quinta-feira, setembro 08, 2011

VINGANÇA





Djanira Silva



Comprou óculos escuros, espelhados. O marido não deixou usar: “Quem usa óculos espelhados é puta”. Quis cortar e pintar os cabelos, ele avisou: “se fizer isto raspo sua cabeça”. Um dia, vestiu um vestido vermelho que mandara fazer para o aniversário da filha. Ele esbravejou: “vá trocar de roupa, esse daí você não vai usar nunca, ainda mais com este lascão de lado”.

A mãe aconselhava: “deixa este homem”. Não tinha coragem. Tremia só de pensar. Quando falava em separação, ele ameaçava, se se meter a besta mato você e sua filha.”.

Bebia diariamente. Tornava-se cada vez mais agressivo.

A esposa sentia-se aliviada nas noites em que ele ficava na farra com outras mulheres. Quando acontecia dormir em casa, obrigava-a a “servi-lo” expressão que usava para submetê-la a toda sorte de humilhações.

Um dia, adoeceu. Peregrinou por vários hospitais em busca de tratamento. As ameaças se multiplicavam: “Se um dia o médico me desenganar levo você e a menina comigo. Não pense que vou morrer e deixar viúva minha solta por aí. Está avisada”. Medrosa, limitava-se a baixar a cabeça.

Na gaveta da mesa de cabeceira, ele guardava uma pistola, um punhal e uma foice sem cabo. “Ta vendo isto aqui? Para cortar pescoço de mulher safada, foice sem cabo é melhor”. Ela passou a dormir com os braços cruzados sobre o peito, como se assim pudesse se defender dos primeiros golpes.

Com as primeiras medicações, melhorou. Voltou a beber. Seu estado de saúde se complicou. Esteve internado por várias vezes, o organismo já não respondia ao tratamento. O diagnóstico foi o pior possível - precisava de transplante. O fígado e o coração não prestavam mais. Quando o médico deu a notícia, a mulher não conteve o choro. A médica tentou consolá-la, vamos ver o que pode ser feito. O marido sabia que o motivo do choro era outro.

- Está desejando que eu morra, ta? Tenha medo não ainda não chegou minha hora. Quando chegar sei o que fazer.

Numa última tentativa foi encaminhado a um hospital especializado em transplantes. Depois de longa espera, atendido por uma jovem loura, gorda e afobada, a esposa ouviu o que tanto temia:

- Nada mais pode ser feito, transplante não é coisa fácil, principalmente duplo.

- Então, quer dizer que estou desenganado?

A médica fez um gesto evasivo.

- Não é bem assim, vá para casa e espere.

A mulher apavorou-se “É hoje, é hoje que ele vai cumprir as ameaças”.

De volta para casa, ele suava muito. A camisa molhada, os cabelos empapados, um cheiro desagradável se desprendendo do seu corpo. Voltou-se para ela, tocou em seu braço. A mão gelada deu-lhe arrepios. Lembrou-se do pai que, quando esfriou os pés e as mãos já estava morrendo.

- O que é que você acha? Será que a médica me desenganou?

Apressou-se em responder:

- Acho nada, esses médicos não sabem de nada. Ela disse para você esperar, não foi?

- Esperar o que, a morte?

- Que morte que nada, você ainda vai viver muito. – Falou, sem convicção, cruzando os dedos nas costas.

O homem continuava suando. Respirava com dificuldade. O curto diálogo o deixara cansado como se tivesse subido uma escada. Baixou a cabeça e ficou assim até chegar em casa.

Com muito esforço, desceu do táxi. A sogra e a cunhada sentadas na sala não tiveram coragem de perguntar nada.

Foi para o quarto. Deitou-se. A mulher murmurou entre dentes para as duas “Está desenganado”.

A mãe estremeceu. A irmã começou a chorar. Elas também temiam as ameaças.

Depois de acomodá-lo na cama disse friamente:

- Vou dormir no outro quarto. Se precisar de alguma coisa chame.

- Está com nojo de mim? – rosnou - encontrando forças ainda para arreganhar os beiços, mostrando os dentes, feito um cão raivoso.

- Não, você precisa descansar.

Juntou-se à mãe e à irmã que estavam na cozinha. Fizeram um café e se prepararam para a noite de vigília.

Depois de algum tempo a mulher passou pela porta do quarto. O marido estava deitado de costas para a porta. Estranhou. Ele costumava dizer: “Quando eu me deitar de costas para a porta, pode apostar que estou morrendo”. Tremia roncava. Parecia dormir. De vez em quando deixava escapar um som esquisito como se estivesse engasgado. A sogra, penalizada, cobriu-o com uma colcha grossa. Os pés estavam gelados. Lembrou-se do marido que esfriou antes de morrer. No silêncio da madrugada só se ouvia o leve tilintar das contas do terço que a cunhada desfiava nervosamente. Aos poucos os roncos e os engasgos foram diminuindo até que, um silêncio profundo, tomou conta da casa.

- Mãe, ele parou de tremer. Será que dormiu? Vou ver.

- Vá não, deixa ele descansar em paz.

No dia seguinte, a família providenciou tudo - atestado de óbito, caixão, enterro.

Lá pras tantas chegou ao velório, uma coroa de flores enviada pelas coroas das farras. Nem choro nem lamentações. Alguns pinguços que lá estavam se perguntavam curiosos:.

- Cadê a viúva? Será que não vem?

A mãe lembrou-se de que, ao se certificar da morte do marido, a filha pegou a bolsa e saiu sem dizer para onde.

A cerimônia já estava no fim, quando alguém chamou a atenção dos demais para uma mulher que se encontrava em cima de um jazigo, braços cruzados, balançando o pé, em sinal de pouco caso, nariz empinado, maquilada, cabelos pintados e cortados, óculos espelhados e um vestido vermelho ajustado ao corpo com um lascão de lado que deixava à mostra a coxa morena e bem torneada.

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