quinta-feira, junho 23, 2011

SEMPRE

Ana Arnaud

Sempre me senti excluída daquele ambiente onde nasci e vivi até os meus 19 anos e 4 meses para ser bem precisa.

Quando criança eu imaginava que a cegonha ao passar voando, por cima daquela casa, teria dado um bocejo distraído e eu caí ali, sem alternativa. O tempo foi passando e eu sentindo e percebendo as diferenças. Minhas insatisfações e tristezas só aumentavam provocando em mim uma reação de bicho acuado e de reclusão real e imaginária. Muitas vezes me encontrei caminhando só pelas areias do deserto. Muitas vezes me surpreendi pulando de nuvem em nuvem em total desligamento do que poderia estar se passando aqui por baixo. Talvez por isso eu não tenha me visto crescer.

Os meus irmãos, que eram seis, bem que tentavam me trazer para perto deles, principalmente a caçula que parecia precisar de mim.

Com minha mãe eu esbarrava pelos cantos da casa, no fogão cheio de panelões sem brilho, na pia sempre cheia de louça, no tanque de pedra, no fundo do quintal quarando a roupa ou no cuidado excessivo com as galinhas poedeiras que garantiriam a alimentação da família nos períodos das “vacas magras”. À noite, eu acordava com alguns grunhidos que não sabia serem de dor ou prazer.

Meu pai? Esse era a materialização da incógnita, o “x” de todas as questões a serem resolvidas. E eu não era nenhum gênio da matemática... Bem que tentei. Muitas vezes sentei ao seu lado nos degraus da varanda na tentativa de penetrar em seu mundo duplo: de ternuras escamoteadas e de ódios revelados. Nada consegui.

O alcoolismo se colocava entre o chefe e os membros daquela família. Vinha raivoso, com suas garras afiadas destroçando o pouco de esperança e disposição para a luta que nunca souberam exercitar. Os afetos foram esquecidos nos primeiros anos daquelas infâncias. A solidariedade não fora desenvolvida e a saída daquele labirinto era procurada solitária e silenciosamente, por cada um, como se houvesse o risco de congestionar a passagem caso todos a descobrissem num mesmo momento. E assim, um a um foi encontrando o seu caminho e partindo, sem nem ao menos olhar para trás.

Os que ficavam encontravam mais espaço para o isolamento, na casa e nos corações dos outros. Os maltratos físicos e morais se sucediam como numa roleta russa acertando a esmo aquele que estivesse na linha de fogo, acidentalmente.

Eu não aceitava nem entendia por que os que aceitavam viam tudo com tanta apatia. Não havia indignação nem ressentimentos. Passado o temporal, uma oração, ajoelhada na Igreja de São Judas Tadeu, diante do santo, entre lágrimas e silêncios, deixava tudo resolvido até o dia seguinte ou dois depois quando os joelhos daquele homem se curvavam diante de uma garrafa de vidro marrom cujo conteúdo lhe prometia alucinações e êxtases.

Eu ainda tinha, no corpo e na mente, a pureza infantil quando conheci Francis.

Ele se desenhou como um esboço, rabiscado de leve em meus pensamentos e na minha alma. Dia a dia, naqueles encontros casuais, o desenho foi se definindo, os traços foram se reforçando. O grafite cinza passou a ganhar cor e a minha vida outro sentido.

Consegui, então, deixar de sonhar só. Nos meus sonhos eu tinha companhia. E eu me sentia desvendando outras possibilidades, em outro mundo. Aprendi a olhar para fora daqueles muros e de mim mesma. Aprendi a apreciar a natureza que crescia exuberante apesar das intempéries.

Não demorou muito para que aquela minha empolgação fosse notada e reconhecida como algo inadmissível, já que Francis tinha, há muito, passado pela fase da juventude e dos sonhos. Mas eu não via assim, estava dividindo sonhos. A diferença em nós e para nós, não existia e foi então que nossa vida se tornou um constante tormento. Vivemos dois anos de momentos furtivos, aproveitados nas sobras das obrigações diárias de cada um. Por toda parte olhos nos vigiavam, dedos nos apontavam, e os caminhos que se apresentavam à nossa frente eram sinuosos e escorregadios. Muitas vezes pensamos em desistir, mas a decisão quando era de um não era de outro e assim mantínhamos aceso o fogo que ardia mais e mais, esquentando nossos corações e, já no fim, nossos instintos mais íntimos.

Viver a dois se tornava o desejo maior. Viver com outros se tornava um suplício e um desespero. O tempo passava e eu não encontrava ajuda para o meu mal. Até que um belo dia meu pai resolveu, ele próprio, me empurrar para o caminho que ele tanto dizia temer. Colocou-me em uma clausura como se dessa forma conseguisse que eu expurgasse aquele amor que me levava, cada vez mais, para fora daquela casa. Grades e cadeados foram colocados e, como qualquer prisioneira, o alimento me era levado nas horas precisas. Mas a minha fome e a minha sede eram de amor e nada me saciava. A iminência de uma tragédia se delineava e todos naquela rua calma, próxima ao mar, se entreolhavam impotentes e incrédulos apenas aguardando o desfecho inusitado. A curiosidade mórbida os impedia de agir e apenas espreitavam e esperavam. Mais uma vez eu estava só. A decisão, eu sabia, teria que vir de mim e para mim. E depois de cinco dias de hibernação eu, levada por uma mão misteriosa, saí pela porta da cozinha, subi o muro que separava aquele quintal do quintal da vizinha, alcei a perna por cima de três fileiras de arame farpado e me joguei toda, de corpo e alma, para o lado de lá, que eu não sabia ser tão alto e muito menos que o meu pouco peso provocaria um eco ensurdecedor. Ao mesmo tempo ouvi ao longe o grito apavorante da mãe que dormia ligada no pedaço de si mesma: “HANNAH!”

Caí em forma fetal, no chão duro de cimento irregular, com a cabeça entre os joelhos. Apertei as palmas das mãos contra os ouvidos, para não ouvir o grito que ribombava por todo o quarteirão. O silêncio se fez duro e longo, e sem me levantar ergui a cabeça, lentamente, e me vi no centro de uma circunferência delimitada por todas aquelas pessoas que esperavam um fim trágico de uma comédia e que, com os olhos esbugalhados maiores que a própria face, duvidavam do meu levantar. Fugindo daquelas caras dirigi meu rosto para o alto e vi, em uma das nuvens daquele céu de domingo, Francis sorrindo, com as mãos estendidas em minha direção, convidando-me para iniciarmos outra história, sem arrependimentos, sem medos, sem dissabores. Ergui os braços, estiquei meu corpo e voei para SEMPRE...

Um comentário:

Marcia Barcellos disse...

O texto "Sempre" me fez sentir a necessidade de vencer os obstáculos, não esmorecer diante da luta. E a vida é sempre tão cheia de desafios. Mas, a insatisfação costuma consumir grande parte da nossa existência. Então, a vida é luta mesmo! Luta para vencer! Travando com cada um de nós O "Bom combate" alcançaremos a vitória. Abraços. Márcia