sexta-feira, fevereiro 16, 2007

A SINFONIA DOS SAPOS

Membro da Associação Americana de Urologia (AUA Board Certified), da Sociedade Brasileira de Urologia e correspondente das sociedades Européia, Norte-americana e Latino-americana de Urologia, Dr. Amaury Medeiros é também autor de diversos artigos em jornais, revistas nacionais e estrangeiras e de vários livros. Membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, da Academia Recifense de Letras e da Academia Pernambucana de Letras, APL. Uma honra tê-lo conosco. H.C.

AMAURY MEDEIROS

Luiz da Câmara Cascudo, em seu Dicionário do Folklore brasileiro, nos conta fatos interessantes sobre os sapos. Ressalta sua presença inevitável nas nascentes e fontes de água como elemento protetor de grande valia na preservação do equilíbrio ecológico. Os indígenas chamavam-no "mãe da chuva". Ao longo da história da civilização, o sapo tem sido um figurante vivo e constante na literatura oral. Nas fábulas de Esopo - personagem meio lendário que viveu no século 6º a.C e teve influência nos diálogos de Xenofonte e nos escritos de La Fontaine - ele aparece como participante cômico e, às vezes, de astúcia arteira e vencedora. Dois exemplos opostos são o sapo que viaja para a festa no céu dentro da viola do urubú, e a sua aposta de corrida com o veado. Não esquecer que o sapo foi, em certa época, elemento indispensável como vetor na transmissão de mágicas e feitiçarias.

Nosso poeta maior, Manuel Bandeira, não escapou da influência dos batráquios. Em Carnaval, sua voz faz-se satirizante com Os Sapos, poema que seria uma espécie de hino nacional dos modernistas. "Enfunando os papos,/Saem na penumbra,/Aos pulos, os sapos./A luz os deslumbra." Lá na frente de casa, num relance de infância, vejo-os que surgem saltitantes, peitos insuflados. "Não mexam com os pobres bichinhos! Cuidado que a mijada deles pode cegar!" Os meninos maldosos desferiam-lhes chutes nos trazeiros e morriam de rir. O sapo-boi olhava de esguela e berrava em ronco aterrorizante: "Meu pai foi à guerra!" "Não foi!" "Foi!" "Não foi!"

Recentemente, quando o sol se escondia com mansidão por detrás das nuvens carregadas de cansaço, o mano Adilson me convidou para assistir a uma exibição sinfônica. Fiquei surpreso por nos encontrarmos no interior são beneditense, às margens do Rio Pirangi. No beiral líquido, quedamo-nos estáticos na reverência da paz reinante. Parecia-nos escutar o silêncio do mundo, como fazia nossa saudosa mãe. De súbito, um ruído musical coaxante, isolado e único. Seguiram-se notas dissonantes, que mais semelhavam um ajuste instrumental, as quais, pouco a pouco se integravam numa harmonia repetitiva. Obedecendo a certo ritmo, as notas se alternavam atingindo progressões ascendentes e descendentes, agudos e graves, quebrando o sossego crepuscular na beleza sinfônica do coaxar dos sapos. Como sob o comando de uma batuta oculta e misteriosa, de repente as vozes silenciavam, num uníssono, para recomeçar em seguida no mesmo diapasão de sonoridade.

Para muitos uma bobagem, perda de tempo, permanecer à beira do rio escutando o coaxar dos sapos como se fora uma sinfonia. Poucos têm a sensibilidade de encontrar alegria, festa e luz nas pequenas coisas da vida. Já que vivemos tão estressados, porque não buscar a paz interior, que tanto precisamos, nos imprevistos do mundo circundante? Em Jean Sateuil, o genial Marcel Proust nos aconselha gozar com doçura "o sentimento da plenitude da vida":
o mar e o sol dissolvido no mar, as papoulas trêmulas ao vento, as rosas purpúreas, as sombras dos pombos cinzentos que pisoteiam a grama, as borboletas e os pássaros que parecem anjinhos alados. É alegre o ouvido que escuta a música de Schumann ou a das moscas, "música de câmera estival". Ou a sinfonia dos sapos que se ocultam sob um tapete de baronesas no beiral do rio. Necessário que admiremos as manifestações da natureza, em cuja simplicidade se escondem os segredos da beleza plena. Urra o sapo-boi: "Meu pai foi rei" "Foi!" "Não foi!" "Foi!" "Não foi!"

Amaury Medeiros - amamed@hotmail.com


3 comentários:

Unknown disse...

Dr. Amaury e Prof. Hugo,

Emocionante esse texto. Entrei nos pantanos, lagos e lamacais da minha infancia...

Muito obrigada.

Anônimo disse...

Oi, Hugão,

Cada dia que passa, ou melhor, cada edição que chega aos leitores,o Blog se apresenta sempre melhor. Tenho dúvida se dou-lhe os parabéns
ou se, na qualidade de leitor, recebo os parabéns.
Como o blog iniciou com o excelente texto do Dr. Amaury sobre sapos, ocorreu-me fechar este pseudo
comentário expressando-me como nos tempos de moleque do primeiro
grau no Colégio Alfredo Dantas, em Campina Grande: o blog está de
primeirra; está de tacada, igual a mijada de rã.
Receba um abraço deste seu admirador e leitor inveterado.
Lula.

Hugo Caldas disse...

Lula
Gratíssimo pelas simpáticas palavras.
Receba os parabéns não apenas como leitor mas como colaborador do Blog. Aliás o nobre amigo está já me devendo uma matéria nova. Meu abraço.
Hugo