sábado, novembro 19, 2011

SETENT´INSTANTES DE SETENT´ANOS





W. J. Solha




1) Quatro de junho de 62: chego à Paraíba, com 21 anos, a fim de tomar posse no Banco do Brasil. Na manhã seguinte ao desembarque no Castro Pinto, tomo um ônibus e me mando pro sertão. Depois de terminado o asfalto, logo depois de Campina Grande, o poeirão sobe. Aí vejo a caatinga, e, quando menos espero, os primeiros vaqueiros encourados, a pleno galope ao lado do ônibus. Sinto que estou vivendo, ali, um grande momento.

2) Eu tinha 11 anos quando meu pai, que mal falava comigo, mas impressionado com alguns desenhos meus, deu-me um livro chamado Primeiro Encontro com a Arte, da Melhoramentos. Entre reproduções de quadros famosos em museus de toda parte do mundo, vi, de repente, a do Autorretrato do Artista com a Barba Nascente, de Rembrandt, que pertencia ao acervo do MASP – Museu de Arte de São Paulo, a somente duas horas, portanto, de mim. Pedi para vê-lo. “Você já não tem o retrato, aí?” “Mas não é a mesma coisa, pai!” Chorei, bati os pés, insisti. O velho mandou minha irmã Wilma me levar. Chegamos ao edifício em mármore branco, na 7 de Abril (somente anos depois o museu iria pra Av. Paulista), vi a série de Flagelados de Portinari logo no saguão, pegamos um elevador e... de repente, lá estava eu, cara a cara com o gênio holandês. Senti que estava vivendo, ali, outro grande momento.

3) Em 94, com o real equiparado ao dólar, fui a Madri, realizar o sonho infantil de ver ao vivo o Las Meninas de Velázquez. Entrei no Museu do Prado, enveredei pelo seus corredores até o salão circular central, dedicado ao grande sevilhano e, logo da porta, vi o quadro. Meu deus! Aproximar-me dele ( fiz isso durante oito dias), sentir o miraculoso espaço que há em seu interior, fez-me ver que vivia mais um grande momento meu.

4) Em 63, atravessei a nado o açude do sítio Córrego, lá em Pombal, escalei uma pedra grande pra de lá dar novo mergulho, deparei-me com Ione - a que seria minha mulher - com a mesma intenção, ouvi uma tia dela, Corrinha, que na época era freira, gritar, com sua voz rouca e frágil: Façam uma pose, pra eu tirar uma foto! Foi quando, sem dizer palavra, aproximei-me da bela moça e botei a mão direita no seu ombro, vendo-a sorrir. Senti que vivia, ali, mais um momento decisivo na vida.

5) Em 86, eu estava sozinho na penumbra da plateia do Teatro Paulo Pontes, João Pessoa, esperando pela chegada de meu elenco, preocupado em como fazer descer, no palco enorme, a nave espacial de que precisava e para a qual não tinha um tostão, quando vi a coreógrafa Rosa Ângela Cagliani - que preparava cenário e iluminação de um espetáculo seu - dar uma ordem: Ô Fulano, desça as varas de luz! – e, de repente, motor acionado, vi aquele mundo de aço, carregado de refletores, começar a... aterrissar na boca de cena. “Minha nave!” – ouvi meu grito, dentro de mim. Senti que vivia, ali, mais um grande momento.

6) A cena se repete dois anos depois, no Teatro Santa Roza: estava sozinho na plateia, esperando o elenco, preocupado em como fazer Moisés abrir o Mar Vermelho em cena, quando me perguntei: “O que eu poderia fazer abrir-se aqui dentro?” E, extasiado, preguei os olhos nas vastas cortinas encarnadas do palco!

7) Marcelo Gomes viu que estava tudo pronto, fez sinal para a assistente de direção, ela disse, pelo rádio, que o guarda do Detran fechasse o trânsito da Avenida Conselheiro Aguiar (como já fizera numas vinte outras cenas nossas), ouvimos o tráfego intenso de Boa Viagem, no Recife, silenciar, a assistente gritou Luz! – e houve luz - Câmara! Ação!, e , num silêncio absoluto, eu – sentado numa cadeira de balanço de terraço, na sacada do apartamento decadente, com Hermila Guedes deitada nele, cabeça no meu colo, comecei a lhe dizer uma de minhas falas, carregadas de emoção, como se não existissem aqueles vinte, trinta técnicos à nossa volta! “Corta!”, ouviu-se quando terminamos. E “Solta o trânsito!”

8) Ensaiei essa mesma cena no assento traseiro do táxi do amigo Gilmar Nóbrega, com a atriz Suzy Lopes, enquanto viajávamos pro Recife ( a fim de fazermos o teste a que fôramos convidados, para compor o elenco de Era uma Vez Verônica) . Repetimos a cena várias vezes, já na produtora do filme, diante do Marcelo Gomes e de uma câmera. “Solha – ele me disse, depois da primeira apresentação – a mesma coisa, mas agora sem chorar”. Depois: “Solha, repita, agora, meio bêbado”. “Mau humorado, desta vez.” “Amoroso”. Senti, ao fim de tudo, que não agradara. Alguns dias depois, recebi ligação do produtor João Vieira Jr: “Marcelo – depois de testes em Salvador, Maceió, Recife, João Pessoa, Natal e Fortaleza – escolheu você pro papel do José Maria, pai de Verônica”. Desligado o telefone, olhei pra minha mulher, pra minha filha, pro meu neto: “Caramba, Marcelo Gomes me escolheu pro filme dele!”

9) Minha filha – fotógrafa Andréia Solha - perguntou-me se tinha alguma sugestão sobre o que fotografar, de especial, no vazio da noite de sábado. Considerei que reproduzir a cena à luz de uma única vela, do quadro Sonho de São José, de La Tour, seria um bom desafio. Localizamos uma reprodução dele no Google, fiquei na posição do santo dormindo sentado, meu neto Israel fez o anjo que se aproxima com a vela acesa na mão esquerda, a chama protegida pela direita, que se mostra rósea e translúcida, e, logo depois, víamos o resultado da sessão na tela do computador. “Uau!”

10) Ante a multidão de percevejos coloridos marcando cidades nos sertões nordestinos onde havia vagas pros novos concursados do BB, na Direção Geral do Rio, procurei o lugar em que iria trabalhar. Não conhecia nada. Aí vi o nome Pombal, no interior profundo da Paraíba, lembrei-me da música Maringá – “Antigamente, uma alegria sem igual, dominava aquela gente da cidade de Pombal”, e disse – controladamente excitado - ao encarregado da documentação: “Esta aqui!”

11) Tinha ideia de propor - a um dos jornais de João Pessoa - capas semanais de segundo caderno, como as que Norman Rockwell fez durante décadas para o Saturday Evening Post, ele com cenas típicas do american way of life, eu com equivalentes paraibanas. Aí o “animal” Edmundo brigou com o juiz, numa partida, insultou-o gritando “Paraíba!”, isso revoltou nosso estado e me fez mudar de ideia. Peguei o retrato de Ariano Suassuna, que acabara de fazer e que integraria o painel Homenagem a Shakespeare (reitoria da UFPB) como o personagem Touchstone de Como Gostais, e fui à redação de O Norte. Proposta: capa com retrato de página inteiro, todo domingo, de um paraibano de nome nacional. Por exemplo – tirei o Ariano da sacola – Pense grande como o paraibano Ariano Suassuna, autor da maior comédia nacional – O Auto da Compadecida – e do grande romance A Pedra do Reino. Isso prosseguiria com Pense grande como o paraibano Augusto dos Anjos, tido por muitos como o maior poeta brasileiro; Celso Furtado, nosso maior economista; Assis Chateaubriand, fundador do MASP, dos Diários Associados e da TV brasileira; Walter Carvalho, considerado o melhor diretor de fotografia do cinema nacional; Vladimir, um de nossos maiores documentaristas; Marcélia Cartaxo, detentora do Urso de Ouro de Berlim; Pedro Américo, o maior pintor acadêmico do país. Luiz Carlos de Souza, o Lula, foi – entusiasmado - levar a ideia a seu chefe, e entusiasmado voltou. Quantas capas dessas você acha que dá pra fazer? Disse-lhe que tinha uma lista, ali: setenta. Negócio fechado! Quando, no sábado seguinte, vi os primeiros testes de cor, junto às máquinas, para a impressão que sairia no jornal do dia seguinte, senti que vivia um grande momento.

12) Quando vi que já tinham saído quarenta ensaios ilustrados, meus, semanais, no site www.eltheatro.com do amigo Elpídio Navarro, que se esmerava no laboriosíssimo acabamento de minhas extensas apresentações, que tinham, em média, quarenta páginas, resolvi mudar de tema e passei a fazer relatos, igualmente ilustrados, de eventos de minha vida, a partir de objetos significativos, a maioria coisa de museu, daí o título Pequena Arqueologia de Minha Vida Pregressa. Ao ver, reunidas, fotos de antigos carros de funerária (cheios de anjos dourados e cortinas negras); brindes do sabonete Eucalol com fotos coloridas de atores de Hollywood dos anos 40 e 50; fotos de Verônicas de Semana Santa, que tantas vi quando menino; cachos de flores bocas-de-leão, de que o jardim de minha casa era cheio; e de buchas, que meu pai plantava nas cercas do quintal, e que nos servia para os banhos, etc, etc, senti que vivia outro grande momento.

