sábado, agosto 06, 2011

A Mudança de Chave




Hugo Caldas



No início da década de 50, Getúlio Vargas iniciava a campanha para a sua volta ao Catete, dessa vez pelo voto. Para tal, atendeu ao chamado do seu PTB, porém foi Samuel Wainer, jornalista que nutria uma certa antipatia por ele, que ao visitá-lo no exílio em São Borja, quem terminou por convencê-lo a sair candidato e enfrentar as urnas. Com o apoio de Ademar de Barros, governador do estado de São Paulo, o homem do "rouba, mas faz" e da famosa "caixinha", o agora candidato Vargas viajou por todo o país e um belo dia veio dar com os costados em João Pessoa. Ademar havia, como num passe de mágica fundado recentemente o Partido Social Progressista e o estava expandindo pelo Brasil inteiro. Meu tio, o engenheiro agrônomo João Bernardino de Souza Filho era o chefe do diretório do PSP em João Pessoa, localizado em uma casa antiga da Rua Visconde de Pelotas. Esse era o cenário, e o início de certos acontecimentos que haveriam de desembocar no 24 de agosto de 1954.

Noite memorável de verão, o Cassino da Lagoa lotado com os políticos, e as indefectíveis personalidades da cidade, autoridades civis, militares e eclesiásticas, o diretório do PSP, meu tio Bernardino e eu, um fedelho mal saído dos cueiros. Estavam presentes ainda os aproveitadores de sempre e os malucos históricos da Paraíba, Daniel e Mocidade. O candidato Getúlio apresentava-se devidamente acompanhado pelo séqüito habitual tendo à frente a figura temida do tenente da Brigada Militar Gaúcha, Gregório Fortunato, seu guarda-costas, apelidado de "Anjo Negro", logo seguido pelo governador Ademar de Barros. Em meio ao foguetório, banda de música a tocar dobrados patrióticos, bem em frente ao Cassino, quedava-se a plebe ignara, o povo, caracterizado por uma massa disforme e impaciente empunhando faixas e cartazes. Nas ruas ao lado, ônibus e caminhões que haviam trazido as inúmeras caravanas do interior do estado serviam como plataformas e arquibancadas. Todos ávidos por ver a grande figura pequenina de Getulio Vargas, "O Pai dos Pobres".

Ademar inicia o seu falatório não sem antes reclamar do microfone defeituoso:

- "Esta porcaria não funciona, devia ter trazido o meu"! Arengou algumas obviedades e até falou da famosa "Caixinha"... "Se o Camões que tinha um olho só, escreveu os Lusíadas porque eu, que tenho os dois, não posso ter a minha caixinha?”

De súbito algo absolutamente fora de propósito aconteceu e pegou os visitantes de surpresa. As luzes do Cassino se apagaram. Logo em seguida as da Lagoa e enfim, as luzes da cidade. João Pessoa torna-se o maior breu.

Explico: nessa época a Usina de Paulo Afonso ainda não existia e o precário fornecimento de energia elétrica era feito pela E.T.L. & F. - "Empresa Tração Luz e Força, pequena usina termelétrica localizada na Cruz do Peixe, bem em frente ao Colégio das Lourdinas e ao Cinema Metrópole. A usina não tinha lá essa potência toda, a geração de energia era insuficiente, razão pela qual, lá pelas 10 da noite deveria ser desligada uma seção e ligada outra. Ficava tudo às escuras por uns 15 a 20 segundos. A isso chamávamos, ”A Mudança de Chave".

Gritaria, assobios, imprecações e alguns palavrões bem cabeludos. Dentro do Cassino a maior balbúrdia, uma grande confusão se instalou, ruídos, tumulto, o tropel das pessoas a andar na maior agitação, correria, mesas e cadeiras sendo arrastadas. Caos total.

Passados os 15 segundos mais longos da história as luzes finalmente voltaram.

A malta em frente ao Cassino rugia impaciente, raivosa. Mais imprecações, mais gritos, xingamentos, palavras de ordem - Viva Gê-Gê, abaixo, Ademar! Tentam um quebra-quebra. Foi então que alguém teve a luminosa idéia de entoar o Hino Nacional. Cada um foi aos poucos se integrando, cantando também e daí a instantes os ânimos estavam serenados. Foi impressionante. Até hoje me emociona lembrar.

Passado o entrevero, a necessidade imperiosa de voltar ao comício tão abruptamente interrompido. Para tanto bastava dar uma espiada no caos ainda estabelecido dentro do Cassino. E, acima de tudo, cadê o Getúlio? Sua comitiva continuava lá, coesa, o Ademar também mas, e o Getúlio? O canto mais limpo. Após observação mais acurada encontramos o homem. Getúlio estava praticamente "envelopado" dentro da capa do tenente Gregório. Melhor dizendo, o tenente Gregório o protegia com o seu próprio corpo de tal forma que apenas o cocuruto do candidato com a sua peculiar trunfinha era visível. Meu tio ao presenciar a cena soltou lá com os seus botões:

- "Mas é uma dedicação canina"! Ato contínuo me pegou pela mão dizendo:

- Tenho que lhe tirar daqui. Sabe Deus o que ainda pode acontecer. Protestei:

- Mas tio...

- "Nem mais nem menos rebateu, vou levar você para a Casa das Meninas (minhas tias avós) e você vai me prometer ficar lá e me esperar. Certo?"

Do quintal da Casa das Meninas, na Rua Direita, a apenas uma quadra do Cassino era possível ouvir o eco das palavras de Getúlio aos paraibanos, trazidas pelo vento:

- "Trabalhadooores do Brasilll!"

E foi assim, dessa maneira melancólica, que chegou ao fim a minha primeira noitada cívica. Primeira e última vez em que vi o Getúlio, a alguns passos de distância.

Em tempo: E.T.L.&F era também o nome do bloco carnavalesco do Major Ciraulo que em cima de um caminhão percorria toda a cidade dançando e distribuindo um jornalzinho bastante simpático, com notícias do carnaval, letras de músicas e críticas aos poderosos. Bons tempos do carnaval inocente, sem violência, sem maldade. Apenas confete, serpentinas e lança-perfume Rodouro.

3 comentários:

W.J. Solha disse...

Beleza, Hugo. Realmente a ficção jamais chegará perto da memória.Principalmente quando o caso é tão bem contado. Solha

Márcia Barcellos da Cunha disse...

Estimado primo Hugo,
Como é agradável ler seus textos sempre tão cheios de graça, bom humor, emoção e sabedoria.Um pouco de tudo... Um abraço. Márcia

Mary disse...

Maravilha, Hugão.
Quem poderia imaginar que um título simples como "a mudança de chave" nos levasse à Paraiba dos anos cinquenta? Esta narrativa de um fato histórico vivenciada por você está cheia de sensibilidade e emoção. Amei!
Mary