa da rua, disse:

— Ela mora ali naquela casa pequena.

Agradeci, eu estava no caminho certo. Voltei-me para o motorista, despedindo-me:

— Pode ir, amigo, achei a minha mãe. Muito obrigado, Deus o recompense!

Sozinho, segui na direção indicada. Meu coração estava acelerado e, enquanto caminhava, eu pensava: “Quem diria?! Saí de São Bento disposto a encontrar meu pai e, de uma hora para outra, estou indo ao encontro de minha mãe, coisa que nem passou pela minha cabeça, desde que deixei a casa de meu avô, em Jatobá.”

Era uma casa baixa, pobre, que ficava entre bananeiras. Bati, e veio atender-me uma senhora magra, morena, de pouco mais de 30 anos, tipo desconfiado, de olhar interrogativo. Perguntou-me o que eu desejava, e respondi que estava procurando a senhora Severina Emília. A mulher, sem nada falar, deu-me as costas e retornou para o interior da casa. Em seguida, voltou e perguntou quem eu era. Ao responder-lhe que era Chiquinho, filho de Severina, minha mãe surgiu, espantada, na porta da casa, abraçou-me demoradamente e perguntou:

— Chiquinho, o que faz por aqui?

Eu, sufocado pela ansiedade, pela falta de intimidade e pelo receio de não ser bem recebido, deixei-me ficar em seus braços por alguns segundos. Depois, afastei-me, olhei-a nos olhos, e respondi evasivamente:

— É uma longa história...

— Você deixou Mestre Ezequiel? Por quê?

— Não é bem assim! Fui obrigado a deixar Jatobá e procurar a ajuda de meu pai. Quando saí de lá, sabia que estava deixando para trás a proteção de meu avô, mas eu crescia e com isso cresciam também as suas preocupações comigo. Então, resolvi seguir meu caminho. Eu não o deixei. Eu o amo muito e sinto a sua falta. Ele será uma presença eterna em todos os meus dias — falei com voz embargada.

Disse-lhe que estava em João Pessoa para resolver um assunto de serviço, mas que ela não precisava se preocupar, pois eu iria procurar um hotel para ficar.

Eu demonstrava estar ali somente para uma visita, sem deixar transparecer que não tinha condições sequer para pagar uma simples hospedaria e que buscava sua ajuda, naquela noite.

Minha mãe pareceu despreocupar-se com a minha chegada repentina e começou a bombardear-me com perguntas e mais perguntas que eu respondia evasiva e cuidadosamente.

Em tom lamurioso, ela passou a falar de sua vida. Disse que fornecia refeições para os soldados da guarda do presídio, mas estava pensando em parar com essa atividade, porque eles almoçavam fiado, para pagamento no fim do mês, e, quando eram transferidos para o interior, partiam sem saldar as suas dívidas.

Percebi que ela tentava mostrar-me suas dificuldades financeiras, para que eu não me iludisse. Então, resolvi contar os motivos que me levaram a João Pessoa:

— Através de meu pai consegui um emprego provisório como Agente Recenseador, em Brejo do Cruz. Porém, um mal-entendido entre mim e o representante do IBGE resultou no meu desligamento. Sem emprego, sem dinheiro e sem família, ficou impossível a minha permanência naquela cidade. Decidi, então, vir discutir esse meu desligamento junto à Administração do IBGE, uma vez que não recebi o que me é devido. E, se tudo der certo, ficarei por aqui.

Falei também da minha intenção inicial de ir ao encontro de meu pai, mas estava percebendo que ele morava muito longe da capital.

Minha mãe respirou fundo e, com fisionomia preocupada, falou:

— Não estou em condições de lhe oferecer ajuda financeira, mas se você não se incomodar poderá dormir na sala esta noite e almoçar comigo amanhã. Está bem assim?

Desculpou-se, dizendo que a casa era muito pequena, com apenas três cômodos: sala, quarto e cozinha.

Não discuti, aceitei imediatamente. Naquela noite ficamos até tarde falando de nossas vidas. Minha mãe contou os momentos difíceis por que passou depois que deixou meu pai e teve que, sozinha, na condição de mulher separada, encontrar meios para sobreviver, pois era isso o que ela fazia: sobrevivia.

Enquanto ela falava, meu pensamento vagava e eu me lembrei da última vez em que nos vimos, na fazenda São Pedro, em Patos, quando ela me levou de presente um carrinho de lata, na cor vermelha. Eu tinha 8 anos. Da imagem que eu guardara dela pouco havia se modificado. Porém, percebia que minha mãe se tornara uma mulher sofrida, e essa constatação me chocou.

O vento soprava fresco por entre as folhas das bananeiras, produzindo um sibilado incomum. Caminhei até a porta e virando-me para ela disse:

— Se acontecer o que eu estou pensando, ficarei por aqui.

Dormi pela primeira vez na casa da minha mãe...e em João Pessoa.

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