O que é a mais-valia marxista, fundamentalmente baseada na teoria do valor-trabalho de Ricardo? O próprio Marx, através de caminhos tortuosos, constrói um arrazoado explicativo no Capítulo XII do volume I de “O Capital” (Abril Cultural, SP, 1963):
“O trabalhador, durante parte do processo de trabalho, apenas produz o valor de sua força de trabalho, isto é, o valor dos meios de subsistência de que necessita. Produzindo num contexto que se baseia na divisão social do trabalho, ele não produz os seus meios de subsistência diretamente, mas sob a forma de mercadoria particular, fio, por exemplo, um valor igual ao valor do seus meios de subsistência ou ao dinheiro com o qual os compra”.
Perito na arte de complicar o óbvio, Marx continua: “A parte de sua jornada de trabalho que ele precisa para isso é maior ou menor conforme o valor de seus meios de subsistência diários médios, conforme, portanto, o tempo de trabalho diário médio exigido para a produção. Se o valor dos seus meios médios de subsistência representa 6 horas de trabalho objetivado, o trabalhador necessita trabalhar em media 6 horas por dia para produzi-lo. Se ele não trabalhasse para o capitalista, mas para si mesmo, teria de trabalhar em média a mesma parte alíquota da jornada para produzir o valor de sua força de trabalho e assim obter os meios de subsistência necessários à sua manutenção ou reprodução continua. Mas como na parte de trabalho em que produz o valor diário da força de trabalho, digamos 3 xelins, ele produz apenas um equivalente ao valor dela já pago pelo capitalista e, portanto, repõe apenas o valor adiantado do capital variável pelo novo valor criado, aparece essa produção de valor como mera reprodução. A parte da jornada de trabalho em que sucede essa reprodução, é o que chamo de trabalho necessário, e de trabalho necessário o trabalho despendido durante esse tempo. Necessário ao trabalhador, por ser independente da forma social de seu trabalho. Necessário ao capital e seu mundo, por ser a existência contínua do trabalhador e sua base”.
“O segundo período do processo de trabalho”, continua Marx, “em que o trabalhador labuta além dos limites do trabalho necessário, embora lhe custe trabalho, dispêndio da força de trabalho, não cria para ele nenhum valor. Ele gera a mais-valia, que sorri ao capitalista com todo o encanto de uma criação do nada. Essa parte da jornada de trabalho chamo de tempo excedente, e o trabalho despendido nela: mais-trabalho”.
O texto é obscuro, mas deixo a critério do leitor as diferenças essenciais entre o que dizem Ricardo, Proudhon e Marx sobre a mais-valia, e aqui peço licença ao leitor, por oportuno, para passar às criticas do economista Eugen von Bohm-Bawerk, autor da “Teoria Positiva do Capital” (1889) e um dos representantes da Escola Austríaca, celebrizada pela aplicação da teoria da utilidade marginal. Para Bohm-Bawerk, a teoria do valor-trabalho de Ricardo (e, por extensão, a mais-valia de Marx), para além de falaciosa, apresenta uma noção de valor absolutamente inútil, porque não leva em conta o valor de uso, ou melhor, suas valorações subjetivas. Para os integrantes da Escola Austríaca, valorar significa escolher entre distintas opções e escolher compreende querer isso mais do que aquilo. Cada ato de escolha, por sua vez, se caracteriza por uma densidade de psíquica de sentimentos, que é própria a quem compra e vende. O valor (preços), portanto, não passa da expressão do desejo das pessoas de adquirirem mercadorias.
A base da economia moderna – completa outro represente da Escola Austríaca, Ludwig von Mises (1881-1973), em “Ação Humana” (Instituto Liberal, Rio, 1990), “é a noção de que é precisamente a disparidade de valor atribuídas aos objetos trocados que resulta na sua troca. As pessoas compram e vendem unicamente porque atribuem um maior valor àquilo que recebem do que àquilo que cedem. Assim, uma noção de medição (metodologia) de valor é inútil. Essa noção só pode ser aferida pelo mercado, onde prevalece, por definição, a democracia econômica: é nele, por força da livre ação dos indivíduos (elegendo ou rejeitando mercadorias) que se determina o valor dos preços.
Essa, aliás, é a razão básica pela qual, segundo a Escola Austríaca, a economia planejada ou centralizada nas mãos do governo não funciona: a tecnoburocracia simplesmente não substitui a pluralidade ou a complexidade do mercado e dos seus agentes na formação dos preços, indicativo, no capitalismo, da diversidade da produção e do consumo – o que explica, na prática, o melhor desempenho econômico e a maior produtividade do sistema capitalista.
Para continuarmos nossa apreciação sobre a raiz do pensamento de Marx, que sobrevive basicamente como uma atitude crítica em face do pensamento dos outros, faz-se necessário tecer algumas considerações sobre o seu caráter. Desde a infância, o pai do “socialismo científico” cultivou a rebeldia como uma flor de estufa. No dizer da própria mãe, Henriette, detestava o banho e qualquer tipo de limpeza ou organização pessoal, ao tempo em que manifestava total aversão pelas formas tradicionais de hierarquia. Quando estudante em Bonn, tornou-se bêbado contumaz (dirigia um clube de porristas) e, para não pagar os credores, em geral, partia para a briga armada – sendo autuado, certa vez, por porte de arma. Depois de uma dessas prolongadas bebedeiras, disputou irresponsavelmente um duelo em que saiu ferido de raspão e, tempos depois, provocou um outro em que um admirador, “tomando suas dores”, também saiu ferido.
Marx passava meses sem freqüentar as salas de aula e, nessas ocasiões, adotou o habito, segundo ele próprio muito produtivo, “de fazer enxerto nos meus escritos de todos os livros que lia”. Como era leitor voraz, passou a maior parte da vida entre porres (tomava jarras e jarras de vinhos ordinários) e leituras as mais desencontradas, sendo considerado por observadores como um “intelectual boêmio”.
No capítulo beligerância, pode-se dizer que Marx brigou com todo mundo, especialmente com aqueles a quem devia material e espiritualmente, e ainda de forma mais renhida com os que ousavam discordar de suas teorias, métodos ou ações políticas. Sua ameaça predileta, contra os adversários em geral, era um estribilho: “Eu o destruirei! Eu o destruirei!”.
Seguramente por isso o rival Bakunin o considerava um “monte de esterco”, “burguês arrogante e autoritário”, tipo “mesquinho e ambicioso”, sempre movido pela “vaidade”; Proudhon, que o auxiliou em Paris com dinheiro e amparo, o julgava um “falsário” e “verme do socialismo”; o operário Weitling, um “analista de gabinete”; o jornalista karl Heinzen, que trabalhou com Marx na “Gazeta Renana”, definia-o como “um cruzamento de gato com macaco, espírito perverso que vivia sempre sujo, capaz de tudo, menos de um gesto nobre”.
No entanto, em que pesem opiniões em contrário, Marx não era apenas um espírito diabólico ou um acadêmico ocioso interessado em aprofundar distinções filosóficas ou ainda um correto cientista social que a partir de um posto de observação de fatos e fenômenos, procurasse uma verdade plausível. Na realidade, Marx tornou-se um ideólogo e um moralista e, como tal, tinha sua verdade particular que deseja impor como única, eterna e universal - o então já delineado materialismo histórico, assunto que abordaremos no próximo artigo.
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