13) A guia nos levou ao centro do teatro Globe e – finalmente – entrei com minha mulher – absolutamente emocionado - no espaço do próprio Shakespeare! A pequena multidão de turistas como nós se aglomerou em pé na plateia a céu aberto do pequeno Ó de madeira, onde o ingresso – na era elisabetana - custava apenas o equivalente a um copo de cerveja, fiquei olhando para o palco intensamente colorido, para o balcão em que Julieta aparecia em Verona, até que a guia indicou-nos a escadinha de poucos degraus pela qual acabara de subir para o tablado, e disse-nos: “Imaginem o que é ver o ator, carregando o cadáver ensanguentado de César, descer até vocês – e ela desceu - , os figurantes gritando ao redor Que ele não fale mal de Brutus, Que não elogie César, Marco Antonio berrando, pra se fazer ouvir: “Friends!” – Nada – “Countrymen” – nada – “Romans!” e, insistindo: “Lend me your ears!” – até que todos o vêem dizer: “I come to burry Caesar, not to praise him!” ( Vim pra enterrar César, não pra elogiá-lo!).Senti que, mais uma vez na vida, arrepiado, vivia um grande momento.

14) A propósito: depois de nove meses trabalhando intensamente nas 36 telas em que fazia alusões a cada uma das 36 peças do Bardo, chegou o momento em que, pela primeira vez, no auditório da reitoria da UFPB, 1997, eu as vi montadas na moldura de vinte e tantos metros quadrados, na parede, seguindo meu propósito de seguir a composição fragmentada e aleatória do teto da Sistina. Foi, sem dúvida, um grande momento, meu.

15) De repente, em maio de 1989, lanchando no então restaurante do Sindicato dos Bancários, olhei para a grande parede vazia à minha frente e me lembrei de que Leonardo pintara a Última Ceia em espaço igual no refeitório do convento da igreja de Santa Maria delle Grazie, em Milão, lembrei-me – também - do que acabara de ler na História da Filosofia Ocidental, de Bertrand Russell, a comparação Marx/Cristo, marxismo/cristianismo, paraíso do proletariado, etc, e imaginei – para ali – nova Ceia, em que Marx, ao centro, diria, num balão de Histórias em Quadrinhos: Um de vós me trairá!, provocando a convulsão leonardesca dos discípulos Mao, Lênin, Fidel e Chê, Stálin e Allende, Ho-Chi-Minh, Trotsky... Gorbachev com a mão na cabeça. Caramba, vou pintar isso e colocar o painel nessa parede!

16) Não esperávamos muita coisa do concurso da Prefeitura de João Pessoa para instalação de seis esculturas em rotatórias da cidade, apesar de se apresentarem quarenta e quatro concorrentes. E veio a primeira surpresa: o projeto do grupo de totens Saudação ao Sol, de Erickson de Britto, paraibano radicado em Fortaleza. Apenas uma ressalva: previa a obra com somente dois metros e meio de altura! Isso deveria ter pelo menos o dobro do tamanho, opinei, como presidente da comissão. Lu Maia, que nos dava assessoria pela Funjope, pegou o telefone e ligou pro artista, perguntando-lhe se poderia implantar a obra com as dimensões que eu sugeria. Ele quis saber, evidentemente: Receberei algum acréscimo por isso? “Infelizmente, não!” É, vou ter prejuízo, mas aceito. É muito importante para mim, a visibilidade que isso vai me dar. Foi uma vitória.

17) Estava numa mostra de fotos de Gustavo Moura, quando o então prefeito Ricardo Coutinho aproximou-se de mim, disse ao meu lado: Já soube que vou lançar um concurso para esculturas a serem instaladas em seis rotatórias da cidade? Eu lhe disse: Ótimo. Mas já que você vai pra Europa agora, dê uma olhada nas chamadas esculturas monumentais de que ela está cheia. Aceite como crítica construtiva meu comentário de que as estátuas que você está botando na cidade são pequenas demais. A de Mané Caixa D´Água ficaria ótima numa sala, mas lá na praça, desaparece. Um problema de relatividade. Olhei para ele e vi que a semente caíra em solo fértil.

18) Quando recebi a notícia de que já era avô, pintei um quadro em que uma caveira se volta, feliz, e dá as mãos ossudas pro bebê escanchado em seus ombros, ele também muito alegre, o em breve descartado demonstrando uma aceitação expressiva de sua substituição. C ´est la vie.

19) E lá vem outro neto, esse filho de minha filha. Quando a Doutora Cristiane o trouxe nos braços, da sala de parto, ele – surpreendentemente – me sorriu. Multipliquei isso numa tela grande, chamada Brasil, do acervo de Sandoval Nóbrega, cheia de querubins de Aleijadinho, na verdade todos réplicas de Israel –rindo, alado, em várias poses.

20) Perdera tudo com o filme O Salário da Morte, feito lá em Pombal, e vi que a única atividade artística que me seria possível agora, em João Pessoa, na bancarrota, seria... a literatura. Passei a escrever a lápis meu primeiro romance – Israel Rêmora – no verso de papeis já utilizados que trazia do banco. Dois anos e meio depois, mandei esse livro para o Prêmio Fernando Chinaglia. Um belo dia, em 74, estava dando meu expediente, quando me chamaram pra atender um interurbano. A voz me disse de longe: Você ganhou o primeiro lugar do concurso. E uma menção especial por outro livro, A Canga. Aquilo de certo modo me redimia do fracasso do longa-metragem.

21) Acabara de escrever o romance A Batalha de Oliveiros extremamente desanimado, dera entrevista a um dos jornais daqui, dizendo isso e, quando viro a página do Jornal da Paraíba, no dia seguinte, dou com o regulamento de um concurso literário do INL – Instituto Nacional do Livro – dividido em duas etapas: você concorria, na primeira, apenas com autores da região, o vencedor já com direito à edição do romance e, na segunda, os cinco vencedores regionais concorreriam entre si, o grande prêmio ficando com o escolhido. Ganhei a etapa regional, fui convidado a assistir à decisão final em Brasília, com direito a passagem, etc, vi a comissão sair para se reunir em sala fechada, como num tribunal, eu - no auditório cheio, esperando o resultado – até que foi anunciado que A Batalha vencera.

22) Terminei meu poema longo Trigal com Corvos e resolvi submetê-lo àquele que considero nosso maior poeta vivo - talvez morto, também. Affonso Romano de Sant´Anna me mandou e-mail em que considerava o livro notável.

23) Aí o Eli-Eri Moura recebeu encomenda de uma primeira ópera armorial, e me ligou, convidando-me pra fazer o libreto. A palavra armorial me remeteu ao Ariano, que me remeteu a seu ídolo, Cervantes. Veio-me à mente, também, que ao Romance da Pedra do Reino faltara a prometidíssima abertura do megálito, de onde emergiria el-rey don Sebastião. Vi logo a cena em que ela se abriria pela primeira vez, com uma catedral surgindo lá de dentro, e, de dentro dela, a Compadecida com um coro de anjos. Como é do gênero, eu teria de ter profetas anunciando isso, e me deliciei na hora em que imaginei Ariano e Cervantes fazendo dueto num martelo agalopado, Ariano em português, o outro em espanhol.

24) Saímos – eu e Ione – do hotel, em Londres, descemos a rua que havia em frente, cruzamos uma praça, enveredamos por uma ruazinha de contos de fadas – cheia, cheia de flores – demos a volta ao muro do Museu Britânicos e, em pouco, lá dentro dele, entramos numa sala - longa como nave de catedral - a dedicada ao friso de cavaleiros do Pártenon. Os altos-relevos de mármore, que eu tanto já vira em fotos, ali estavam, com sua enorme vitalidade - de dois mil e quinhentos anos. Foi um grande momento.

25) Com a praia de Boa Viagem interditada às duas da manhã, para que pegássemos a maré bem baixa, vi o caminhão do corpo de bombeiros, com três salva-vidas parrudos à minha disposição, ouvi a assistente de direção de Kléber Mendonça Filho gritar Ação! e comecei a caminhar na travessa que me levava à avenida beira-mar. Ao chegar à esquina, olhei para a direita, a fim de ver se não vinha nenhum carro, eliminei da mente a câmera sobre uma grua e cercada de enorme equipe, na outra calçada, cruzei a pista, aproximei-me do banco de concreto tirando a camisa, que botei no assento, sob o peso de minhas sandálias, fiz o sinal da cruz descendo a escada estreita que me levava à praia, passei por trás da placa onde se lia, em vermelho, Área sujeita a ataques de tubarões, meu pavor pela cena sumiu, encaminhei-me pro mar, entrei na rebentação andando de lado, vi a onda enorme que se avolumava lá adiante e que vinha em minha direção, avancei para ela e, no ponto exato pra não perdê-la, saltei ao seu encontro, pro mergulho. Nadei dentro dela, sentindo-me numa vasta vitrina com areia ocre, o mar todo verde claro, esmeraldino, nadei, nadei como um homem-rã, atento ao vulto de alguma coisa que surgisse não sabia de onde, mas não aconteceu nada, a onda passou, baixou, emergi ouvindo o aplauso vibrante de toda a equipe, lá no alto da amurada. “Esse mama em onça!” Não mamo. O medo fora imenso.

