sábado, dezembro 17, 2011

O Outro Lado do Muro



Roberto Lamenha (1981)

Lembro-me perfeitamente de um menino que aos dez anos queria tudo, menos que o Natal chegasse. Sua casa era humilde e a compartilhava com dez irmãos. Nada tinha, além do essencial. O único luxo era o rádio, no qual sua mãe acompanhava "O Direito de Nascer". À noite, era o rádio que o transportava, sem que entendesse bem como, a lugares exóticos e a vozes que não compreendia. O Natal tinha para o menino de dez anos uma conotação intensa, jamais compreendida, numa família que não podia, financeiramente, comemorá-lo. Um galho seco de goiabeira, envolto em algodão, servia de árvore de Natal. Para adorná-la, alguns carrinhos e aviões de plástico.

Chegado o esperado dia, sua única recordação era a grande festa do outro lado do muro, não muito alto e que ofuscava seu pobre arremedo natalino. A "árvore" que ele preparara com tanto entusiasmo, pendia inexpressiva, pobre e feia, diante dos aljofres que reluziam na outra, cintilante de luz. Sua curiosidade levava-o a olhadelas furtivas, por sobre o muro. Ouvia música, vozes - adultas e infantis - que lhe pareciam irreais, daquele mesmo mundo ao qual pertencia o rádio, distantes e inatingíveis. Sonhava espreitando aquela riqueza. Mais tarde, surgia a ordem implacável e autoritária: "Vamos dormir!" E ele ia, com uma vaga esperança centelhando dentro do peito. Quem sabe se ao acordar não encontraria na alpercata de sola de pneu, aquele presentinho tão desejado: uma bola. A noite se adentrava, perturbada pela música e vozerio que invadiam seu quarto. Embalado, ele adormecia, à meia luz, ao som do "Jingle Bells". Entre o adormecer e o real despertar ele via que alguém se aproximava com um presente imenso e redondo. A bola, Papai Noel trouxe a bola que eu pedi...Mentira, ele despertava e descobria que sonhara! Mas havia sempre a expectativa, quando abria os olhos. E a enorme decepção. Apoiado na sandália, um pacotinho de balas comprado na capital, por sua irmã mais velha. Era difícil conter as lágrimas, muitas delas interiores, mas devia transformá-las num sorriso grato: afinal Papai Noel lembrara-se dele, e sua mana viera passar o Natal em casa. Pelo menos isso era motivo de alegria geral.

Logo que se esqueciam dele, corria para a rua, ávido pelos brinquedos que seus amigos vizinhos haviam ganho de Papai Noel. - Ganhei uma bicicleta, dizia um. Olha meu trenzinho, bradava outro. - lindo, não é? É. Ei ganhei uma bola. Vamos brincar. Uma bola? A bola era sua aspiração suprema. Apesar das ordens para não sair ou tocar nos brinquedos dos outros, ele escapava, magnetizado pelo feitiço da bola colorida. Lembrava-se de que, numa dessas ocasiões, a bola se rasgara após alguns chutes, na farpa implacável de uma cerca.

Sua recordação natalina mais viva fora, portanto, a de uma pesada sova, e os resmungos do vizinho, sobre a bola que pouco durara. Grande dia! Aquele menino pobre cresceu assim, sem jamais ter ganho qualquer presente, principalmente uma bola, nem no dia de seu aniversário.

Adulto, homem feito, aparência tristonha, ele se lembra de sua infância como de uma sequência contínua de frustações. Ele imagina hoje quantas crianças terão a mesma sorte que ele teve: Natais amargos, sem luz, sem festas, sem Papai Noel, sem a bola que representara para ele, numa época da vida, a ambição mais dourada e perdida. Ele pensa hoje em quantas crianças estarão do seu lado do muro, mãos vazias, olhos fascinados, convivas indesejáveis na festa dos outros.

Um comentário:

Márcia Barcellos da Cunha disse...

Sr. Roberto,

Seu texto comovente nos mostra a grande responsabilidade que temos em relação ao próximo, o quanto ainda de certa maneira, permitimos que situações iguais a esta ainda seja a realidade de muitos. Afinal, qual é mesmo o VERDADEIRO motivo das comemorações natalinas? Um abraço. Márcia