domingo, setembro 11, 2011

ROMEU, É TU, MACHO ?

W.J. Solha

O QUE SHAKESPEARE NÃO ESCREVERIA HOJE

No Correio da Paraíba da última quarta, Astier Basílio fala do sucesso de uma versão cearense do Romeu e Julieta no festival de teatro de Guaramiranga, destacando algumas falas utilizadas, inclusive esta:

- Romeu, é tu, macho?

Resistir a uma transcriação radical como essa, comprova que o mérito do Bardo não foi “apenas” o do domínio absoluto do inglês de seu tempo. A verdade é que ele era enome contador de histórias, conhecedor fantástico da alma humana e dramaturgo exímio na estruturação de suas tragédias, comédias e dramas históricos, nunca originais, aliás. As sagas de Hamlet, Macbeth, Lear, Otelo, bem como do casal Capuleto e Montéquio, sem falar de Júlio César, Ricardo III, Coriolano,Tito Andrônico, a série dos Henriques, etc. etc., eram todas conhecidíssimas na virada do século XVI pro XVII. O importante, portanto, não era o que ele contava, mas como contava.

Foi o cinema que me mostrou que o genial inglês sentiria, hoje, a inviabilidade vocabular quase total do seu teatro montado à risca. Mais, ainda, quando os conflitos abordados são transcritos para a atualidade, como na versão que Baz Luhrmann fez em 96, transportando Romeo and Juliet para uma tal de Verona Beach e transformando as famílias inimigas em riquíssimas famiglias mafiosas, com DiCaprio como Romeu. Richard Locraine, em 95, fez de Ricarco III um tirano nazifacista da primeira metade do século XX, e o transtorno dos diálogos elisabetanos também me pareceram, nesses casos, bastante incômodos. Mas na verdade jamais filme algum, baseado no homem de Stratford, conseguiu me agradar. Mesmo os mais fiéis.

Por que inviabilidade QUASE total? Porque a beleza e pertinência retórica de personagens políticos, tipo Henrique V e Marcus Antonius, continua a mesma, pois continuam os mesmos os requisitos para um grande discurso, estabelecidos ainda por Aristóteles. O Júlio César de Mankiewics me é insuportável, mas o discurso feito por Marlon Brando é antológico. Também os discursos de Laurence Olivier e Branagh, em suas versões do Henrique V, antes da Batalha de Agincourt, são inesquecíveis.

Veja bem.

José Américo de Almeida, que libertou o Brasil da influência do romance inglês, paradoxalmente mostra, em A Bagaceira, notável influência do Hamlet na situação criada no seu livro, bem como na criação dos personagens envolvidos na trama. e no próprio texto, daí que, se como orador ele agradava em cheio (vi, em Patos, no início dos anos 60, um doido gritando discursos seus na rua, um deles com citação, sem o devido crédito, de uma fala da peça Ricardo III, aplicada a uma figura igualmente aleijada: “Fulano, Deus te marcou pra não te perder de vista!”) eu dizia: se como orador ele agradou em cheio, e se os personagens de A Bagaceira tem falas como “Sua mãe não era essa mundiça!”, ou “Como ele está fiota, todo perequeté!” – que lembram o impacto de Astier em Guaramiranga e que devem ter provocado o mesmo efeito na crítica do sudeste, em 28, o livro desagradou, por outro lado, pela “retórica” no texto narrativo, que começa assim:

“Findo o almoço – podiam ser 9 horas – Dagoberto Marçau correu à janela, que é uma forma de fugir de casa, sem sair fora de portas.” Mais adiante: “o pau-d´arco se despira de folhas para se cobrir de ouro”. “feitor, arauto importuno”, etc., etc.,

José Américo, no entanto, foi mais cristão do que o Cristo, no caso, pois conviveu com traduções costumeiramente pomposas, vigentes no seu tempo. Se a Divina Comédia começa com o singelo “Nel mezzo del cammin di mostra vita” - um “decepcionante” No meio do caminho de nossa vida – por que não “aprimorá-lo” com “De nossa vida em meio à jornada”, como foi feito? Claro que jamais – desse modo – teremos um Dante que não seja realmente “dantesco”, como não teremos um Shakespeare que não seja exageradamente “shakespeariano”. Lembro-me de que Fernando Teixeira, ainda no último milênio, pediu-me, emprestada, uma tradução do Otelo, feita por Carlos Alberto Nunes e, dias depois, chocou-me ao dizer que iria montá-la.

- Mas ela é horrível!

Fiz-lhe, em dois dias, uma transcriação da peça (quem sou eu pra fazer uma tradução, principalmente do Cara!). O cerne da coisa é que se tem, sempre, de manter em mente que o velho Bill escrevia pra corte, sim, mas também pro populacho que assistia a seus espetáculos em pé, pagando por isso o valor de um caneco de cerveja. Por isso mesmo, chegou-se a fazer, na Inglaterra, uma versão das obras completas dele “pra família”, tirando todas as baixarias e palavrões que constam dos originais. É preciso dizer mais?

Sim.

Porque fica a questão levantada por Esdras do Nascimento numa entrevista dada ao Jô:

- Na reedição de meus primeiros livros tenho, sempre, de trocar palavras. “Batata”, por exemplo.

- “Batata”?

- Sim.Antigamente se dizia, pra confirmar alguma coisa: “É batata!” Hoje, isso não existe mais.

- Ah!

Quando a compositora Ilza Nogueira resolveu musicar em latim um versículo de Salmo que eu colocara em português, para seu Oratório Via-Sacra, de 2005 ou 6, perguntei-lhe: “Acha que isso vai dar certo?”

- Por que?

- Em português é “Traspassaram-me as mãos e os pés”. Em latim, “Foderunt manos measet pedes meos”.

Obs: cada vez mais me angustio com minhas repetições. Ainda bem, nesse caso, que todas as abordagens que já fiz sobre o assunto foram esquecidas, ou sequer lidas.

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