26) Quando lia a primeira demão de meu primeiro romance – Israel Rêmora – lembrei-me dos poemas que havia escrito um ou dois anos antes, imaginei que alguns poderiam se casar com aquele texto, enriquecê-lo, e ... arrisquei uma montagem cinematográfica: coloquei a prosa do primeiro capítulo, narrado na terceira pessoa, seguida de uma daquelas poesias, e vi que, como previa, ela pareceu, de repente, monólogo de meu personagem, um comentário a partir da ação que acabara de viver. Perfeito! Parti para o capítulo seguinte. Para o terceiro. Achara o tchã do livro. Vi Stella Leonardos enaltecendo isso, numa entrevista que demos pra TV.

27) 1980. A capela da ordem terceira da igreja de São Francisco estava lotada. No teto, a tosca pintura barroca mostrando Elias subindo ao céu num carro de fogo. Sob a cena, no corredor central, o alçapão que descia pra catacumba dos frades. No espaço junto do altar, o coral da UFPB, regido pelo maestro Kaplan, três de nossos melhores atores formando um jogral, enquanto Dom José Maria Pires, Dom Hélder, Dom Fragoso e Dom Ivo Loscheider aplaudiam de pé, com a multidão, a Cantata pra Alagamar, versos meus, música do maestro, ali apresentada como parte da liturgia da Igreja, pra passar sem a censura. Na reprise em Itabaiana, os personagens da cantata aplaudiram com o mesmo entusiasmo, vi um deles erguer um chaveiro com Cristo sob a expressão Se Busca, o homem gritando Olhem quem fez a cantata!, a polícia no adro, lá fora, cercando a matriz.

28) Subi ao palco, no Festival de Cinema Brasileiro, em Miami, e recebi, por Marcus Vilar, seu prêmio de melhor direção pelo curta A Canga. Ao mesmo tempo, o próprio recebia, em Goiânia, o prêmio de melhor filme no FICA – Festival Internacional do Cinema de Meio Ambiente. A consagração da história que eu criara em forma de conto, nos anos 60, transformada, depois, em peça que eu mesmo dirigira, em Pombal, depois num curta em Super-8, também meu, com que convencera Marcus de que ali estava uma estória poderosa, foi um grande momento meu, sim.

29) Quando montava essa peça, em Pombal, 1969, um garoto comparecia a todos os ensaios. Acabou me conseguindo um tocador de pífano (pife) e assumindo a iluminação do espetáculo. Anos depois, eu já trabalhando na agência dentro do BB em João Pessoa, fui procurado por um grupo de jovens que se dizia da faculdade de agronomia de Areia e colegas daquele menino. Disseram-me: Verneck viu que queríamos fazer um espetáculo ligado à terra e nos indicou seu texto. Eu lhes disse que da peça fizera roteiro de um longa-metragem e, como o filme não saiu, dele fiz o livro publicado em 78 pela Editora Moderna, de São Paulo. O texto teatral não existe mai, lamentei. Mas no dia seguinte eles voltaram: O Verneck reescreveu a peça, que ainda tem decorada. Peguei o texto, incrédulo, e vi que, realmente, fora escrito de memória, pois continha palavras que eu jamais usaria, colocadas certamente em lugar de coisas de que ele não conseguira se lembrar. Algum tempo depois, Fernando Teixeira e Altimar Pimentel – dois grandes nomes de nosso teatro - me disseram ter visto o trabalho do grupo no festival de Cajazeiras. Foi um grande sucesso. Bisado, inclusive.

30) Um dia meu filho Dmitri me informou – lá de Fortaleza, onde mora com a família - que, pelo segundo ano consecutivo, trabalhos seus tinham saído num anuário australiano com as melhores fotomanipulações do mundo. A confirmação da alta qualidade que eu via em suas criações ( ele fez, por indicação minha, várias capas de CDs de Eli-Eri, Didier Guigue e Marcílio Onofre) constituiu-se num outro grande momento meu.

31) Passei uma fase crítica, na juventude. Descrente de minha pintura, abandonei o curso que fazia, passei a fazer análise e fui estudar contabilidade. Magro, abatido, com olheiras fundas, vi o psicanalista me dizer Ou você para de estudar por um ano ou arranja um emprego de meio expediente: isso que você tem é estafa. Abandonei a loja de eletrodomésticos em que trabalhava, e já estava no Banco do Commercio e Indústria de São Paulo, quando passei no concurso de auxiliar de escrita do BB e vim pra Paraíba. Tinha um metro e oitenta e dois (estou com um e setenta e oito) e pesava 60 kg (giro em torno de 85). Logo que tomei posse, fui informado de que haveria concurso interno pra escriturário dentro de três meses. Como meu expediente na agência de Patos era de 7 às 13, às 14 eu começava a estudar – por exemplo – matemática. Cinquenta e cinco minutos depois parava, e – mãos no chão, pés na mesinha em que estudava – fazia flexões de braços e tomava um copo de leite gelado. Partia, em seguida, pro estudo de contabilidade, exercício, leite; partia pro estudo de inglês, exercício, leite; português, exercício, leite, etc, etc, acabei sendo o único a passar, do pessoal que fez as provas em Cajazeiras. Com isso me senti um pouco mais postado na vida. Um dia, já em Pombal, (eu nadava de 17 às 18 ou 18,30 todos os dias no rio Piancó) eu corria, de calção, descalço, do hotel para o mergulho diário, numa trilha junto a uma cerca, quando ouvi um grito atrás de mim: Olha o boi! Voltei-me e lá vinha um touro desembestado, a carroça com o tambor (para servir água na cidade) aos trambolhões, atrás dele. Foi o tempo de saltar para o lado, ver o animal passar, flagrar a corda a passar lépida no chão, baixar-me, segurá-la, erguer-me, travá-la no corpo... e ver o animal, quando ela se estirou, repentinamente saltar pra vertical. Esse foi, realmente, um grande momento na minha vida.

32) Ainda em Pombal, entrei num consórcio de automóveis, promovido por colegas de outra cidade, e coincidiu de que, quando o fuscão saiu para mim, um tio de Ione ofereceu-me a própria casa para venda, pelo preço do carro. Foi assim que, pela primeira vez, me vi dono de um imóvel. Logo depois, com as economias de que dispunha, dei entrada num caminhão-caçamba e o coloquei a serviço do asfaltamento da BR 230 – Cajazeiras-Pombal – feita pelo exército. Mas uma dupla, composta do capitão encarregado da obra e de um civil, infernizou minha vida e a de mais cinquenta caminhoneiros, aproveitando-se do terror que as forças armadas exerciam em todo mundo. Fui ao militar, porém, protestar contra a ausência de pagamentos e a exploração feita pelo companheiro dele, que era nosso fornecedor exclusivo de combustível. Como fui ameaçado, apelei pra instâncias mais altas. Resultado: quando saía, um dia, do Pombal Ideal Clube, onde ensaiava A Canga, um rapaz se aproximou pra me avisar que ouvira – no almoxarifado da BR - a dupla de meliantes dizer que o matador Antonio Letreiro – pago por eles - fora preso em Icó, no Ceará, quando vinha pra Pombal, me matar. Bem, então escapei, eu disse. E ele: Quem paga um pistoleiro, paga outro. O gerente de minha agência soube disso e viu, ali, uma boa oportunidade de se livrar de mim: quis me transferir imediatamente. Isso era uma coisa que eu já vinha tentando, mas – na circunstância – não aceitei. Não vou sair daqui fugido. Na verdade eu, como subgerente, já transferira três colegas, com urgência, por situações semelhantes. Mas fiquei. Ao meter o 38 na cintura, sob a camisa, entendi que tão cedo não morreria, pois tinha muito, ainda, a fazer. Era como se tivesse o corpo fechado. Coisa de doido, mas que me sentir bem. E nada me aconteceu. Com eles, sim.

