

W. J. Solha
É GOSTOSO LER UM BOM ROMANCE ENQUANTO SE VÊ SEU SUBTEXTO E CONTEXTO
Achei extremamente curiosa a versão livre – libérrima - que Paulo Vieira fez da história de Peregrino de Carvalho, um dos heróis paraibanos de Revolução de 1817. Começa por lhe dar o posto de Alferes. Ele era Tenente. Pelo menos quando se envolveu no precoce movimento pela independência e proclamação da República. Alferes – como Tiradentes – ele o fora aos nove anos. Aos onze estava na Academia Militar de Pernambuco, aos dezesseis, na Universidade de Coimbra, aos 18 fora promovido a tenente. Posto em que ficou por pouco tempo. No ano seguinte foi enforcado no Recife, juntamente com os outros insurretos – incluindo os também paraibanos Francisco José da Silveira, os padres Antonio Pereira e Inácio Leopoldo, além do Coronel da Milícia de brancos Amaro Gomes Coutinho, sendo todos esquartejados em seguida, suas cabeças e mãos trazidas à Parahyba, onde ficaram expostas para exemplo e escarmento dos povos.
O bom thriller de Paulo Vieira - O Peregrino (Fundação Casa de José Américo, 2009) - gira em torno da caça à cabeça do nosso tenente (alferes para o autor), misteriosamente desaparecida do local de sua exposição, na esquina da então igreja do Bom Jesus, hoje Nossa Senhora de Lourdes.
A diferença entre História e Ficção – arredondando Aristóteles – é a de que a História tenta contar exatamente o que aconteceu, enquanto a Ficção o que poderia ter acontecido. No caso Peregrino, a História não tem mistério: cabeça e mãos foram adquiridas, enquanto expostas, por Dona Jacinta, mãe do rapaz, e sepultadas na tumba do avô dele, na Igreja da Santa Casa de Misericórdia.
Na verdade parece não ter havido tanto empenho repressivo das autoridades nesse assunto, como consta no romance, pois o cônsul e comerciante inglês Stuart, favorável à queda da monarquia, pagou um escravo – Manoel Cabra – pra tirar a cabeça do Coronel Amaro Gomes Coutinho – líder do movimento na Paraíba e seu amigo – da execrável situação diante de um casebre que havia ali na ladeira entre o Hotel Globo e o chamado Porto do Capim, junto do rio Sanhauá.
O negro fingiu estar de porre, dividiu a cachaça com o vigia e saiu dali com cabeça e mãos num saco.Muito bem. Mas Paulo Vieira tinha um projeto em mente: escrever uma estória paraibana a partir da lenda de Orfeu e Eurídice, da mitologia grega, talvez inspirado nesta tela de Gustave Moreau, em que se vê a jovem com a cabeça do marido.

Este – ao enviuvar – fora buscar a infeliz no Hades, o inferno helênico, abrindo todas as portas com seu belíssimo canto (daí o Peregrino de Paulo Vieira ser um seresteiro, sua falecida ser Eurídice). Como no romance, Orfeu consegue resgatar a mulher, com a condição de não olhar para trás, enquanto ela o segue. Claro que ele olha e a perde. Na sua desgraça, é atacado pelas Mênades, que o degolam.
Elo de ligação?
Veja, na foto abaixo, o interior da capela da Ordem Terceira da Igreja de São Francisco, de João Pessoa. Aquilo, no fim do corredor, antes do altar, não é um estrado, mas um alçapão engradado, pelo qual já passei várias vezes
Ergue-se a primeira das três partes dele e se vê a escada que leva à catacumba dos franciscanos. Num dos primeiros degraus há um tampo quadrado que, segundo se diz, veda uma passagem que levava os frades à Fortaleza de Santa Catarina, em Cabedelo, a mais de trinta quilômetros da capital. Outros, mais pragmáticos, falam que o túnel vai até a Casa da Pólvora, que fica na ladeira que começa ao lado do complexo religioso.Bem. Ali passa a ser a passagem para o Hades da Eurídice mitológica, para o inferno da Eurídice de Paulo Vieira. E o “rio derradeiro”, como ele chama o Estige? Dá pra vê-lo de uma das janelas da capela: o mesmo Sanhauá da foto acima, com o Hotel Globo.
Chegou o barqueiro e ficou assustado com o transporte de um vivo. Jovem, ele disse com sua voz cavernosa, não vos posso transportar ao outro lado. Por favor, senhor, levai-me a Eurídice. Nem sequer trazeis o óbolo. Senhor, não tenho dinheiro em meus bolsos, mas posso pagar de outro jeito, disse, e cantou as canções que enterneceram o barqueiro. (O Peregrino, pág. 110)Só faltou Paulo Vieira dizer o nome do barqueiro – Caronte – e o do rio – Estige. O Sanhuá tem qualquer coisa dele, afinal, como se vê neste quadro de Patinir.
Às vezes o autor - que chegou a fazer Pós-Doutorado de Teatro em Paris – deixa escapar falas rimadas que remetem a uma anterior intenção de teatro clássico. Como nas páginas 101/102:- Coronel (...) isso não é troco nem é cobre que se dê a uma mulher pobre.
- Coronel (...) o meu Gonzaga foi por vós trazido esta manhã e até agora não me foi devolvido.
(...)
- O mesmo a que respondeu o meu marido e o deixastes com o corpo moído.
Página 43:
- (...) Tamanha é a envergadura do seu conhecimento, que ele é referência obrigatória para todos os que necessitam de esclarecimento.
- (...) E o que fazia na outra ocasião nesse mosteiro o ancião?
E Paulo Vieira tem, realmente, um texto teatral com a mesma narrativa, como se vê em http://www.
É válido um romance ou drama histórico de tais características? Se não, corrijam-se todos os quadros em que o Alferes Joaquim José da Silva Xavier aparece de cabelos longos e barba nazarena, indo à forca; em que César, na peça de Shakespeare, ouve as badaladas de um relógio; ou em que Cleópatra – num afresco de Tiépolo - encontra-se com Marco Antonio vestida de Pompadour.
Nenhum comentário:
Postar um comentário