segunda-feira, dezembro 19, 2011

O abismo de Sérgio


“Descobrimos um mar,
mais oculto e profundo
do que o familiar e liquido oceano.”
Vanildo Brito






Sérgio Lucena


Na pintura profundidade não se mede, se vê. Ou, do ponto de vista do pintor, se pinta. Aliais o pintor se pinta em cada obra, se mostra por inteiro, seu âmago se revela em cada camada, em cada acorde de, em cada marca do pincel, da trincha, da espátula, do dedo, do corpo, pois é com ele que se pinta: registros dos seus gestos, impressão do próprio ritmo – intransferível assinatura de sua pessoa

As pinturas abissais de Sérgio Lucena nos levam a um universo interno, às entranhas de nós mesmos, conduzidos pela pulsão de entender a experiência pictórica de camada sobre camada de tinta, de gesto em gesto, de transparência em transparência que seus quadros nos mostram agora.
Agora, porque sua pintura, antes carregada de alto nível de habilidade, e seu desenho – suporte das idéias colocadas em seus lugares – narrativa de um mundo mágico eivado de santos e deuses errantes, se tornou no contexto dessas figuras, na “matéria escura” geradora dos novos mundos que ele “agora” pinta.

Agora mesmo, porque há pouco se pensava em paisagem, depois da figuração mágica que provocou êxtases ao olhar nas fruições gozosas dos mistérios zodiacais. Paisagens lunares. Paisagens marítimas. Mundos vastos, largos, profundos que ele procura e encontra em lugares ainda mais profundos localizados no fundo de sua alma, para traduzi-los à luz do sol. Ele apenas os traduz, mas não os mostram por completo, pois seria indesejado e impossível, seria o fim deste manusear constante da matéria sob a luz. Luzes. Luzes reveladoras do hermeneuta que há nele, do sofrimento de não saber nada alem de seus, embora ampliados, inexoráveis limites de não saber da paixão pelos abismos que o chamam para o desconhecido.

Aenigma. Aenigma consiste no fato prenhe de significados desconexos, mas que são definitivos para o advento dos novos caminhos do artista que compreende a pintura como seu meio. Ele conta que depois de muito contemplar o território assustador seu da pintura de Mark Rothko ela passou a ser seu grande paradigma, pois o compreendeu com os olhos da alma, então viu sua realidade ser alterada. Os animais fantásticos que ele pintava, as figuras humanas, as paisagens prosaicas, deixaram de ser seu repertório comum. Sua pintura apurada e erudita do ponto de vista de seu sofisticado métier se dissolveu num denso abismo em forma de pórtico, de passagem, de plataforma para um salto quântico. Mas não existe influência de Rothko, no sentido restrito da palavra, na arte de Sérgio Lucena, o que há é uma indicação para um caminho dentro da pintura que o levou a pensá-la plana e sutil, e com isto buscar significados que lhe pareceram comuns aos dois. Plana como a tela, sutil como a pele, pois o artista sente seus toques na tela.

Significados, resíduos do sentimento que o mito de Sísifo nos fornece. O que são camadas sobre camadas de cores sobre uma superfície? Que trabalho é este? Para onde vai isto? O que ele está buscando ao pintar e contemplar cores, texturas, vibrações? Por que isso não para? Será porque não pode viver sem isto? Porque amamos pintar superfícies de cores? Ou será porque não podemos simplesmente mais viver, e aí pintamos? Sísifo é o Aenigma. Como um Sísifo ao contrário, rolando sua pedra montanha abaixo, ao pintar camada sobre camada, veladura sobre veladura, luz sobre luz em busca do êxtase, ele tece sua fina trama, realiza sua obra que sabe nuca vai terminar, porém recomeçar para sempre.

Albert Camus sugere em “O mito de Sísifo” que “Se o mundo fosse claro a arte não existiria”. Eis a arte como a ferramenta dos hermeneutas chamados “artistas”, eis a chave para a compreensão do mundo visto através dos véus que maquiam aos nossos olhos a verdadeira realidade. Aprofundar-se é a atitude do artista no momento de, como disse Pollock, “atacar a tela”. Aprofundar-se é mergulhar na tela, é se afogar nela. Quando dissemos que na pintura a profundidade não se mede, se vê, estamos vendo um mar, um misterioso mundo líquido com suas próprias pressões, densidades e profundidades que somente podemos conhecer mergulhando nele. Por que fazemos isto? Por que mergulhamos no abismo? Camus pretende responder a questão: “Será que a realização da plenitude e absurdo da vida exige suicídio?” Perguntamos se não seria o suicídio a afirmação de todo absurdo, especialmente o repetir eterno, o eterno agora que torna o homem um prisioneiro de si mesmo.

O poeta Vanildo de Brito, que citamos acima, sofreu da mesma angústia de Sérgio em uma de suas Odes ao Cabo Branco, quando diz: “Existe um homem nos abismos fixo, / hibrida besta, de serpente e sonhos, / que gesta o lago e que se afoga nele.” A morte simbólica de Sérgio é seu mergulho na série Aenigma, através das demãos de cor e de matéria que ele repete e repete até cegar. Mas a glória do artista é que ao se tornar cego o faz apenas para o mundo de fora, o lugar das pequenas coisas onde nada existe além do agora, e passa a ver dentro de si mesmo, e nessa condição ele vê como o poeta Vanildo neste verso que completa o poema do pórtico: “Descobrimos um mar de pura inconsistência. Ovo imenso de treva onde os mundos se geram.”

Raul Córdula

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