33) Estava no primeiro ano do ginásio, Colégio Municipal Getúlio Vargas, em Sorocaba, 1952, onze anos de idade, quando vi que o colega Ênio Angheben, o eterno primeiro da classe, estava lendo – surpreendentemente - um gibi, no intervalo. Aproximei-me por trás e vi que se tratava de uma revista em quadrinhos de porte grande, com desenhos muito bons. Entrevi o título da narrativa: A Lenda de Sir Parsifal: um menino, proibido pela mãe de sair de seu castelo sempre fechado ante a violência do mundo, pergunta ao escudeiro Lupus, do alto das ameias, se havia outros castelos como aquele na Escócia e, depois, se neles todo mundo também vivia preso. Resposta: Sua mãe não quer que se fale nessas coisas. Aquilo me pegou. Ênio, posso ver a capa? Ele a mostrou: O Mago da Vinci. “Parsifal” era uma estória secundária! Empolgado, passei a deixar de lanchar pra comprar os números atrasados de Epopeia da EBAL – Editora Brasil-América Ltda. Recebia, diariamente, uma moeda de dois cruzeiros para o lanche. Como cada exemplar da coleção custava cinco, passei a adquirir, a cada três dias, um daqueles delírios, que me abriram a mente para o mundo que me motivaria pelo resto da vida. As quartas capas eram sempre reproduções de quadros famosos. As terceiras, sinopses de libretos de ópera igualmente célebres. Aquela mesma lenda de Parsifal e, outra, a do Jovem Rei Davi, acabaram por gerar duas das estórias que eu recontaria em minha História Universal da Angústia, décadas depois: A Angústia do rei Saul e A Angústia de Parsifal Menino. Aquele momento atrás do Ênio foi, indubitavelmente, outro instante importantíssimo na minha vida.

34) 1968. Chega um colega novo na agência de Pombal: Ariosvaldo Coqueijo, que fora, até então, iluminador do Teatro Santa Roza, em João Pessoa. Vinha com um calhamaço de recortes de jornais e revistas contendo reportagens recentes sobre a morte do estudante Édson Luís no restaurante do Calabouço, no Rio, fato de tão graves repercussões que acabaria gerando o repressor AI-5 – Ato Institucional no. 5 - da Ditadura. Ariosvaldo soubera que eu e Zé Bezerra escrevíamos e pediu-nos um texto pra montar a peça de seus sonhos. Bezerra disse que iria escrever e montar Canudos, sobre Antonio Conselheiro, e disse Solha faz a sua peça. Como Ariosvaldo recomendou que não me estendesse muito nos diálogos, porque a censura estava feroz, fiz o que ele queria na mesma noite. Dias depois, disse-me que o espetáculo estava curto demais e me perguntou se não poderia criar algumas músicas para ele. Consegui um gravador, fiz uns versos, gravei cinco peças que foram utilizadas no palco. Aí o Bezerra chega e me diz que era melhor eu ir ver um ensaio, porque o ator que fazia o líder estudantil estava muito ruim. Mas não tenho nada com isso, eu disse. Ele, no entanto, insistiu e fui ao colégio Diocesano, onde a coisa estava sendo armada. Coincidiu que o tal ator não apareceu. Solha – disse Ariosvaldo – quebra o galho pra gente, fazendo o papel dele, hoje! Foi assim que, de repente, bandeira na mão, corri berrando pela plateia do teatrinho estudantil, seguido de trinta figurantes, saltei para o palco, e – pela primeira vez na vida – me vi ator.

35) Quando terminei a primeira versão de Israel Rêmora, levei-o pra Jurandy Moura ler. Doente, no hospital, aquele que fora assistente de direção de O Salário da Morte, poeta, pediu-me uma semana de prazo para a leitura. Quando voltei lá, ouvi o veredicto: Está muito ruim, Solha. Muito ruim?!!! Uma merda. Mas por que? Olha, não vamos discutir. Todo aquele que escreve, quando termina o que fez está tão envolvido no texto, que não vê as próprias falhas. Faça o seguinte: ponha a data de hoje aí na capa, vá escrever outra coisa e, daqui a seis meses, releia o Israel. O papo não foi mais adiante. Saí do hospital revoltado. Mas fui escrever A Canga e, quando terminei esse meu segundo livro – que é bem magrinho – peguei o Israel... e morri de vergonha. Retrabalhei o romance intensamente e, quando achei, mais uma vez, que o calhamaço estava pronto pra ser lido, levei-o a outro bom leitor: o jornalista Antonio Barreto Neto. Quando cheguei à casa dele, pra saber o resultado, recebeu-me na porta, convidou-me para entrar e sentar, disse que ia buscar os originais e saiu, deixando-me com a dedução terrível: Não gostou. Quando, de volta, sentou-se à minha frente, disse-me: Olhe, tem um concurso novo, no Rio, o Prêmio Fernando Chinaglia que, além de dinheiro, vai inovar: dará a edição do romance pela maior editora do país, a Récord. Mande o Israel Rêmora. Se ele não ganhar, não acredito mais em concurso nenhum no Brasil. Algum tempo depois eu o procurei na redação de seu jornal para cumprimentá-lo. Você realmente entende de literatura, Barreto. O que houve? Ganhei o Fernando Chinaglia.

36) Em 76 trabalhei no filme Soledade, de Paulo Thiago, baseado no romance A Bagaceira, de José Américo de Almeida. Como delegado capacho de Dagoberto Marçau (vivido pelo Jofre Soares), todos os dias em que era convocado para as filmagens, ausentava-me do banco, viajava pra Pilar, vestia a roupa dos anos 30, era maquiado, e passava a conviver com os personagens do livro que estava relendo. Foi aí que, trabalhando no subsolo da agência centro do BB, num dos dias sem cenas minhas, parei de carimbar... e atinei que todos os personagens do Zé Américo tinham equivalentes no Hamlet. Que loucura!, assombrei-me: logo o livro que rompeu com a influência inglesa na literatura brasileira! Tudo começara quando associei o Lúcio - angustiado filho do Dagoberto e que se faz de doido pra viver melhor - a Lucius Junius Brutus, modelo evidente da saga dinamarquesa de Shakespeare: morto seu pai, Rei Tarquinius, o jovem se fizera de doido (daí o apelido Brutus) pra escapar com vida e vingar-se. Ora, o nome Hamlet provém do irlandês Amlodhe, que provém do islandês Amloii: “doido”. O resto foi fácil.

37) Dois anos depois, fui convidado por Vladimir Carvalho para ser um dos entrevistadores de José Américo no documentário O Homem de Areia. Ao reler, na noite anterior, O Ano do Nego, em que o romancista conta como foi sua participação na Revolução de 30, conclui que o escritor fora ainda mais hamletiano ainda do que Lúcio, vivendo sua conspiração literalmente dentro de um palácio, o da Redenção. Desse momento derivou meu livro Zé Américo Foi Princeso no Trono da Monarquia (Codecri, 1984).

38) Em 82, eu estudava propostas de gigantescos financiamentos para usinas de açúcar da Paraíba, no terceiro andar da agência centro do BB, quando recebi ligação do Fernando Teixeira, pedindo-me o avesso disso: uma adaptação do Fogo Morto de Zé Lins para teatro. Pra quando você quer? , perguntei. Pra semana que vem. Na mesma noite comecei a reler o romance, lápis na mão, demarcando as cenas com diálogos. Como a pisada do livro é bastante lenta, servi-me da técnica de trechos curtos e contrastantes, do Shakespeare. Percebendo que seriam complicados para mudanças de cenários, mais uma vez segui o Bardo, sugerindo palco limpo à montagem, os ambientes indicados pelas falas dos personagens e por alguns objetos. Pensando numa trilha sonora que fosse como um poema sinfônico, pedi que fosse convidado o Carlos Galvão, baixista da sinfônica e então recente vencedor de um concurso internacional de composição, cujo segundo lugar ficara para o Ligeti, autor da trilha de 2001. Foi, imagino, o melhor trabalho do Fernando como encenador, muito à altura da liberdade que lhe dei. Quando botei Papa Rabo indo tomar um trem, por exemplo, ele “construiu” a locomotiva com um ator segurando um círculo com tinta fosforescente ante o rosto, de frente pro público, tendo – em cada lado – uma moça de costas pra ele, soprando talco pras laterais, o som da música sugerindo o da liberação de vapor da maria-fumaça. Genial! A peça viajou pro Rio, São Paulo e Brasília, classificada pelo Mambembão.

39) Quando investigava a figura de Cristo para escrever A Verdadeira Estória de Jesus, que sairia pela Ática em 79, vi, numa foto do portal norte da igreja de Notre Dame de Paris, que os relevos de pedra, em volta da entrada do templo, representavam onze dos doze signos do zodíaco, sendo o de Virgo substituído pela Madonna. Isso porque, dizia a legenda em francês, essa constelação presidia a noite de 24 para 25 de dezembro, no Oriente, de modo que o sol, ao nascer, parecia estar sendo dado à luz por ela. A isso se seguia que esse grupo de estrelas avançava para uma área sem outras constelações, no céu, que passava a ser o deserto de várias mitologias, no qual a Mãe se refugiava ao ser perseguida pela constelação de Serpente ou Dragão (ambos Drakkon, em grego), no evangelho representada por Herodes. Não encontrando estudo algum que desenvolvesse o que seria a viagem do Sol ( a Luz do Mundo ) pelo Zodíaco, passei a frequentar o observatório que havia atrás da agência centro do BB em João Pessoa. O João Batista, por exemplo, revelou-se, de cara, provir do Homem de Aquário. O ponto alto dessa pesquisa foi o momento em que me fiz a pergunta O que têm a ver as cenas de Jesus e da Samaritana no poço e a de Moisés e Séfora no poço, com o signo de Touro, que a narrativa me pede? A resposta me veio, a princípio, pela leitura de uma tradução diferente, da Bíblia, conhecida como Texto Massorético, que me foi apresentada por um velho amigo, dono de uma coleção fabulosa de livros raros. Nela, Moisés é Phoibon – o Febo Apolo, o Sol, foi o que deduzi. E Séfora é Plêion. Aí vi, no grande mapa do céu, do citado observatório, que as primeiras estrelas de Touro, que aparecem anunciando a primavera, são as Plêiades – ninfas dos poços e águas – sete estrelas cuja principal é... Plêion, ou Séfora, moça que, segundo o Antigo Testamento pertencia a um grupo de sete irmãs.

