sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Ipuarana - Falso Recuerdo de Infância/Adolescência. Onde Ainda Se Buscam Respostas. Uma Viagem Ao Imponderável

HUGO CALDAS

A igreja do Rosário em Jaguaribe foi um marco na minha infância. Não tinha um estilo definido mas era imponente. Convento de frades franciscanos, na maioria de nacionalidade alemã, que vinham para cá nos catequisar e nos arrancar das garras do pecado. Durante a 2ª Guerra Mundial os frades se tornaram potencialmente nossos inimigos. Soldados do 15 RI, armados, ficavam postados junto ao altar durante a celebração da missa. Nunca entendi o que existia de tão importante no proletário bairro de Jaguaribe que pudesse ser do interesse do Eixo Roma-Tóquio-Berlim.

Foi lá, na Paróquia do Rosário, que tomei lições de catecismo, com Dona Hermengarda para a primeira comunhão. Certa vez um colega, meio desavisado perguntou se a Hóstia Consagrada era igual a rodinha do desenho do mosaico da sala. Foi devidamente admoestado com uma descompostura em regra. Foi lá, no campinho de futebol dos frades que pela primeira e última vez joguei uma partida de futebol, envergando o uniforme de goleiro do segundo quadro da Cruzada Eucarística. Fizeram um complô para que eu viesse a jogar contra os trangolões da Congregação Mariana. Por artes do tinhoso me apareceu um penalty. Decidi que iria ficar no gol apesar da minha proverbial incapacidade para o nobre esporte bretão e tem mais, recusei de pronto um novo complô para me substituirem. O cobrador mandou um chute certeiro que atingiu minha barriga me jogando ao chão, desacordado. Mas a bola não entrou. A maior glória. Acordei com Frei Serafim passando um chumaço de algodão com arnica nas minhas ventas, a fim de ressucitar o heroi daquela tarde. Lá também eu ia com a minha mãe assistir as Missões... "eles têm a foice e o martelo mas nós temos a cruz"... era nesse clima de sagrada beligerância que se davam os sermões pronunciados no português canhestro dos piedosos frades. Aos domingos me vestia de coroinha e de posse de um pequeno cofre de madeira ia fazendo a coleta para as Santas Missões. Minha Tia Aurinha adorava me ver desempenhando esse papel, e muito séria, fingindo não me conhecer, às vezes, segurando o riso, depositava a sua contribuição. Mais tarde à mesa do almoço o assunto só podia ser eu, no meu piedoso ofício de coroinha.

Frei Serafim era irmão leigo. Pintava bem e ainda podem ser vistos alguns trabalhos seus adornando o pequeno púlpito ao lado esquerdo da nave central. Lembro que ajudei nesse trabalho. Limpava os pincéis. O porteiro do convento era Seu Inácio que se considerava frade sem nunca ter sido. Usava batina, cordão branco, terço de contas de madeira escura e pesada, corte de cabelo igual, e às vezes até inventava de falar engrolado que nem os alemães. Só que o resultado era um alemão baixinho, atarracado, meio amarelo e cara de lua cheia. Era uma figura curiosa. No subterrâneo ficava o túmulo de Frei Martinho, que diziam ser milagreiro, o que se poderia perfeitamente constatar à visão de inúmeros ex-votos, muletas, e uma infinidade de fotografias. Mas deveríamos ter a autorização de Seu Inácio para qualquer visita. Ele adorava exercer essa prerrogativa.

O tempo passou...

Ipuarana. De repente me vejo em meio a um bosque de eucaliptos onde ficava o convento/escola dos frades franciscanos. Ainda hoje o perfume da planta me traz recordações. Passei alí tres profícuos anos estudando. A rotina diára era pesadona. Iniciava às 5 da manhã com banho coletivo de chuveiro com água fria. Todos de camisão que era para não ficar inventando bobagem. Às 6 horas, missa na capela. Às 7 hs deveríamos estar no final do café da manhã para logo após iniciarmos as aulas que iam até o meio dia. Tínhamos todas as matérias curriculares acrescidas de noções de teologia, grego e astronomia. À tarde, após o almoço, banca de estudos a fim de preparar as tarefas do dia seguinte, até às 4 horas - daí então até as 5hs, um joguinho de futebol ou, para os menos afeitos, um mastro com uma bola pendurada por uma tira de couro chamado de "Speedy Ball." Novamente banho, terço na capela e jantar às 7hs. Mais meia hora de estudos e recolhimento para tudo reiniciar novamente no dia seguinte.

