domingo, janeiro 22, 2012

A Universidade do Canadá



Ipojuca Pontes



A sorveteria e restaurante Canadá era limitada, ao leste, pela Barbearia Souza e a Camisaria Santos e, a oeste, pela loja de eletrodomésticos General Novilar e a Casa de discos Sancol, cuja atendente, de pernas invejáveis, inventou a mini-saia antes da Mary Quant e que se tornou uma paixão dos pessoenses em geral e do pessoal da Universidade do Canadá em particular – ela sozinha vendeu mais de mil copias do álbum “Nat King Cole em Espanhol” trauteando o Cachito Mio. Ao norte, isto é, defronte a UC, tinhamos o Ponto de Cem Reis propriamente dito, com seus carros de praça e dois pavilhões - um dos engraxates; o outro um bar ordinário cuja peça de resistência era misto quente acompanhado de guaraná Dore. Entre os dois, num pedestal de inspiração gótica, reinava o nosso Big Bem, sempre atrasado.

Antigo prédio do Paraíba Hotel onde funcionava a Universidade do Canadá

Neste circuito insípido, imperavam o engraxate Coquinho, cuspindo sua pestilência em cima dos passantes, e Rita do Preá, vendedora de bilhetes de loteria que engravidava a cada nove meses, às vezes sete, dependendo do susto. Detalhe: nas festas de fim de ano, para vender bilhetes e ganhar uns trocados, Rita aparecia com uma multidão de filhos, nunca menos de uma dúzia. Invariavelmente, nessa época, tomava dinheiro do sempre controlado Mário da Gama e Melo, primo de Virginius e vereador em consecutivos mandatos. Uns diziam que ele, Mário, era de sexualidade ignorada, mas outros que era um tremendo come quieto.

Antes de ser Sorveteria, a Canadá era o restaurante do Paraíba “Parece” Hotel, onde se hospedavam os clubes de futebol visitantes, entre eles o Vélez Sarsfield, da Argentina, e o Flamengo, do Rio, que, com Rubens, Dequinha e Jordan, perdeu para o Botafogo do técnico Vavá por 3 a 2 – três goals de Milton Doidão, em tarde impossível.


A Universidade do Canadá abria suas portas quando o Reitor Virginius chegava da Faculdade de Filosofia, onde lecionava literatura brasileira, por volta das 11 horas da manhã. Seus freqüentadores mais assíduos eram Altimar Pimentel, eu mesmo, o contista Robério Toscano, Otacílio Queiroz, Hilton Veloso, o advogado comunista João Santa Cruz, seu sobrinho Mário Santa Cruz (o Mário Peninha que depois de um gole da cachaça “Rainha” balançava como uma pena no ar), o bancário Antonio Aragão, Petrônio, pai do poeta Castro Pinto, sempre muito educado, Waldemar Duarte e um tio de Paulo Melo, Ítalo Dália, que não bebia, mas escreveu uma série de artigos na UNIÃO intitulado: “Shakespeare, um superficial”.


Os loucos do “campus” da universidade, bordejando pelas calçadas, eram David José dos Reis, que comprou o vaticano para presenteá-lo ao papa, e Manuel Caixa Dágua, com seu terno branco impecavelmente sujo. O louco admirável, meteórico, era Daniel, que parava defronte à mesa do Reitor e, agitando os braços, vociferava contra os corruptos da época.


Dizia, agigantando-se: “Casacudos e estrelas bordadas, ladrões e venais da República, para vocês um só destino: a forca!”.

Circunstancialmente passavam pela Universidade, em pousos curtos, que me lembre, pois eram muitos, os jornalistas Biu Ramos, Oswaldo Duda, Euripedes Gadelha, Pascoal Carrilho, Carlito, Juarez Felix, Wills Leal, Paulo Pontes, o poeta Celso Novais, o médico Arnaldo Tavares, os campinenses Raimundo Asfora, Figueredo Agra, Orlando Tejo, o guarabirense Osmar de Aquino e o santa-ritense Marcos Odilon, por ai.