40) Vivia bem, no melhor dos mundos possíveis, progredindo no BB, sem qualquer atividade artística, família crescendo, quando comecei a ter uma série de enigmáticos sonhos com Cristo, figura que a vida toda me perseguiu, exatamente como ele teria perseguido Saulo. Numa dessas vezes, acordando impactado, peguei lápis e papel, anotei tudo a que assistira. Na manhã seguinte datilografei a narrativa no banco e mostrei o resultado ao Bezerra. Quando ele terminou, disse: Conto arretado! “Conto, não: sonho!” Mas ele despachou a história pra um amigo dele, da capital, Prof. Antonio Serafim do Rego, e este, que preparava uma antologia à base de mimeógrafo, incluiu nela a minha estória. Surpreso, entusiasticamente incentivado pelo colega, passei a querer escrever... mas descobri que não conhecia nada de literatura. Pelo menos, a ponto de também produzi-la. Passei, então, a dormir à meia-noite, com despertador me acordando às 3. Uma dessas leituras foi a da República de Platão. Lá pelas tantas, levei um susto: 400 anos antes de Cristo, o livro põe Adimanto dizendo a Sócrates - pra defender seu ponto de vista de que leva mais vantagem quem é injusto do que quem é justo -, que se colocarmos os dois – que se colocarmos um homem extremamente justo, com outro, extremamente injusto – para serem julgados juntos, este comprará os juízes e se livrará da prisão, enquanto o justo será escarrado, surrado e, por fim, pendurado numa cruz. Cristo e Barrabás!, compreendi. Cauteloso, li o mesmo trecho noutra tradução. “O justo será empalado”. O impasse foi resolvido pela leitura de A Paixão de Cristo segundo o Cirurgião, de Pierre Barbet, em que fiquei sabendo que empalação e crucifixão têm, no grego, uma mesma palavra: anaskolopizein. Claro que li tudo de Platão, depois disso.

41) Com o sucesso da Cantata pra Alagamar, Kaplan me encomendou novo texto, agora sobre Lampião. No embalo do cordel A Chegada de Lampião no Inferno, clássico do José Pacheco, parti pro libreto de uma ópera em que Virgulino - guerrilheiro nato, mas sem consciência política - morre e, pra se orientar no inferno, recebe, como guia, Antonio Conselheiro – êmulo do Virgilio de Dante, claro. Trabalhava intensamente na versificação disso, quando Kaplan me ligou, pedindo-me para ir à casa dele, ler meu texto para um compositor paulista famoso – não me lembro quem – ao que eu lhe disse “Mas ainda estou trabalhando no libreto!”, “Venha assim mesmo”. “Kaplan...” “Venha, Solha. Por favor!”. Pois bem: quando parei a leitura do que fizera, o cara disse ao maestro: “Vai fazer a Cantata pra Alagamar de novo?” Não consegui convencer Kaplan de que acabáramos de ouvir uma besteira. Perdi meu trabalho. Em termos. Porque, ao pesquisar sobre Lampião e o cangaço, Lera uns versos impressionantes de Nertan Macedo sobre o bandido: Não era ele rebento de Maria e de José? Não foi criança inocente nos campos de Nazaré? Referia-se a Nazaré da Mata, Pernambuco. Liguei a comparação, imediatamente, aos cordéis “A Chegada de Lampião no Céu” e “A Chegada de Lampião no Inferno”, de José Pacheco, o que me lembrou a oração: Desceu aos infernos no terceiro dia, subiu ao céu, etc , aí soube que Virgulino lera, com devoção, A História de Cristo, de Giovanni Papini, livro que consegui do mesmo amigo Plácido, o velho comunista. Essa leitura dramática – ficção pura – colocada em transparência sobre os fatos que fazem da Grota dos Angicos – em que o rei do cangaço foi morto – réplica do Horto de Getsêmani, encontram para o injustificado sono dos apóstolos a informação de que o coiteiro do bandido, Pedro de Cândido, injetara, com agulha de injeção, através das cortiças das garrafas de cana, um sonífero poderoso que derrubou todo mundo. E, mais: a volante vinha com o caminho clareado por uma lanterna vermelha... que estava, também, com Judas – tesoureiro, coiteiro? - e com os soldados que ele trazia pra traição. Criei, ali mesmo, um ensaio chamado Se Jesus era a Luz do Mundo, Virgulino foi Lampião.

42) Kaplan – hipoteticamente – me fez perder tempo enorme, de novo, ao me encomendar nova ópera, desta vez sobre os irmãos Tibério e Caio Graco, que tentaram implantar a Reforma Agrária em Roma, mais de um século antes de Cristo. Esquivei-me, alegando que acabara de escrever e publicar A Verdadeira Estória de Jesus e não queria, de repente, me tornar recontador de histórias antigas. Insistiu, pesquisei, me empolguei, Kaplan recebeu meu texto e jamais me deu qualquer satisfação sobre ele. Aproveitei-o como um filme dentro do romance Arkáditch, filme cujo roteiro está – de cabo a rabo – em minha História Universal da Angústia. Do mesmo modo, os versos originais da travessia orientada de meu Virgulino pelo inferno acabaram por rechear meu romance A Batalha de Oliveiros, prêmio INL 1988, publicado pela Itatiaia de Belo Horizonte em 89... e jamais distribuído. Nesse estágio de minha relação com Kaplito – como Márcia, sua mulher, o chamava – el gringo me liga, humilde e capciosamente, um dia, dizendo-me que a universidade metera-o numa fria sem limite: queria que seu coral saísse pela periferia de João Pessoa cantando músicas natalinas, no fim do ano. Já pensou “Jingle Bels” em Marés, “O Christmas tree” no Bairro dos Novais? Queria dar um golpe de mestre, Solha. Cantar essas música lindas, sim, nesses ambientes terríveis, mas com versos na linha de Brecht. O que acha? “OK – rendi-me. Escrever algo maior, para ele, nunca mais. Aquilo, porém... – O que você quer ensaiar amanhã?”, perguntei. “Noite Feliz”. “Pois você amanhã terá Noite Infeliz”. Satisfeito, no dia seguinte encomendou nova versão para “O Christmas tree”, que reduzi a O triste mais triste, o triste mais triste, é o brinde e o riso, se a fome existe. Doze músicas refeitas, o danado me disse que estava com problemas na transição de uma canção natalina para outra. “Você não poderia enxertar uns sketches sobre a nossa realidade aí, não?” Disso resultou que, sob a direção de Ubiratan de Assis, o espetáculo a que chamei de Burgueses ou Meliantes? passou a existir e decolou.

43) Quando fui lançar Israel Rêmora em Pombal, 1975, dei com Bráulio Tavares lançando, lá, um livro sobre os cordéis de Leandro Gomes de Barros. Comprei um exemplar, deixei-o na cabeceira de minha cama e, certo dia, peguei o volume, abri-o ao acaso e dei com A Batalha de Oliveiros contra o Gigante Ferrabrás. Incrivelmente, aquilo foi um reencontro com minha infância: meu pai, além das histórias da Bíblia, adorava as lendas dos Doze Pares de França! Ao rever Oliveiros ferido, o turco enorme insultando nossos guerreiros lá fora e, surpreendentemente, nenhum deles reagindo, Roldão ficando calado, Oliveiros se erguendo e aceitando o desafio, transformei aquilo num conto, que foi classificado entre os melhores, dos mais de mil enviados à revista Playboy. Disso – depois - fiz um texto teatral e, em Brasília, vivi um grande momento vendo a enorme montagem apresentada por Ricardo Torres em 1991.

44) Em seguida, fui procurado pelo grupo que levara o Burgueses ou Meliantes? ao palco, dizendo-me que queria uma ficção científica, agora, pelo que transportei A Batalha de Oliveiros – medieva - a um futuro em que todos falariam a mesma língua, nivelada por paroxítonas, principalmente proparoxítonas. Eu achava uma loucura que os diferentes idiomas dissessem Democracia, Democrácia, Democracy, Democracie, Polícia, Policia, Police. Daí minha Bátalha. Daí meu Gígante. Foi fascinante ver o elenco se exercitando naquilo e, depois, as plateias sairem do teatro tentando fazer o mesmo.

