quinta-feira, abril 14, 2011

Nem sempre Lili toca flauta

Lucia Rosas






A estória eu conto como me foi contada.


Cada vez mais, fico impressionada com a criatividade do povo brasileiro. Mas, agora, quero destacar a do nordestino, em períodos de Carnaval. A capacidade crítica e a irreverência são a sua marca registrada.

Nos “anos de chumbo”, ou seja, na época da Ditadura Militar, muitos Blocos Carnavalescos foram criados, como forma de protesto ao regime militar então instalado no Brasil. A exemplo do “EU ACHO É POUCO”, “NÓIS SOFRE MAIS NÓIS GOZA”, “SIRI NA LATA”. E por aí vai. A sua criação geralmente era planejada nos botequins de Recife e Olinda, pelos militantes políticos e adeptos, à guisa de protesto. E quem poderia comprovar isso? Com esses títulos, o regime militar não tinha como provar que se estava protestando e criticando. Que maravilhosos carnavais aqueles. Além do divertimento, serviam como válvula de escape. Uma forma, mais do que boa, de limpar a mente dos fatos que estavam ocorrendo no nosso Brasil.

E o LILI? Esse Foi criado algum tempo depois, em 1989. Ainda hoje faz sucesso. Capitaneado pelo amigo Gerson e, como sempre, apoiado por conhecidos. Uma “galera”, como se diz hoje, da melhor qualidade. Começou pequenino e agora mal cabe no Mercado de Santa Cruz, no Bairro da Boa Vista, onde atualmente se concentra na sexta-feira de carnaval. No início se concentrava no Pátio de São Pedro, saindo pela Av. Dantas Barreto e adjacências. E é para lá que vamos voltar agora.

A base da criação do NEM SEMPRE LILI TOCA FLAUTA, é a historia de uma antiga prostituta - categoria hoje chamada profissional do sexo, com todo o respeito que merecem –que fazia a vida em um casarão do Bairro do Recife. De origem francesa, LILI tocava, com extrema perfeição, flauta doce. E, enquanto não aparecia cliente, sentava-se no parapeito da janela e começava a tocar, embevecendo a todos que ouviam. Quando não estava a tocar, todos já sabiam que se encontrava na outra atividade.

O fato eu conto como meu amigo Lirinha me contou. Se verdade ou fruto da sua fértil e anarquista /ótima imaginação, não sei. Fica a critério de quem ler julgar. Só digo que tudo é possível, principalmente se considerado o contexto. Aí segue.

Eliane, pernambucana, filha de militar, estudou até a adolescência no Rio de Janeiro, devido a uma transferência de seu pai para a Cidade Maravilhosa. Lá fez muitas amizades. Entre elas, a maior, Magda, cujo pai também era do Exército Brasileiro.

Eliane, carnavalesca até a alma, sempre falava para Magda sobre as maravilhas vividas nos carnavais de Recife e Olinda. A carioca se entusiasmava. E dizia: “Um dia ainda vou pular nessa folia de Momo. Você vai ver”. Acontece que antes disso, conheceu um rapaz, por quem se apaixonou perdidamente. Deu em casamento. Mas ela nunca perdeu a vontade de conhecer o nosso carnaval.

Ocorre que, o marido de Magda também era militar de alta patente. Bastante radical com relação a usos e costumes. Não que os militares devam ser diferentes de outros profissionais. Mas, por temperamento, ele não bebia, não fumava, não dançava e não gostava de freqüentar ambientes festivos. Ao contrário de Magda que gostava de tudo isso. Coitada, vivia numa eterna frustração. Nem a Banda de Ipanema podia ver. Ele não ia e não a deixava ir sozinha, ou com amigos.

Em meados da década de 90, Eliane, que ligava sempre, telefonou para Magda falando que o carnaval daquele ano seria maravilhoso. Falou no Galo da Madrugada, nos blocos de Olinda e Recife, em especial no LILI, que estava cada vez mais bonito e animado. Voltou a convidar Magda, apelando para que o esposo viesse também, nem que fosse só para dar uma olhada.

Claro a proposta foi imediatamente rejeitada pelo Coronel. Mas, para enorme perplexidade de Magda, liberou a sua vinda. Confiava em Eliane, mulher de respeito, na casa de quem a esposa ficaria. A alegria dela era indescritível, finalmente iria conhecer o carnaval de Pernambuco. Além de Magda, vários outros amigos e amigas de Eliane ficaram hospedados em sua casa. Gente de vários Estados.

Da Paraíba veio Saulo, rapaz jovem, simpático, extrovertido e, talvez, como uma das características principais, bastante “malhado”. Praticava intensas atividades físicas. Era um rapagão e tanto. Além de tudo era um “gato”, como se dizia naquela época.

A convivência de todos, desde o início quando foram apresentados, era bastante salutar e respeitosa. Pois, como dizia Eliane, “respeito é bom e eu gosto”. Então, com relação a Magda, mulher casada e, ainda mais com um militar, nem se fala. Isso tanto na casa onde estavam, quanto nas prévias carnavalescas.

Afinal, chega o dia mais esperado. Sexta-Feira, dia da saída do LILI, todos amanheceram cantando e, desde cedo, já separavam adereços e fantasias. Magda não tinha nada, mas Eliane logo a tranqüilizou dizendo que no Camelódromo, na Dantas Barreto, ela encontraria tudo a seu gosto.