Certo dia encontrei na sala destinada às visitas, um recorte de "O Diário de Pernambuco." Um dos artigos me chama particularmente a atenção pois dava conta de uma mãe de santo de Água Fria, bairro do Recife, que praticamente dominava toda a comunidade. Nada se fazia ou se deixava de fazer sem o consentimento dela. Ninguém casava/descasava ou fazia/desfazia qualquer negócio sem o "Nihil Obstat" dela. Um assombro esse tipo de acontecimento, esse domínio sobre as pessoas em plena segunda metade da década de 50 do século passado.

Corri a mostrar o achado ao frade monitor da minha sala, com quem adorava conversar fazendo mil e uma perguntas inconvenientes, Frei Boaventura, um holandês que gostava mais de esportes do que de religião. Após a leitura, olhando-me firmemente, disse-me ele:

- Veja você, hoje em pleno século vinte uma pessoa muito provavelmente ignorante exerce esse poder, imagine há quase dois mil anos um sujeito altamente inteligente como Jesus Cristo, com mania de ser Deus, o que não faria. E olha que Ele fez muita coisa. Mudou o mundo...

... e continuaria conjeturando sobre os feitos do Nazareno não o tivesse interrompido...

- Como assim, "mania de ser Deus"...
- Bom, na realidade Ele era o Filho de Deus Vivo...
- O senhor disse claramente..."mania de ser Deus"...Que significa isso?

Dessa vez ele me olha mais firmemente...

- Quando você vai entrar de férias?
- Em setembro próximo.
- Pois vá, aproveite bem suas férias e... não volte...!
- O que? Será que eu ouví bem? E a minha vocação?
- Que vocação coisa nenhuma meu caro. Você está aqui apenas para estudar. Vá tirar definitivamente a Prova dos Nove. Descubra se o seu lugar é aqui ou lá fora.

- Frei Boaventura, disse-lhe eu, reconheço que sou meio incômodo, meio abelhudo, fazendo as perguntas que costumo fazer, mas não será fácil. Terei que abdicar de muita coisa.
- Se você arranjar uma namorada as coisas simplificam. Viva a sua vida. Não se vive tudo de uma vez. A vida se vive por etapas. Aproveite, meu caro. Um dia você vai me agradecer.

E assim foi feito. Saí de férias e não mais voltei. E foi aí que Amelinha de Lourdes entrou na minha vida. Fui convidado para ser seu par no casamento de Celina, sua irmã mais velha. Foi o começo de tudo. Foi o inicio de um amor turbulento, com idas e vindas. Daqueles amores difíceis de serem esquecidos. Um belo dia eu prometo contar.

O tempo passa novamente...

Aeroporto dos Guararapes, Panair do Brasil, inicio dos anos sessenta. Chego para o trabalho meio ressabiado por ter que entrar no primeiro dos famosos pernoites. Verifico a lista de passageiros embarcando para a Europa. Tinha lá, logo o primeiro nome:

Frei Markus Boaventura ofm. Era ele, voltando para casa. Aposentadoria. Falei aos colegas em poucas palavras da importância que ele exerceu na minha vida. Pedi que todos ficassem comigo no balcão pois não sabia como iria reagir à presença de quem mudou praticamente tudo desde aquela conversa no campinho de futebol numa tarde morna da década de cinqüenta. Frei Boaventura chegou logo em seguida, acompanhado por alguém do Arcebispado. Um pouco mais envelhecido. Olhou para mim e logo me reconheceu.

- "E então, eu não tinha razão?" E como se a conversa que tivemos há 5 anos atrás tivesse acontecido há 5 minutos, emendou...

- "Você daria um bom sacerdote mas um péssimo frade."

A volta para a Europa foi a sua derradeira etapa. Frei Markus Boaventura ofm - uma grande influência na minha vida - morre seis meses depois.

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2 comentários:

Anônimo disse...

Hugão.
Adoro ler este blog. Continue mandando. OBg. Bjs. Naza

Anônimo disse...

Ótimo falso recuerdo Painho! História bonita e que dá vontade de voltar no tempo. Bom tempo...

Quero mais.