45) Em 1994, durante a campanha de Betinho contra a fome e pela cidadania, resolvi doar todos os quadros de que dispunha. Para isso, fiz uma exposição – não numa galeria, mas no saguão da agência centro do Banco do Brasil, em que trabalhara. Surpreendi-me vendo Rosely Garcia, da galeria Gamela, preparando a mostra, ao tempo em que me dizia: “Você não vai alcançar o que quer, aqui. As pessoas vêm ao banco sem o devido recolhimento, preocupadas com dívidas, contas, juros”. Realmente. Depois de trinta dias, apenas duas telas – e as menores – tinham sido vendidas. Novamente Rosely: “Vamos levar a mostra pra Gamela”. Vi quando ela – ainda montando a exposição – vendeu meus quatro maiores quadros a clientes que chamara por telefone. Ainda se pode ter fé no ser humano, como se vê.

46) Escrevendo novo livro, mas com nova multidão de quadros novos ao meu redor, apelei pra Rosely. Ela veio com o marido, Altemir, os dois aprovaram o que viram, agendamos a mostra. No dia seguinte, liguei para ela: “Nada feito”. “Por que?” “Porque nenhum desses quadros me convence”. Claro que, no dias seguintes, continuei escrevendo, mas angustiado. Até que, em certo momento, percebi que o problema era que nenhuma daquelas criações tinha densidade suficiente, mas – juntas – ganhavam... certa importância. Liguei pro Fernando Abath, da Coex, na Universidade, oferecendo-lhe o conjunto. Daí que lá se foi, pro seu setor, na reitoria, a mostra, “permanente” enquanto ele esteve lá, chamada “Ando muito confuso”, em que, acima de um autorretrato, coloquei aquele mundo de coisas estranhas, doideiras de minha cabeça.

47) Um dia vi bela foto das ruínas de um pequeno templo grego. Não sei por qual razão, girei-a e, vendo-a de cabeça para baixo, senti... certa magia no chão grego pregado em cima, as velhas colunas penduradas no vazio, os restos de um frontão a ligá-las, senti que aquele céu azul se tornava de um vazio tridimensional enorme. Reproduzi essa visão numa tela e, nesse frontão, pintei um alpinista a escalá-lo, vindo não se sabe de onde. Título que coloquei, ao inserir o trabalho no http://wjsolha.deviantart.com/gallery/?offset=144#/d97u6t - t´s so hard!

48) Todo mundo sente a semelhança entre Cristo e Che. De repente vi a Pietà de Miguelângelo com a Mater Dolorosa como se fosse a estátua da Liberdade, Che morto no seu colo, as mãos dela, de mármore, sujas de sangue. Mandei preparar a tela e pintei o que vi.

49) Vi um alto relevo romano com o perfil de uma quadriga, a Fama coroando o grande guerreiro com louros, a multidão a saudá-lo, mas todos com as faces esfaceladas, braços manetas, cavalos com ímpeto mas sem pernas. Reproduzi a cena numa tela larga, mas tornei as pessoas e corcéis de carne e osso, apesar de incompletos. Título: Sic Transit Gloria Mundi.

50) A leitura seguida de uma série de revistas noticiosas e jornais me lembrou que toda reportagem é uma boa história, como um conto. A diferença é de que contos não respondem as questões quem, o que, onde, como e por que? E reportagens estão sempre, necessariamente, no passado, pois narram eventos passados. Conto pode estar no presente. Até no futuro. E pode, também, dizer tudo, às vezes, em três, quatro, cinco linhas. Comecei a colecionar os recortes de matérias que me impressionavam e a trabalhá-las. Foi assim que publiquei a série Contos Reais, no jornal O Norte, durante um bom tempo. Mil deles. Quando montava minha História Universal da Angústia, vi que ali eu falava de Parsifal, de Édipo, Hamlet, dos Gracos, do Rei Saul – faltava-me o presente. Novo filtro, e reduzi minha coletânea real a cento e vinte e seis histórias violentas. Resultou na parte chamada A Gigantesca Morgue, que, novamente filtrada – desta vez por Eli-Eri Moura e os outros cinco compositores – resultou na Cantata Bruta, que teve estreia em 29 de outubro p.p.

51) A compositora Ilza Nogueira me pediu versos para o Oratório Via-Sacra, a ser apresentado na Semana Santa de 2005, na igreja de São Francisco, com coro, orquestra, corpo de dança e dois narradores. Surpreendi-me ao ver meus versos de cordel com música de Mahler, Stravinsky, De Falla, Alban Berg, Vivaldi, Charles Ives, etc, etc. A sensação que eu teria, certamente, se visse uma mostra minha na Tate Gallery Modern, de Londres, ou no Louvre.

52) Jovem fascinado por megaproduções tipo Ben-Hur, Spartacus e Quo Vadis, senti-me feito menino ao me ver – já grisalho - com os cabelos penteados à romana, usando uma couraça com baixos-relevos de bronze, imenso manto púrpura, fazendo o Pilatos no Auto de Deus do Everaldo Vasconcelos. No escuro, sentado no trono – dezesseis degraus acima do tablado - com Caifás de um lado, Prócula do outro, vi a cena anterior à nossa, em que Cristo era flagelado. Aí os refletores do meu palco, montado ante o Teatro Santa Roza, se acendem, dois soldados atiram o nazareno ao chão, lá embaixo, eu digo ao sumo sacerdote: “Eis o homem!”, e ele: “Pilatos, esse... homem... anda dizendo que é o filho de Deus”. Levanto-me, cada gesto valorizado pela imponente trilha sonora, desço a escadaria coberta de tapete vermelho, aproximo-me de Jesus, por trás, vejo-lhe as costas tremendo, ele em estado de choque, devido às chicotadas. Pergunto-lhe “Tu és o rei dos judeus?” E ele, “Tu o dizes!”, ao que o diálogo nos levam à minha frase “E o que é a Verdade?”, com o que ele se volta e me encara de um modo que lhe compreendo todos os segredos e recuo, apavorado.

53) Relato de Prócula ( A Girafa, 2009) teve esse ponto de partida. Os romances – ao contrário dos contos, que são simples – se lançam, como aranhas, de vários pontos de partida, armando sua teia. Quando me preparava pra fazer o Pilatos, revi todos os filmes em que ele aparece: de Jesus Superstar ao Rei dos Reis, da Maior História de Todos os Tempos ao Jesus de Nazaré, do Zefirelli, etc, etc, caindo em campo, também, na pesquisa pra saber de onde ele vinha, pra onde foi, como chegou ao cargo em Jerusalém, etc, etc. Pra facilitar as coisas, fiz meu personagem principal ser padre. De onde?: Pombal. O que vem fazer em João Pessoa?: receber um esporro de D. Aldo. Por que? Por que está dizendo o que não deve à estudantada do seu Colégio Diocesano. Aí, quando ele vai descrer da existência histórica de Jesus, o que lhe acontece? Suas três empregadas falam das semelhanças entre Cristo e Lampião (do meu ensaio mencionado acima) – que existiu, claro. E daí? Daí que isso incomoda o Padre, pois passa a vê-lo como agente dos invasores, cabendo a ele, o Padre, como Pilatos, fazer com que o público odeie Caifás e todo o Sinédrio e o encare – a ele, Pilatos - como um homem poderoso, mas muito bom, que faz tudo que pode pra salvar o messias mas não consegue, devido à maldade judia. E surge a pergunta: o que estaria por trás disso tudo? Por que esse messias (que ninguém sabe onde esteve dos doze aos trinta anos) aparece, de repente, com a conversa de que se deve amar os inimigos e dar a César o que é de César? Esse meu padre tem como ídolo o arcebispo Dom José Maria Pires e participa do movimento dele pela reforma agrária em Alagamar. Mas, no momento em que começa a discutir uma possível cidadania romana de Jesus – pois Herodes, Paulo de Tarso, o filósofo judeu Filon de Alexandria e o historiador judeu Flávio Josefo, eram todos cidadãos romanos – ele vê o Papa João Paulo II tirando o poder de Dom José, de Dom Hélder, de Dom Paulo Evaristo Arns, de Dom Pedro Casaldáliga, reprimindo Leonardo Boff. Que resta ao meu Padre Martinho Lutero, depois disso?: deixar a Igreja. E ele a deixa, no Programa do Jô.

54) Rinaldo de Fernandes me convidou pra participar de sua coletânea de contos feitos a partir de Guimarães Rosa, o Quartas Histórias, que publicou pela Garamond em 2006. Por conta da peça Vau do Sarapalha, criada pelo Luiz Carlos Vasconcelos, que melhorara a história original, resolvi “brincar” em cima da insatisfação do grande mineiro com essa sua criação, integrante de seu livro Sagarana. Isso fez com que me lembrasse de um conto de Cortázar – Queremos tanto a Glenda – em que um grupo de fanáticos por uma atriz, resolve alterar a montagem do último filme em que ela trabalhara antes de morrer, para manter o nível de sua carreira brilhante. Criei, por isso, um grupo de fanáticos pela obra de Guimarães Rosa com a mesma proposta, que alicia um grande professor de literatura brasileira da UFPB para esse fim. Foi uma delícia criar dezenas de e-mails e remessas postais feitas por gente com codinomes como Titão Passos, Hermógenes, Quelemém, Fulorêncio, Milinácio, Guirigó, etc, etc. além de vasculhar nos originais datilografados do mestre, constatando sua insistente ânsia de aperfeiçoá-los.

