quarta-feira, novembro 08, 2006

Recuerdo 12 - O CAVALHEIRO DA ESPERANÇA E A ORGANIZAÇÃO DO PCB

HUGO CALDAS

Crescí ouvindo as pessoas falarem que o PCB era muito organizado. Havia até quem se ariscasse a dizer que tal coisa ou, fulano e sicrano, "eram tão organizados quanto o Partido Comunista".

Em duas ocasiões distintas constatei essa tal organização. Ambas, trabalhando no aeroporto da Panair do Brasil em Recife. Na primeira vez, atendia ao vôo 256 proveniente de Fortaleza, que saía do de Recife às 11.50 da manhã com destino ao Rio. Balcão lotado de passageiros querendo embarcar. Não havia então, o pesadelo criminoso, o cáos que existe hoje. O 256 era muito disputado devido ao horário e ao lauto almoço servido à bordo logo após a decolagem. Eis que diviso em meio aos passageiros a serem embarcados ninguém menos que O Cavalheiro da Esperança, Luís Carlos Prestes. O ícone das esquerdas brasileiras. O heroi de várias moçoilas desavisadas deste meu Brasil varonil.

O que tem a ver o bolso com as calças...? Tem tudo. E muito, senão vejamos.

Na realidade o equipamento (avião) iniciava a viagem no Rio às 23:50 com o registro 254, indo para Fortaleza, com escala às 04:40 no Recife. Voltava de Fortaleza chegando ao Recife às 11:50 com novo registro, 256. O que significa isso tudo?

Vamos nos situar no tempo. Fins da década de 50, começo dos anos 60, imaginem então que Prestes veio ao Recife para subir no palanque do Dr. Cid Sampaio que queria eleger prefeito do Recife o seu cunhado, um sujeito que trabalhava no IAA e que mais tarde se tornaria famoso "neste país". Esse camarada atendia pelo nome de Miguel Arrais.

Pois bem. A comunistada, ao que se sabe, não dorme em serviço. Alguém do setor de revervas de lugares e tráfego de aeronaves da Panair no Rio de Janeiro, sabia que o "homem" estaria embarcando naquela manhã no Recife, e simplesmente, como uma espécie de homenagem, deu um jeito de escalar o equipamento com o seguinte prefixo: PP-PCB.

Pode até parecer coisa de somenos importância mas era assim mesmo que tudo funcionava. Tudo acontecia ou parecia acontecer como num fervor místico, esotérico. Àquela história de "cristão das catacumbas", meio ôba-ôba. Mas era a glória!
Pausa para um pequeno detalhe: Na década de setenta, período mais negro da revolução, o Gilberto Gil, ele mesmo, o agora Ministro da Cultura, o mesmo da "Afinação da Interioridade", conseguiu colocar um grunhido parecido com o nome de "Marighela" no meio de uma das faixas de um disco que recém gravara. Mal se ouvia, mas era como chegar ao Nirvana. Uma babaquice generalizada.
Ví muita gente boa, revirando os olhinhos. Mas voltemos.

De onde me encontrava, no balcão de despachos, dava perfeitamente para ver o Constellation L-49 ostentando o prefixo imponente, PP-PCB. Já havia tomado conhecimento do aparelho, já o conhecia de outros carnavais mas desta vez foi como num jogo de cartas marcadas. Um quebra-cabeças onde tudo se encaixava.

Fiz um ar de riso e Prestes simpático, no seu indefectível terno branco perguntou qual a razão do meu sorriso. Pedi então para que ele se dispusesse a entrar no escritório a fim de poder também verificar o avião estacionado no pátio.

- "Então, o que acha, disse-lhe num sussurro?"
Impassível, sereno, sem mexer um só músculo da face, disse apenas:
- "Não resta a menor dúvida, bem interessante, mesmo".

Impertubável, como quem conhecia perfeitamente os escaninhos e os subterrâneos da organização. Ao final dos procedimentos de praxe, terminamos o despacho do avião, todo mundo embarcado, e o 256 subiu aos céus mais parecendo uma enorme garça prateada. Chegou, como sempre, pontualmente ao seu destino. São e salvo. Naquela época não havia a irresponsabilidade criminosa de hoje. Os aviões voavam em diferentes "aerovias", recebiam e trocavam comunicações em português e inglês com as torres de contrôle. Não existiam nem mesmo esses tais "transponders" que muitos reclamam estarem desligados.

De outra feita aconteceu em um fim de tarde de uma Sexta-Feira. Estranhei o movimento incomum do aeroporto, mais parecendo dia de Domingo. Muita gente num vai-e-vem frenético. Não tínhamos conhecimento de alguma autoridade ou figurona ilustre chegando ou embarcando. Dentro em pouco descobrimos a razão de toda aquela atividade. Estava por chegar, já sobrevoando a cidade de Salvador, um Tupolev da Aeroflot, companhia da então União Soviética, trazendo uma delegação russa de volta das comemorações pela data nacional da Argentina. Soménte tomamos conhecimento da chegada do avião por um rádio do Itamaratí minutos antes da chegada. Alegavam medidas de segurança já que o Brasil e a União Soviética não mantinham relações diplomáticas. Seria apenas um pouso técnico para reabastecimento. Ninguém sabia de nada. Exceto, é claro, os comunistas do Recife que sabiam de tudo, e o que é melhor, não faziam segredo do fato. Depois do pouso foi a maior festa. Brindes, revistas de propaganda do socialismo - em português - foram distribuidos. Bandeirinhas brasileiras e soviéticas. Um sucesso.

Tive com o Cavalheiro da Esperança um derradeiro encontro. No aeroporto do Galeão quando da volta dos anistiados. Mencionei o desejo de ir até onde o fato iria acontecer e uma pessoa muito ligada a mim à época trabalhando na TVE Carioca me forneceu graciosamente colete, crachá e um lugar na sua equipe de jornalistas, bem como uma possante Pentax com flash eletrônico. Saí documentando o que me aparecia pela frente. Prestes, a figura ímpar de Gregório Bezerra, Miguel Arrais e mais uma penca de exilados. Mais uma vez a organização do PCB funcionou. De repente, como num passe de mágica todos se deram as mãos e à medida em que alguém recitava em voz alta o nome de algum companheiro morto ou desaparecido todos respondiam, como numa ladainha devidamente puxada pelo Padre Zé Coutinho, "PRESENTE."

Confesso que foi um momento tocante. Presente também, estavam as moçoilas desavisadas lá do início, já nem tão moçoilas assim nem desavisadas, mas sempre alí, junto à Prestes, o ídolo.
As fotos tiradas desse evento ficaram guardadas por anos em meus arquivos quando um belo dia achei de presentear os meus amigos comunistas do Recife. Espero tenham feito bom uso delas.

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