quarta-feira, abril 13, 2011

Palavras, palavras...

Antonio Carlos A. Gama

O poder das palavras

"No princípio era a Palavra e a Palavra estava em Deus; e Deus era a Palavra. Todas as coisas foram através dela feitas e sem ela nada do que foi feito poderia ser feito. Nela estava a vida e a vida era a luz dos homens." (Jo 1:1)

É conhecida a história, contada pelo próprio Millôr Fernandes, de que era para ele se chamar “Milton’, mas a caligrafia do escrivão que lavrou seu registro de nascimento — que fez um “t” aberto como se fosse um segundo “l”, esquecendo-se ainda de cortá-lo, além de traçar o “n” final com aparência de um “r” — acabou por lhe conferir um nome único (o acento circunflexo é por conta dele, para assinalar a sílaba tônica), que marcou e transformou sua vida, pessoal e artística.

Eis aí um exemplo perfeito e acabado do poder das palavras, que dão sentido ao que somos e ao mundo em que vivemos, e são capazes até mesmo de criar ou alterar realidades.

O mesmo Millôr, que também é um grande desenhista, ao ser confrontado com a famosa frase “uma imagem vale por mil palavras”, costuma redarguir de modo irrespondível:

— Diga isso sem palavras.

Embora grego para mim seja grego, sabe-se que Aristóteles definiu o homem como “zôon lógon échon”. A tradução corrente desta expressão como “animal dotado de razão” ou “animal racional” é uma traição (traduttore, traditore), porquanto o sentido mais correto seria “vivente dotado de palavra”.

Pode-se viver cem anos de solidão, mas não cem anos sem palavras. Por isso, quando foram atacados por uma espécie de amnésia progressiva, os habitantes de Macondo, para não esquecer do que o mundo significava para eles, fizeram rótulos e os penduraram em animais e objetos: “Isto é uma árvore”, “Isto é uma casa”, “Isto é uma vaca, e dela se obtém o leite, que, misturado com café, nos dá café com leite”.

São, pois, com as palavras que damos sentido ao que somos, ao que nos acontece, ao que sentimos. O vivente humano é palavra ou é enquanto palavra, está tecido de palavras, o seu modo de viver se dá na palavra e como palavra.

Embora seja controversa a origem da Cabala, sustentam místicos e ocultistas que o Livro da Criação (SEFER YETSIRAH) fundamentou as práticas cabalísticas com as noções de que a realidade estaria estruturada através das letras. Por essa concepção o mundo derivou de 32 elementos (os 10 primeiros números e as 22 letras do alfabeto hebraico), e o processo cósmico estaria embutido na progressiva descoberta do nome de Deus, inacessível à maioria dos mortais.

Outra curiosidade ou mistério tratado pela Cabala é que a palavra "Deus" pode ser escrita com 4 letras na maioria dos idiomas conhecidos. Há tempos que filósofos, magos e até mesmo autoridades eclesiásticas se impressionam com esta estranha coincidência. Em inglês, os místicos preferem usar o nome “Lord” (4 letras) em lugar de “God” (3 letras) para se referir a Deus, uma vez que “God” é um anagrama, que escrito de trás para frente forma a palavra “Dog” (cão), uma das designações de “Satã” (4 letras).

A força e a importância das palavras revelam-se, ainda, no fato de que os grandes acontecimentos históricos sempre são marcados por frases (verdadeiras ou não) que teriam sido ditas pelos seus protagonistas.

Desnecessário citar algumas delas aqui, até porque cada um terá suas preferidas.

Não menos notáveis e extraordinariamente significativas são as frases ou palavras que se tornaram verdadeiros ícones, sem que nunca realmente tenham sido ditas, ou cuja autenticidade é duvidosa.

O cultuado filme Casablanca, dirigido por Michael Curtiz e estrelado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, que eternizou a canção As Time Goes By, é frequentemente lembrado pela frase talvez mais lendária do cinema, “Play it again, Sam!”, que nunca foi dita, seja por Bergman, seja por Bogart. Ilsa (Bergman) fala ao pianista: “Play it, Sam. Play As Time Goes By”. E depois, quando Rick (Bogart) manda que Sam toque também para ele a mesma música, diz: “You played it for her, you can play it for me.”

Outra história ótima é a das enigmáticas palavras atribuídas ao astronauta Neil Armstrong, comandante da missão da Apolo 11 e o primeiro homem a pisar o solo lunar.

Depois de haver proferido a grandiloquente frase (por certo preparada de antemão) "That's one small step for a man, one giant leap for mankind", pouco antes de retornar à nave teria dito ainda: "Good luck, Mr. Gorsky".

A versão saborosa — que teria sido desmentida pelo próprio Armstrong — é a de que ele, quando ainda criança, estava jogando baseball com um amigo no quintal da sua casa. A bola voou longe e foi parar no jardim ao lado, perto de uma janela da casa de seus vizinhos, o casal Gorsky. Quando o menino Neil se agachou para apanhar a bola, escutou uma furiosa senhora Gorsky vociferando para o marido:

? Sexo oral? Você quer sexo oral? Sabe quando? Você terá sexo oral quando o filho dos vizinhos caminhar na lua!"

Tudo isso me faz recordar outra frase cinematográfica famosa, do final de um dos maiores westerns de todos os tempos, O Homem Que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance), do grande John Ford, dita pelo jornalista Scott ao senador Stoddard, interpretado por James Stewart, justificando a razão de desistir de publicar os verdadeiros fatos que acabavam de lhe ser revelados pelo senador:

Aqui é o Oeste, senhor. Quando a lenda vira um fato, publique-se a lenda.

Todas as palavras, menos uma
A palavra é larva
que se transmuda
desprende da língua muda
e no seu voo sonoro
engravida os ouvidos
repetindo o milagre
da Imaculada Conceição.

A palavra lavra
a folha branca
depositando no seu ventre liso
negras sementes
que fecundam os olhos
e a imaginação.

Como no poema de Bandeira,
a minha vida fica
cada vez mais cheia
de palavras
(e de minhas tantas tolices),
todas as palavras, menos uma:
a que você nunca me disse.

colhido no marcoswanz.blogspot.com

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