55) Fiz, às pressas, uma série de cortes no elenco necessário pra montar A Batalha de Oliveiros contra o Gigante Ferrabrás, para que a peça “coubesse” no grupo disponível, transferi a estória para o futuro, mudei-lhe o título, que passou a ser A Bátalha de OL contra o Gigante FERR, tornei o turco desafiante num alienígena enorme, vindo numa grande nave, etc,e tc e, quando os atores chegaram à minha casa, para nossa primeira reunião, fui encaixando os papéis a cada um, à medida em que lhe via rosto, tipo, ouvia-lhe a voz, mas, de repente, quando eu não tinha mais personagem algum, me chega o Elton Veloso. Cumprimentei-o, levei-o até os outros, ele feliz da vida por se aninhar mais uma vez em sua turma, eu com a cabeça a mil: O que fazer? No que me sentei, veio-me a solução. Distribui o texto a cada um, atribuindo-lhe, logo, o personagem que lhe cabia e, quando me restavam Elton e Soraya, disse: “Vocês dois serão o mesmo personagem, ROL, falarão sempre juntos, um uma terça ou uma oitava acima da voz do outro, em dueto constante, porque se trata de alguém que ainda não assumiu sua sexualidade – se será masculina ou feminina”. O improviso estabeleceu - depois do achado que foi a gigantesca descida da nave, cena intensamente aplaudida por toda parte - o maior sucesso do espetáculo, sempre. Quando Elton e Soraya, ele alto, bonachão, ela lindamente mignon, os dois maravilhosamente vestidos (couraças de motocross, capas translúcidas, fabulosas maquiagens de Pepe) quando eles partiam um ao encontro do outro, dizendo juntos, afinadíssimos, no que se abraçavam com entusiasmo: “Eu gosto tanto de mim!....”, o público ria adoidamente.

56) Quando meus pais vieram com minha irmã Wilma, para a única visita que recebi deles, em João Pessoa, aproveitei, ao caminharmos na calçada da praia de Tambaú, para perguntar ao velho se houvera alguma coisa dele contra mim, quando nasci, pois jamais conversava comigo, evitando-me ao máximo, até meus 18 anos, quando tivemos um choque e ele se chegou. E ele, simplão como sempre, com aquele pesado sotaque do interior paulista, me disse : Houve, sim. O problema é que nasceu a Wandyr, depois a Wilma, só cinco anos depois veio o Ney. Pronto, já tava tudo completo, eu tinha meu reizinho lá em casa. Mais cinco anos, em plena crise provocada pela guerra, a gente passando um aperto terrível... lá vem você. Não foi bem recebido. Aquilo doeu, mas finalmente eu tinha a “causa” – pelo menos aparente - de meu deslocamento na família.

57) O gerente da agência do BB em Pombal não topava comigo. Principalmente depois que, pra fazer o papel de líder estudantil de minha peça O Vermelho e o Branco – logo proibida pela Censura – eu, à revelia dele, que não admitia um subgerente fora do figurino, comecei a deixar a barba crescer. “Mas não pode!”, zangou-se. “Não pode por quê? Não há nenhuma instrução na C.I.C dizendo isso. A barba é natural no homem!” O problema era a vinculação de minha peça “de esquerda” com os barbudos cubanos, visadíssimos na época. Pois bem. Ganhei um eterno oponente. “Só pensa em teatro! – resmungava - Só pensa em literatura!” Aí, um belo dia, ele se foi pro Rio, pra um curso de dois meses na Direção Geral do BB, que na época, ficava lá, e tive de substituí-lo. Primeira coisa que fiz: fui falar com o único cliente que poderia tirar a agência de sua crônica condição de deficitária, o industrial Paulo Pereira, que jurara não mais pisar ali, desde que o gerente anterior dissera, na casa dele, tomando seu uísque, que toda mulher era imbecil – e, nesse momento, a esposa do homem passou – inclusive a senhora!” “Não, Solha: jurei não mais pisar na agência e não sou homem de voltar atrás”. “Pois o senhor continua não indo lá, eu é que virei aqui.” Ele, então, abriu o cofre e tirou dele um calhamaço de títulos que estava para descontar em Campina Grande. O montante era assustador e eu não podia fazer operação de tal porte sem o consentimento do Rio. “É pegar ou largar!”, impôs. Peguei. Fiz uma carta para a Sede, contando a situação, minha iniciativa foi aprovada. Aí coloquei música no ambiente, vi que os colegas gostaram, e fui ao comércio, perguntar por que a maioria não fazia depósitos. Resposta: o expediente é pela manhã e nós ficamos, sempre, com a tarde a descoberto, sem o banco. E, pior: nos sábados, com a feira, movimento gigante, vocês estão fechados. “Pois a partir de amanhã – eu disse - virei toda tarde recolher os depósitos de vocês, e estarei na agência, nos sábados, pra quem quiser aparecer por lá”. Foi assim que, quando voltou, o gerente encarou o balancete diário, viu o total de operações e de depósitos, voltou-se alarmado: “Que foi que houve aqui?” “Fui conversar com o Paulo Pereira e ele voltou a trabalhar conosco. Passei, também, a receber depósitos à tarde e a abrir aos sábados”. “Mas as instruções não permitem!” “Em terra de sapos, de cócoras com eles”. Ele deu última forma em tudo, o que foi mal recebido na cidade, mas, no final do semestre, nosso balanço foi, pela primeira vez, superavitário.

58) A carreira no banco jamais me seduziu. Trabalhava seriamente, fazia o máximo que podia, mas ficava assistindo às brigas de foice dos colegas a cada cargo que vagava, sem me meter nunca. Por um tremendo mal-entendido, um dia me vi na Direção Geral, em Brasília, num setor que cuidava do aprimoramento técnico dos supervisores das agências, eu encarregado de criar um curso de aperfeiçoamento para eles. Eu fora pra lá certo de que seria aproveitado na revista do Banco – a DESED – cujo chefe, entretanto, nem imaginava que estava destinada ao fechamento... e tive de me virar. O último número dela publicou meu ensaio sobre as semelhanças de Cristo e Jesus, com o que quebrei o galho do chefe – um grande cara – sem pessoal suficiente para a criação de matérias. Certa noite tomei um porre e decidi: “Vou-me embora!” Fui chamado pelo chefão, na cobertura do edifício. “Por que quer nos deixar?” “Porque não me dei com Brasília. Além do mais, não me sinto competente pro trabalho a que fui designado”. “Não se sente competente?! Mas você me chega da Paraíba, dá à revista DESED o melhor texto que ela já publicou, faz o curso de aperfeiçoamento dos supervisores com apoio de um laudo de inspeção dos problemas de supervisão da agência central de Brasília – coisa que ninguém jamais conseguiria – traz a contribuição de texto semelhante da Sudene e da Petrobrás e acha que é incompetente? Eu sei qual é o seu problema!” Pegou o telefone: “O fulana: em lugar do apartamento que está sendo destinado a Waldemar José Solha, daqui do DESED, quero, para ele, um dos novos, etc, etc”. Mas nem o apartamento – que era coisa de cinema – me convenceu. Quanto ao trabalho que fizera, fora favorecido por uma série de coincidências: minha cunhada, na casa de quem eu estava, era da Sudene. Meu cunhado, da Petrobrás. Quando almocei com um cara que fora meu colega por quatro anos, no ginásio lá de Sorocaba, soube que ele era simplesmente o chefe do DIMPLA, que coordenava as inspeções de todas as agências do país, cedendo-me – com a condição do sigilo da fonte – o documento cuja posse impressionara o chefão. Respirei aliviado quando, de volta a João Pessoa, recebi uma ligação do Zé Bezerra: “Quer fazer o texto da Cantata pra Alagamar?”

59) Quando rapaz, duas coisas me faziam abrir as revistas O Cruzeiro: o Pif-Paf do Millôr e – não sei por quê - os truques de Hélio Gracie, criador do Jiu-Jitsu brasileiro - apresentados como numa fotonovela, nas duas páginas centrais da publicação. Jamais me exercitei naquilo. Nunca briguei com ninguém, nem pretendi. Olhava aquilo não sei por qual curiosidade. Mas Hélio Gracie me valeu duas vezes. Na primeira, lá mesmo, em Sorocaba, quando, certa vez, apesar da camisa alva (trabalhava no escritório da loja de eletrodomésticos ) , tive de ajudar a descarregar um caminhão com botijões de gás. Eu na carroceria, o motorista parrudo no chão. Quando menos eu esperava, o cara pegou um dos bujões que eu lhe passara, colocou-o, rápido, no chão e, antes que eu me voltasse pra buscar outro, agarrou-me pelas pernas e me puxou. Despenquei pros braços do sacana, que me prendeu firme pela cintura e (reflexo com que jamais contara antes) servi-me de um dos truques dO Cruzeiro: ergui de vez a mão direita - palma voltada pro rosto do filho de uma égua e estirada firme – batendo-a na base do nariz dele e a forcei, com ímpeto, pra cima. O homem deu um berro e me largou. Mãos na venta dolorida, arregalou os olhos pra mim, no que lhe avisei: “Outra dessa e você se fode comigo, filho da puta!”