Na hora do almoço a turma já começou a “calibrar” a alma. Tomavam umas e outras para encontrar a tão famosa Diva do Bairro do Recife. E assim lhe homenagear, como merecia. LILI realmente deveria ser louvada, por todos os seus méritos artísticos e culturais.

No meio da tarde seguiram para o Pátio de São Pedro. Lá já existia uma pequena concentração. Mas o frevo já rolava com toda a força. Impossível não começar a pular. Entretanto, naquele momento, a preocupação maior de Magda era com fantasias e adereços. Dirigiu-se ao Camelódromo e, depois de experimentar várias roupas, optou por uma mini saia. E bote mini nisso, mal cobria as partes pudendas. A blusinha era sumária, protegia apenas o essencialmente exigido. Colocou colares, pulseiras, anéis e uma meia máscara.

Voltou ao Pátio e reencontrou a sua turma, fez novas amizades e caiu no passo. Também fez sucesso. Estava linda e, principalmente, chamando a atenção dos marmanjos com as suas vestes sumarias num corpo escultural.

Afinal, a grande hora. Saída do LILI pelas ruas estreitas do maravilhoso Bairro de São José. Ao adentrar a Dantas Barreto, Magda olhou em frente e deu de cara com Saulo, fantasiado de Pirata. Veio, para surpresa de todos, um grande abraço entre os dois que, pelo menos os seus amigos nunca haviam presenciado. Não em via pública. Sim, porque não foi um abraço qualquer. Magda, literalmente, montou-se em Saulo. Abraçou, com as pernas bem torneadas, a sua cintura. Ele retribuiu, no ato. Segurou-a, com toda a firmeza que a sua musculatura permitia. Ignoraram, inteira e alcoolicamente, a presença da multidão.

Então, o inusitado aconteceu. Todos os que estavam próximos, ao presenciarem o fato, formaram uma roda para protegê-los. Eles ao centro, não estavam nem aí, como se costuma dizer. Estavam mesmo era num céu terreno. E a turma que os protegia começou a gritar:
“Às vezes LILI toca Flauta”.

Não sabemos se depois aconteceram outros espetáculos instrumentais entre os dois. Em algum beco estreito do bairro, algum local mais apropriado. Só sabemos que na Quarta-Feira de Cinzas Magda voltou para o Rio, para a companhia do seu amado esposo. Também não sabemos se voltou em carnavais seguintes.

Recife, Abril de 2011.

14 comentários:

Unknown disse...

Tia Lu (sei que você prefere Lu,mas quero que as pessoas saibam que eu sou "a" sobrinha da famosa Lúcia Escritora Rosas),

Adorei mais esse. Já estou a espera do próximo! Como diz meu filho: boto fé!

Beijos, Cris

Eveline Glória disse...

Lucinha, realmente... taí no que dá a castração. Um dia explode e ninguem segura. Adorei.

Eduardo R. Ribeiro disse...

Muito bem escrito, vc tá ficando cada vez melhor nisso. Gostei da foto também. Bjs. Eduardo

JAqueline Saunders disse...

Querida,
Estou adorando sua produção literária, e mais, a publicação, dando-nos a oportunidade de usufruir de textos inteligentes, bem-humorados e bem escritos.
Li o anterior, adorei. Comentei no blog e respondi ao seu e-mail, você viu? Lerei este mais tarde.
Quem sabe você não me inspirará a voltar a escrever e a seguir o meu sonho de tornar-me romancista...
Xero, Jacqueline

Unknown disse...

Se na quarta-feira de Cinzas Magda voltou para o Rio, sem que, “em algum beco estreito do bairro ou em algum local mais apropriado”, ter complementado seu “affair”, é uma lástima, pois, sem isso – ou aquilo – não houve um “amor de carnaval”...

Lourdinha disse...

oi lucinha, parabéns !!! adorei o conto....muito bem escrito...sua verve literária é excelente....
bjs lourdinha

Malba disse...

Lucinha fiquei de:boca aberta: como se diz.Não sabia que tinha uma irmã escritora.Adorei, estou esperando a outra crônica.Beijos Malba

Mary Caldas disse...

Lucinha minha amiga, parabéns! Nisso que dá os blocos animados de carnaval do Recife. Bem vinda ao blog do Hugão estou esperando a próxima. Beijos, Mary

Heliane disse...

Lucinha querida, já te disse pessoalmente mas quero registrar meu depoimento: seu texto está leve, gostoso de ler e muito bem escrito. Parabéns! Beijos.

Evandro R. Ribeiro disse...

Li e gostei, mãe! Esses carnavais.... áiiiiiiiiiiii!

Unknown disse...

Lúcia, que barato!!! O Carnaval sempre enseja boas estórias, só precisa de alguem para captar tudo de pitoresco, inusitado, para escrevê-las. Já pensou se você se especializa? De qualquer maneira continue nos deliciando com seus contos.

Laura Melo disse...

Luluzinha, minha querida

Está ótimo seu conto/crônica. Continue nos brindando com seu talento.
Beijão,

Laura Melo

clea disse...

Oi Lucia, gostei deste tb. Maravilha. Beijos, Cléa

Cléa Wanderley disse...

Lucia Rosas, está um "barato' (ainda se usa?) suas escrivinhanças. Crônicas leves, gostosas de ler. Que bom, amiga. Parabéns e beijão pra tu. Conta mais. Cléa