CARLOS MELLO
Sílvio sonhou que estava numa reunião de trabalho, com pessoas estranhas, o chefe falava com voz de locutor, que foi ficando cada vez mais alta e próxima. Acordou estremunhado. Era o despertador do rádio-relógio! Sentou na cama indeciso: Ligo pra ela e digo que não posso ir, estou com uma gripe braba? E passo esses quatro dias sozinho, sem fazer nada?
O carnaval do Rio parecia-lhe o mais chato do mundo. Logo que chegou, no primeiro ano, saiu para dar uma volta por Copacabana, quase morreu de tédio. Lembrava o tempo todo do Recife, da semana pré-carnavalesca, o corso, a alegria maluca que tomava conta da cidade. Mas aqui? A gente só sabe que é carnaval porque vê uns casais bem caretas passeando com crianças fantasiadas, saquinho de confete a tiracolo, bisnaga de água na mão. Sempre foi assim. Em duas ou três esquinas uma banda horrível toca antigas músicas carnavalescas, as pessoas passam e olham, ninguém pula, ninguém se anima.
Às vezes sai um bloco do bairro, mas é ainda mais deprimente, umas velhotas de sarongue e colar de havaiana, uns sem-vergonhas vestidos de mulher, todos afetando a maior animação, uma bandinha desafinada tocando marchas antigas. À noite a avenida Atlântica fica cheia de veado vestido de mulher, dizendo gracinhas, uma frescura irritante. Bom, tem as escolas-de-samba, os desfiles, mas é só para ver, sentado numa arquibancada dura, ao relento, e tudo muito comercial, cansativo, fora de mão. Impraticável para quem não tem grana e pode alugar um camarote.
Mas a outra opção, que risco! Quatro dias numa colônia de férias na serra, longe de tudo. E se quisesse voltar, como faria? Ia com a namorada, a irmã dela, o noivo, que era capitão da Marinha, lá encontrariam o tio das moças, que era quem oferecera a hospedagem, na qualidade de presidente da associação de funcionários públicos, dona da tal colônia. E se esse capitão for um chato? O tio, elas tinham avisado, é super-careta, já estabeleceu que as duas vão ficar em um quarto, os rapazes em outro, só faltava essa! Toca o telefone, era a namorada:
- Sílvio, e aí benzinho, já está pronto? Não vá falhar, hein? Tio Anísio já falou que quer te conhecer, o Abelardo também.
- Quem é Abelardo, Alice?
- O noivo da Camila, o oficial da Marinha.
- Ah, sei...
- A gente passa aí em baixo dentro de uma meia hora, tá bem? Não deixe de levar calção, lá tem piscina.
- Tá bom, daqui a pouco estou descendo.
Jogou umas roupas na valise, tratou de vestir um traje mais esportivo. Calça jeans, camisa nova, comprada na véspera por insistência da Alice. Na hora, achou-a meio afrescalhada. Agora, vestido com ela, viu que, além disso, era muito grande e espalhafatosa, com uns riscos laterais coloridos, parecia blusa de mulher. Botou um pulôver sobre os ombros, para disfarçar, sentiu-se ainda mais ridículo. Resolveu descer assim mesmo, lá na colônia de férias botava uma camiseta branca, nunca mais usava aquela roupa de bicha.
Abelardo não é propriamente um chato, como receara, até que é boa praça, guardou a valise dele no porta-malas, convidou-o a sentar na frente, ao seu lado. Foram conversando sobre carros, o dele era novo, tirara há pouco num consórcio da Marinha. Ao chegaram à colônia, já estavam amigos. Combinaram deixar as malas das mulheres num quarto e as deles em outro, para não grilar o tio, à noite trocavam.
Desceram para a piscina, tomaram cerveja, contaram piada. O ambiente era um bocado família classe-média remediada, mas o que fazer? Ao menos estava num lugar bonito, cheio de pinheiros, com muita cerração no cair da tarde, coisas que agradavam sua retina habituada ao sol forte e à vegetação luxuriante do litoral.
Esse carnaval estava sendo bem melhor do que esperava. De dia, piscina, passeios a pé ou a cavalo. À noite, jantar com vinho, joguinho de baralho, ou de sinuca, depois cama. Alice ficou ainda mais gostosa com o clima da serra. “Que mais queres”, perguntava o poeta, “além de versos e mulheres?” Pena que está nos finalmente, hoje é terça, o pessoal começa a descer, já se sente um desânimo geral diante da perspectiva de voltar para a cidade, para a rotina opaca lá de baixo.
A animação da piscina diminuiu um pouco, mas ainda é grande. Todo mundo alegre, entrosado, os desconhecidos do primeiro dia já são companheiros de churrasco. Ele e o Abelardo ficaram encarregados de comprar a carne na cidadezinha, ainda aproveitaram para tomar umas cervejas, dar um giro. O Abelardo é bem forte, musculoso, faz ginástica todo dia, pelo aperto de mão vê-se que tem uma força de boi. É um cara legal, sem dúvida. Não gosta de livros, dá preferência a revistas. Paciência, ninguém é perfeito.