60) Doutra feita, entrei no quarto do Grande Hotel, de Pombal, que dividia com o frágil Lessa e com o halterofilista Josmar, e dei com o grandão aporrinhando o outro que, distônico neurovegetativo, tossia, recuando, acuado. “Josmar! – eu disse - Por que não procura alguém do seu tamanho pra encher o saco?” Ele se voltou, nu da cintura pra cima, todo músculos: “Você serve?”, perguntou. E eu, chamando-o com um aceno de mão: “Venha”. Ele esqueceu o Lessa, avançou, e eu, sem pensar absolutamente nada, assisti-me no que baixava meu lado esquerdo, metendo, rápido, o braço entre as pernas dele, enquanto minha mão direita abocanhava o pulso esquerdo dele e eu alavancava o ombro esquerdo e o erguia, passando a girar no quarto, dizendo: “Diga que se rende ou meto-lhe o quengo na parede!” E ele: “Pare-pare-pare!” Não sei como esse tipo de coisa me acontecia. Alguma coisa sempre me pôs tranquilo nas crises.

61) 2004. De repente me vi sozinho em minha exposição no Casarão dos Arquitetos, prédio antigo que fica na frente do Hotel Globo, entre minhas cento e poucas, cento e muitas pinturas... e senti que não iria mais pintar. Parece que pra me animar, o cara que permanecia ali me disse que, pouco antes de eu chegar, um grupo de garotos cheira-colas se deitara no chão, durante bom tempo, diante do Jardim das Delícias, tela grande que pertence ao acervo do político Hervásio Bezerra. Mas nem isso me sensibilizou. Parei, mesmo.

62) O mesmo senti, em 1990, na estreia de minha peça A Verdadeira Estória de Jesus, com direção minha: que não faria, mais, teatro. O grupo insistiu – projetávamos montar, em seguida, O Menino Parsifal, com a estória que acabei incluindo em minha História Universal da Angústia – leu o texto, reuniu-se em minha casa, mas eu disse “Não.” E nunca mais fiz teatro.

63) Um dia, não me lembro a troco de quê, meu pai repetiu seu slogan preferido, no nosso pesado sotaque interiorano paulista : É preciso ser humirde, meu filho! E minha mãe, inesperadamente grossa: Nada disso! Quanto mais você se abaixa, mais o cu lhe aparece! Repetiu a palavrinha escrota noutra ocasião, ainda mais envenenada: Nunca tenha medo de enfrentar nada nem ninguém, viu? Encontrou alguém que PARECE melhor, superior a você?! Saiba que está procurando chifres em cabeça de cavalo! Ninguém é melhor que ninguém! Estava danada: Lembre-se sempre disso: em qualquer briga, disputa, competição, os outros têm tanto medo de você quanto você tem medo deles, porque quem tem cu, tem medo! A diferença é que eles não sabem disso. Você, agora, sabe!

64) Dificilmente detecto que estou a caminho de novo trabalho. Palavras não interferem no processo. Assim, de repente “vejo” o teto da Sistina, composto de grandes afrescos cercados de outros menores – flagrantes do Gênesis emoldurados por sibilas, etc, vem-me à mente que vou fazer algo semelhante sobre as trinta e seis peças de Shakespeare e, de repente, estou com telas maiores separadas pros textos mais importantes, mais outras, com a metade do tamanho, para os demais, depois do que percebo que isso forma um retângulo de sete metros e vinte de largura, começo a pintar a primeira figura shakespeariana que me ocorre, e pronto: estou no processo. Quanto tempo isso vai levar, quanto vai me custar? Não sei e nem quero saber. Ao ver o painel Homenagem a Shakespeare já montado no auditório da reitoria da UFPB, diagnostico: sou doido. Como me detive em tal trabalheira miúda de compor roupa e jóias de Cleópatra, o corpete de Henrique VIII, o colar de Ricardo III, a armadura de Joana D Árc? Nove meses relendo tudo, do Bardo, nove meses sem domingos e feriados, começando às cinco da manhã e parando às cinco da tarde, sem qualquer encomenda, sem, pelo menos, uma ideia de – onde botar isso?

65) De repente “vejo” o Jardim das Delícias, de Hieronymus Bosch, admiro, venero a imaginação excepcionalmente fértil do pintor flamengo, a precisão do seu traço, a beleza de suas cores, de repente estou há três meses pintando a tela de dois metros e vinte de alto, atualizando a sua obra-prima, sofrendo em cada uma das cento e trinta figuras humanas que ali estão, além de um trem, rinoceronte, helicóptero, asa delta, automóveis, cavalo, bicicleta, elefantes, e aí viajo pra Madri pra ver o original, desencanto-me ao lhe ver as cores fanadas ( restauradas algum tempo depois de minha visita), e aí me chega o Ednaldo do Egipto pedindo-me dinheiro pra terminar seu teatro, digo-lhe que não tenho, a menos que você venda ou rife essa tela que acabo de pintar, e ele a leva, rifa-a, Hervásio Bezerra fica com ela por cinquenta reais, e fico pensando naqueles seis meses de trabalho insano durante um ou dois minutos, a cabeça, em seguida, já voltada pra outra coisa.

66) De repente me lembro de quanto trabalho meu deu em nada, como o libreto de uma ópera sobre Os Gracos, encomendada pelo maestro Kaplan, que jamais fez a composição nem me disse porque não a fez, sequer se aprovara meu texto. E vem Fernando Teixeira e me pede o libreto de outra ópera – essa sobre os anos 30 – passo trinta dias em pesquisas e versos, um dia ele me chega apressado, devolve-me o calhamaço, dizendo, às carreiras, que não gostara dele, depois do que saiu e fiquei – como diz o povo – com a cara mexendo. E lá estão, perdidos, um texto teatral sobre Frida Kahlo, um balé em cima de A Bagaceira, que Carlos Anísio e Rosa Angela Cagliani me pediram mas consideraram pouco louco, um roteiro sobre Zé Lins, que Vladimir Carvalho, depois de elogiar, descartou, um roteiro de longa-metragem feito em cima de A Canga, encomendado por Durval Leal e também descartado... etc, etc, etc.

67) De criador tenho pouco. Sou, apenas prolífero e prolixo. Um dia o mesmo Fernando me liga, dizendo-me que está pensando em montar uma adaptação de A Bagaceira para teatro, com texto meu, e eu o interrompo, dizendo “Estou sem tempo, agora, Fernando”, e ele: “Sem tempo pra que?” “Pra fazer a peça.” “Oxente, cara: estou com seu texto na minha mão. Só estou comunicando que vou montá-lo.” “Você está com uma adaptação de A Bagaceira, minha, na sua mão? Não acredito. Leia... o começo pra mim”. Mal ele começou a ler, vi, que, realmente, havia escrito aquilo.

68) Do mesmo modo, visito minha família, em Sorocaba, minha irmã Wilma me pergunta se eu não gostaria de levar pra Paraíba meu autorretrato de smoking, que ela mantém guardado há anos. “Autorretrato de smoking?! Nunca fiz nada disso!”, ao que ela vai a seu quarto e volta com o quadro na mão. “Caramba!”

69) Quando vi meu filho Dmitri fazendo, com facilidade enorme, suas fotomanipulações, percebi quanto tempo joguei fora juntando obras diferentes pra obter um novo conceito, nova ideia, muita coisa que não passou de... pura brincadeirinha. Lembro-me de que, ao perceber que o dândi do Almoço na Relva, de Manet, está na exata posição do Adão da Sistina, só que inversa, reproduzi-o com todos os detalhes – gravata, bengala, boina – e o coloquei face a face com o Adão nuzão, o dedo de um tocando no dedo do outro, título, embaixo: A Criação do Gay.

70) Às vezes você pensa uma coisa, escreve, compõe ou pinta outra. Participei de uma passeata pelo impeachment de Collor, tinha horror a ele, mas o carro-chefe de minha mostra Caras Pintadas, de 94, foi uma tela com esse nome, de grande porte, estranha, porque fiz uma multidão de jovens aparentemente em marcha, na verdade uma infinidade de reproduções – em perspectiva - de capas de revistas femininas burguesonas, tipo ELLE, Jóia, Marie Claire, etc, com closes – todos – de caras pintadas com palavras de ordem tipo Fora Collor!, ou Chega!, tendo em cima, em ponto grande, as logomarcas NIKE de um lado, COKE do outro. E?

Nenhum comentário: