sexta-feira, julho 15, 2011

MEMÓRIAS DU TEMPS JADIS

Carlos Mello

Aviso preliminar: eu não tenho propriamente nostalgia do passado nem caio na armadilha de idealizar os velhos tempos. Mas é inegável que todos os que tiveram uma infância sem tragédias guardam uma lembrança muito simpática. No meu caso, certamente o que aqui rememoro está definitivamente prescrito – os objetos, as brincadeiras, as práticas e comportamentos daquele tempo, tudo está definitivamente morto e enterrado, na marcha natural do mundo. Recordo não para viver, mas tão somente para reviver na imaginação aquilo que um dia fez parte de minha vida de criança em uma cidade chamada João Pessoa – já definitivamente extinta, aquela daquele tempo.

A memória mais antiga que tenho é da roupa que então vestiam nas crianças pequenas, a “frente única” – uma “sunga” com suspensório do mesmo pano. Eu ia andando pelo quintal e de repente senti um peso na sunga. Era cocô. Também nesse tempo, eu peguei um besouro, mordi e cuspi aquele gosto amargo. Chorei, inconsolável com a morte dos preás que criávamos, assassinados pelo gato da vizinha. E vi horrorizado, no terraço de cima, as andorinhas mortas por terem pousado em fio desencapado.

Dos tempos da guerra, lembro do blecaute, minha mãe cozinhando o mingau de minha irmã num pequeno fogareiro escondido num caixote, a gente indo ao Ponto de Cem Reis para levar peças de metal, recolhidas pelo Exército para a fabricação de aviões. Na casa de minha prima, todos estavam preparados para a guerra. Em caso de bombardeio, minha priminha mostrava o que fazer: correr para baixo da cama. E, no caso de uma invasão alemã na Paraíba, já tinham preparado uma grande mochila de lona com víveres e remédios, iriam todos para a casa do empregado, em uma aldeia do interior.

Uma das coisas boas da infância era ficar doente. Além dos carinhos redobrados da mamãe e das tias, da comida especial e das frutas – peras, maçãs e uvas brancas – a dispensa da escola. Naquela época, quando havia alguém doente em casa, o medico da família era chamado, examinava o paciente e prescrevia a medicação – muitos dos remédios eram preparados na farmácia do Seu Terto (Tertulino C. da Mata). Contávamos também remédios caseiros – as mezinhas – geralmente chás ou poções para gargarejo, lambedores (espécie de xarope) e banhos de ervas.

Dos remédios de farmácia, lembro da Emulsão de Scott, do Fletase e da Magnésia Philips, todos intragáveis, que tomávamos na marra. Nos resfriados que “atacavam o peito”, aplicação de Anti-flogestine quente e sobre ele chumaços de algodão, que formavam uma espécie de camiseta colada ao tórax. Aos bebês, quando tinham febre, ministrava-se Persed; e se estavam muito inquietos, comprimidos minúsculos de Luminaletas. Na meninice, todos passavam pelas doenças inevitáveis naquela época – sarampo, papeira e catapora. Não me lembro de ninguém morrer disso. Todo mundo tinha medo do impaludismo – tratado com doses de quinino – e sobretudo da tuberculose, pois não havia ainda antibióticos e era uma moléstia estigmatizante.

As brincadeiras dos meninos iam ficando mais pesadas com a idade. Jogávamos pelada, caçávamos passarinhos de baladeira (ninguém chamava estilingue ou atiradeira), roubávamos frutas dos quintais vizinhos e assustávamos as pessoas com “caveiras” feitas de mamão verde descascado, com uma vela acesa por dentro. Já mais grandinhos, começávamos a namorar, ainda de longe e com o coração aos pulos. Tinha também as brigas e andávamos armados de canivetes, soqueiras e até cabo de aço – armas hediondas, esta última composta de um cabo de acelerador com uma bola de metal soldada na ponta. Mas felizmente nunca se usava, porque no fundo eram todos amigos e logo se faziam as pazes.

A vida era extremamente rotineira, mas ninguém percebia nem se queixava disso. O ano todo sucediam-se as festas: aniversários, Natal, Ano Novo e a rainha de todas, a Festa das Neves – com direito a roda gigante, montanha russa e jogos de destreza, como o de laçar com argolas garrafas colocadas sobre um quadrado de madeira. Mas só valia se a argola laçasse o quadrado, coisa praticamente impossível. O dono do brinquedo animava os jogadores com o invariável comentário: “Quaje laça...”.

Havia também uma espécie de roleta muito engenhosa: pregados a uma madeira, bonecos com as cores dos times de futebol, tinham no pé uma pequena caçamba, na qual o banqueiro colocava uma bola de gude. Com o peso, o boneco inclinava-se e a bola ia sendo transferida do jogador de cima para o de baixo, até chegar ao último e correr por uma prancha inclinada. Na extremidade dela, ficavam os números, separados por pregos revestidos de borracha, para que a bola quicasse e corresse até parar em um deles. Isso conferia maior emoção ao jogo. Se ninguém tivesse apostado naquele número, o dono anunciava: “É do banqueiro!” e recolhia as fichas. O prêmio era uma “carteira” (ninguém falava “maço”) de cigarro americano – Philip Morris, Chesterfield, Lucky Strike ou Camel – que podia ser trocada por dinheiro.
O grande acontecimento da Festa das Neves era a procissão final, à tarde, na qual os mais grandinhos estreavam um terno. Depois todos se deliciavam com o cachorro quente da Nêga (ninguém jamais, em tempo algum, fez ou fará uma iguaria como aquela!). À noite havia o “passeio” na calçada da Rua Nova: as meninas desfilavam de braços dados, e a rapaziada ficava em grupos, conversando e flertando (hoje se diria “paquerando”). Muitos namoros ali iniciados acabavam em noivado e casamento, passando por um “pré-noivado”- a “aliança de compromisso”, de platina com brilhantes. Após as nove horas, quando as famílias levavam as meninas embora, os rapazes mais velhos iam para o Pavilhão, tomar cerveja e enviar “telegramas” às meninas – bilhetinhos levados pelas garçonetes, que na verdade eram moças da sociedade que ali serviam voluntariamente, já que a renda ia para a Igreja. E ainda se fazia uma incursão pela Bagaceira – a parte, digamos, mais profana da festa.
Guardo desse tempo uma impressão nítida: todas as meninas eram absolutamente lindas e elegantes. No Natal, elas dançavam a lapinha, e aí, em belos trajes de pastoras, enfeitados com fitas e guizos, ficavam absolutamente irresistíveis. (Ah, coração velho, quantas vezes quase me saíste pela boca, ao sentir o olhar de uma delas esbarrar no meu!). Durante o ano todo, com exceção dos meses de verão – quando veraneávamos em Tambaú, no Poço ou na Praia Formosa - todo sábado íamos à matinê do Rex ou do Plaza. E nos domingos de manhã, às matinais. Eram filmes de Tarzã, ou de caubói, e as séries (um episódio a cada domingo) “Os tambores de Fu-Man-Chu” (um chinês que provocava terremotos só com mexer os olhos) e “Flash Gordon” (o avô dos filmes de ficção científica espacial). À noite os mais velhos iam para a Lagoa, onde havia o passeio com paquera.

Andava-se sempre de bonde. O ônibus (a “sopa”) apareceu bem depois. Maldito bonde velho, quantos sustos me pregaste, sobretudo na rua Visconde Pelotas, no trecho defronte ao Palácio do Bispo, com curtos circuitos que explodiam em fogachos e deitavam fumaça. Tanto no bonde quanto nas mercearias e farmácias, chamavam a atenção os cartazetes:, Figatosse, Xarope Bromil, A Saúde da Mulher, Lâmina Gilette, Regulador Xavier, Elixir de Inhame, Farroz, Loção Phenomeno, Glostora, Gumex, Tiro Seguro (um vermífugo, ilustrado por um garoto atirando na cabeça de uma lombriga!). A propaganda vinha também pelo rádio, com jingles e spots muito criativos e facilmente memorizáveis – Phimatosan , Água Rabelo, Casas Pernambucanas, Gilete Teck (gravado magistralmente por Jorge Veiga).

Velhos tempos, lembranças de uma era definitivamente passada. Claro, ninguém está mais interessado nesse papo, os costumes mudaram, foi-se a inocência, foram-se os bons modos, ficou essa coisa – insuportável para os velhos – a grossura, a falta de educação doméstica e até um horrível despudor dos jovens. Tudo bem, assim caminha a humanidade, that`s the way it goes.

Mas tenho de dizer isso aos jovens de hoje: vocês não fazem idéia – nem jamais farão – do que seja a emoção do flerte, a abordagem cautelosa e cheia de receios, os primeiros encontros, o instante supremo de pegar pela primeira vez na mão da namoradinha... Qual, nessa a gente leva toda a vantagem!

8 comentários:

Francisco Nunes da Costa disse...

Excelente o seu texto, principalmente sobre a Festa das Neves. Era e, suponho, ainda o é, o acontecimento mais aguardado em João Pessoa. Vivi o esplendor dessa festa dos anos 40/53. Parabens por me permitir recordar com voce tantos detalhes que tambem marcaram minha vida. Abraços. Nunes

Unknown disse...

Pedaços de Felicidade!

Às vezes relembro um passado do qual guardo saudades convicto de que meu presente são partes dele! Pedaços: de minha carne, de minha alma, de meu caráter. Por tê-los dentro de mim doem de saudade, pois os lembro respeitoso.

Certa ocasião, ainda jovem, retornava da casa de uma namorada, altas horas da noite – naquela época 22 horas – assobiando Felicidade de Lupicínio Rodrigues:

“Felicidade foi-se embora
E a saudade no meu peito
ainda mora e é por isso que eu gosto
Lá de fora, onde sei que a falsidade
Não vigora.”

Quando fui interpelado por um Guarda Civil, em seu uniforme azul marinho, garboso, porem mais distinto do que elegante, e esse me admoestou pela impropriedade do assobio àquela hora.
– Sim senhor guarda, não assobiarei mais. Obrigado. Boa noite.
– Boa noite – respondeu o guarda.
E assim eram os pedaços daqueles tempos, mas que, infelizmente, não formaram os pedaços “do presente”, mas este, lamentavelmente antevejo, formará os pedaços de nosso futuro!...

Unknown disse...

“O Nosso Passado...”

Ora! Mas o que somos
se não partes do passado...
Partes de nossa matéria;
o todo de nossa alma, um
tanto de nosso caráter,
que nos acrescentam,
não nos dividem, pois
são soma dos pedaços,
que serão no futuro,
o presente de nosso todo...
...resto de nossa matéria,
noss’alma inteira e
soma de nosso caráter:
pretéritos perfeitos ou
imperfeitos, não sei se
mais-que-perfeito, mas,
somado ao nosso presente,
futuro de nosso passado!...


Delmar Fontoura.

Unknown disse...

Nossos Caminhos.

Nossas vidas se entrelaçam de caminhos: os bifurcados, os tortuosos, as subidas, as descidas, os avanços, os retrocessos; todos com armadilhas, umas que armamos outras que nos armam...

Durante nossas jornadas enfrentamos: aragens, ventos e ciclones; garoas, chuvas e temporais; vulcões, terremotos, maremotos e tsunamis, que atravessaremos ou serão nossas últimas paradas.

Essas são as regras de uma cartilha as quais não nos foi dado o direito de rejeitá-las, pois nos colocaram, compulsoriamente, sem que tivéssemos opinado se queríamos ou não estar “aqui”... ...encontramo-nos sujeitos ao amor e o ódio, entre os quais existe uma gama imensurável de sentimentos, que constituem a essência de nossas condutas.

O “saber” e a “compreensão” talvez sejam os únicos caminhos até o “prazer” em nossas jornadas... ...não sei se “pleno”... ...fora isso só a “amargura”... ...mas eu não sou uma pessoa amarga!...

Delmar Fontoura.

Márcia Barcellos da Cunha disse...

Sr. Carlos Mello,

Parabéns! Seu texto é para ser lido várias vezes.
Quem viveu nesta época com certeza tem muitos fatos bonitos para contar.
Lembro-me perfeitamente de minha mãe relembrando a infância junto aos irmãos menores que ela.
O final de seu texto está formidável.
Hoje, é muito diferente, e nem sempre melhor. Grata. Márcia

Marcia Barcellos disse...

Sr. J .P. Fontoura,

Que bom é ler seus comentários tão cheios sabedoria e emoção!
Adorei relembrar " Felicidade "...
Lindo texto:" O nosso passado! " É para ler, parar e pensar. Se as lágrimas rolarem?... Deixe, é assim mesmo...Sinal que o "recado " foi dado.
Obrigada. Márcia.

Maria Olindina disse...

Olá, Carlos1
Parabéns pelo Blog. Tenho a certeza de que o Gilvan adoraria ler esse texto sobre os velhos tempos. Ele coleciona coisas do tempo do ronconcon (risos)
Um abraço,

Cristina Veira disse...

Ótimo, Carlim! Eu também curtia muito um tempo mais inocente... Mas não há o que fazer, a não ser rememorá-lo.Bj, Cristina.