O churrasco vai na maior animação, a piscina está uma festa. Chegou uma kombi cheia de gente, só homem. Que será? Tio Anísio explica: deve ser gente que desfilou com as escolas de samba, está vindo descansar, a piscina é livre, desde que se pague uma taxa. É uma maneira de dar uma força para o bar e o restaurante, sempre vem gente de fora, às vezes das cidades vizinhas.
Os recém-chegados acomodaram-se em uma mesa à beira da piscina, no lado exatamente oposto ao deles, pediram bebidas, tira-gosto. Alice vem chegando com o protetor solar, besunta-lhe as costas e o nariz, cuida dele como se fosse um filho, e isso o deixa bem satisfeito. Sente as mãos macias, a voz carinhosa avisando que daqui a pouco está na hora do almoço. Fica excitado com seu biquíni, que é branco, meio transparente, dá para ver o biquinho do seio. Tem vontade de despi-la ali mesmo, na frente de todos. Ao mesmo tempo, sente uma ponta de ciúme, ao ver que a irmã dela usa um maiô inteiro, bem composto.
Deita na cadeira, cobre o rosto com o boné. Está levemente tonto, tomaram café muito cedo, depois misturou cerveja com batida. O zunzum das vozes vai sumindo, ele acaba caindo no sono. Desperta com as conversas perto dele, parece que reclamam de alguma coisa. Ouve o Abelardo inquirir o tio Anísio em voz alta:
- Poxa, tio, aqui também dá disso? É uma vergonha, deviam botar pra fora!
- Pois é, não sabia que era isso.
Isso, o quê? Segue o olhar deles, para o lado oposto da piscina e só então compreende. Os recém chegados eram gays, riam e brincavam entre eles. Mas sentiram a hostilidade do meio, as caras feias, os olhares de deboche, as piadas. E foram se encolhendo, ficaram quietos, falando baixo. Abelardo queria juntar um grupo para expulsá-los, foi preciso as moças pedirem pelo amor de Deus. Outros homens começaram acintosamente a arrumar-se para deixar a piscina, as crianças reclamavam, as mães ficaram nervosas com aquele clima tenso.
Sílvio está assustado com a virada. Como é que aquelas pessoas, tão simpáticas, e alegres, agora estão naquela guerra santa? Que mal esses caras fazem em brincar e divertir-se também? E se fossem seus amigos? Ele tinha amigos que na certa seriam discriminados ali também. Começou a sentir-se um estranho no meio daquela gente da colônia. E o Abelardo, que direito tinha de agredir os outros, de escolher quem pode freqüentar a piscina?
Aquelas questões passavam velozes por sua cabeça atônita. Olhou para o outro lado, os rapazes continuavam acuados. Um deles, o mais moço, um adolescente magrinho, sentara na borda da piscina. Tinha o olhar triste. Tirava água com uma das mãos e ia derramando aos pouquinhos. Parecia um animalzinho amedrontado, acuado por aquele ódio cego, gratuito. Sílvio não conseguia afastar o olhar daquela criatura, daquela cena, que lhe revolvia o peito com sentimentos díspares, de pena daquelas criaturas, de ódio daqueles fascistas, que se arvoravam donos do comportamento alheio. Levantou-se, mergulhou na piscina, nadou até o outro lado, onde estava o rapazinho.
- Oi, tudo bem com você?
O garoto olhou assustado, não entendia aquele gesto, seus amigos também pareciam preocupados.
- Vocês estão vindo do Rio? Foi bom o carnaval lá?
O garoto continuava a olhar para ele, indeciso, desconfiado. Respondeu meio a medo que tinham desfilado na avenida, depois tinham buscado a colônia para descansar. Era a primeira vez que vinha àquele lugar, achou lindo, muito calmo.
- Deve ser bem mais agradável com menos gente.
- Com certeza. É a primeira vez que venho aqui também.
- E está gostando?
- Sim. Como é seu nome?
- Manfredo.
- Prazer, Manfredo. Meu nome é Sílvio. Vocês voltam ainda hoje?
- Sim, daqui a pouco. Já pedimos a conta.
- Então até logo. A gente já está voltando também.
O garoto fez um ar triste.
- Então adeus. E.... olha, muito obrigado. Você é a melhor pessoa daqui.
Apertaram as mãos, Sílvio nadou de volta. Mas agora vinha leve, vinha tranqüilo, com a serenidade de quem se acumpliciara com a sua consciência. Agora sabia um pouco mais de si próprio, do que era capaz, e estava satisfeito com a descoberta.
Hoje, passados tantos anos, distrai-se na solidão da velhice a relembrar fatos de sua vida, os momentos bons e alegres, e também os difíceis, ou tristes. É como mexer em uma caixa de fotos antigas. Ou uma coleção de moedas e medalhas. E sempre recorda com agrado aquele dia especial, na beira da piscina, quando durante alguns poucos minutos o universo ficou em suspenso. É como uma medalhinha de ouro, única condecoração de sua vida, que ele conferira a si próprio por aquela pequena bravura.
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