Por vezes, as aulas, cevadas a cerveja, e raramente a asas de galinha, seguiam até às onze da noite, quando a Canadá fechava exaurida. Nota curiosa: embora fosse uma sorveteria, com sorvetes de apenas três sabores – coco, morango e chocolate – nunca flagrara vivalma tomando um gelado.


No anexo, tinha o balcão do cafezinho, ponto obrigatório dos desocupados, que entre um café e um cigarro, viam a passagem de estudantes, funcionários públicos, visitantes, homens e donas de casa que iam ou vinham do comércio em busca de transportes para os bairros. Neste ambiente, reinava a fofoca, a maledicência, quem estava comendo quem, quem estava roubando o quê, Botafogo e Auto Esporte, etc. Sempre passava, findo o expediente dos Correios e Telégrafos, provocante, a gostosa Mafalda, que o língua ruim dizia ser amante do Desembargador Júlio Rique. De todo modo, o fato é que o cafezinho do Alvear, concorrente, mesmo decadente, era bem melhor – para não falar da qualidade da sua cartola acanelada e do papo de Aluísio Cantalice,
o mestre sala do Alvear.

A pauta dos freqüentadores da UC era ditada pelo noticiário do Norte, Correio e a UNIÃO, que tinha aberto um espaço para os intelectuais enviarem trechos de romances ou peças literárias chamado “Cantinho da Cultura”, uma invenção do governador Pedro Gondim, que se assinava com o pseudônimo de Homero Morgan.


Com a chegada do Jornal do Brasil, por volta das quatro horas da tarde, ficava-se sabendo com mais detalhes do que se passava no país e no mundo. Na UC se falava na produção de filmes, música, teatro, o último livro, artes plásticas, política e custo de vida. Virginius gostava de assegurar que a produção intelectual da UC era superior a da própria UFPB – hoje, vista a distância, uma coisa muito provável. A universidade era um clube do Bolinha, onde mulher não entrava, mas alguns alunos, quando passava uma bela mulher pela calçada, se levantavam correndo para curtir o remelexo.


Embora houvesse o prenúncio do conflito político ideológico, no inicio dos anos 60, esquerda contra “alienados” da direita, havia muita tolerância, os convivas bebiam por prazer, faziam-se boas observações sobre pessoas e instituições. Havia muita preocupação em se saber quem tinha enriquecido e quem estava dando certo na vida. Também havia um prazer mórbido em se saber quem estava se ferrando.


Como disse, a universidade do Canadá era o seu Reitor Virginius da Gama e Melo, o Menestrel, que bancava a mesa sem chiar, nunca menos de 30 garrafas por expediente. Com a morte de Virginius, pelo que sei, a Universidade da Canadá simplesmente fechou as portas e o restaurante caiu na rotina e na decadência. Mas, durante um bom tempo, a UC reinou como espaço sócio-cultural da cidade, imbatível, um point obrigatório e invejável.


Bons tempos.

3 comentários:

Arael M. da Costa disse...

Tomo a liberdade de acrescer à matéria a lembrança do "departamento cultural" da UC, instalado na Churrascaria Bambú, onde o Reitor Virginius, sempre acompanhado de sua assessoria especial, que muitas vezes era acrescida por nomes como de Vanildo Brito, Elzo Franca, Breno Matos e muitos outros, concluia sua vilegiatura.

Jorge Zaupa disse...

A mim,insipiente na arte de escrever, só me resta dizer ao autor do texto que, para quem gosta de boas narrativas e lembrar dos 'bons tempo', que o conteúdo é simplesmente cativante. Aliás, lindíssimo. Eu, que sou lá de baixo do Brasil, vi-me em João Pessoa vivenciando aqueles tempos.
Parabéns.

VIRGOLINO disse...

Que gratíssima lembrança, essa de Ipojuca Pontes.

Fui assíduo frequentador da Universidade do Canadá, nos bons tempos em que morava na Casa do Estudante, estudava no Liceu Paraibano e tinha o Ponto de Cem Réis como centro da vida em João Pessoa, lá nos idos de 60.