segunda-feira, maio 09, 2011

CLEMENTE ROSAS


W. J. Solha

Inventário de esperanças e sucessão vertiginosa de experiências de um líder estudantil


Bancário com carreira no sertão e na capital paraibanos, tive enorme inveja quando comecei a trocar e-mails - há dois ou três anos - com vários colegas do BB, também escritores, mas que tiveram carreira internacional no Banco do Brasil: Esdras do Nascimento, Ivo Barroso e Carlos Trigueiro – todos agora no Rio. Do mesmo modo, lembro-me – com imenso complexo de inferioridade - da figura lendária em que se tornou um tal de Manoelzinho, que aprendera a ler sozinho aos quinze anos, nas abas de uma serra da região de Pombal, onde vivi; fora pro seminário de Cajazeiras, perto dali; trocara a batina por um emprego no Bradesco, em Recife; se mandara pro Rio – aprovado em concursos da Petrobrás, Banco do Brasil e Banco do Estado de São Paulo, optando pelo primeiro – até que, ante a repressão da ditadura, matriculara-se na Sorbonne, na França, desviando-se de lá pra Universidade Patrice Lumumba, de Moscou, onde morrera algum tempo depois, devido a um tumor no cérebro. Transformei sua trajetória – tão fascinante me parecera - na de meu personagem Zé Medeiros, em meu até hoje inédito romance “Dricas”.

E eis que o também paraibano Clemente Rosas, residente no Recife, lê alguma coisa minha no blog Unlimited, de Hugo Caldas, de Pernambuco, escreve-me, publica uma excelente resenha de meu romance “Relato de Prócula” no Jornal do Commercio, começamos a trocar e-mails, recebo dele seu livro “Coco de Roda – Treze Ensaios Iluministas”, concordo integralmente com suas abordagens sobre os também paraibanos Virgínius da Gama e Mello e Ariano Suassuna, e aí ele supera a inveja que eu tinha do tal Manoelzinho e dos meus amigos escritores do Rio, dando-me para ler outro livro seu – “Praia do Flamengo, 132 – Crônica do Movimento Estudantil nos anos 1961-62”! Caramba, trata-se de um documento único sobre o que foi a luta extremamente aventurosa das lideranças universitárias brasileiros pela implantação do socialismo no país, no conturbado período que acabaria descambando no triste março de 64, época em que eu vivia como noutra nação, conseguindo um bom emprego, namorando e me casando, recebendo do distante Brasil apenas vagas notícias a respeito, pelo rádio, sempre intercaladas por alegres jingles, tipo “Coca-Cola Coca-Cola, oi, me faz um be-em”, ou “Passa passa talco Ross, quero ver passar...”

Clemente Rosas – que acabei conhecendo pessoalmente num encontro, em João Pessoa, em prol do reerguimento da Sudene - é como escreve: elegantemente sóbrio. Contido. Sua narrativa acompanha com lúcida calma os começos de um jovem corajoso, mas tão inseguro quanto tímido, que vai evoluindo até mostrar-se inteiro, dois anos depois, transformado num líder estudantil experiente e seguro. Cada etapa desse florescimento é notável. Lembro-me de ter visto, durante as filmagens de “A Canga”, em 2001, Walter Carvalho – então nosso diretor de fotografia – falando sobre o deslumbre que seu irmão Vladimir exercera sobre ele, Walter, na juventude, influenciando-o definitivamente para sua carreira de cineasta. E eis que reencontro nosso grande documentarista (com nome que homenageia Lênin) no mundo de Clemente Rosas:

- “O responsável por essa minha mudança dialética havia sido Vladimir Carvalho, já naquela época vidrado em teatro e cinema, além de fervoroso militante.” E aí vemos quantas outras pessoas brilhantes cruzaram o caminho de Clemente:

- “Tive oportunidade de empregar a mesma tática insidiosa (de Vladimir Carvalho) para, por minha vez, recrutar Paulo Pontes, que consegui que fosse indicado pelo Partido para uma reunião de comunistas atuantes em movimentos de cultura popular, no Rio, apresentando-o a Marco Aurélio Garcia e pedindo para recomendá-lo a Vianinha, Armando Costa e outros companheiros do Centro Popular de Cultura (CPC)”.

- “A essa altura, Lindberg Farias, Vice-Presidente de Coordenação Universitária da UNE e representante da Paraíba na diretoria da entidade, já pensava em meu nome para sucedê-lo “.

- “Eu era vice-presidente do Diretório Acadêmico de Direito, e meu amigo Tarcísio Burity, o presidente”.

- “Lembro a magreza e a energia do Antonio Augusto Arroxelas.”

- “Nossa última reunião, naquela fase, contou com a participação de dois companheiros: o Betinho (Herbert José de Souza) e Cacá ( Cacá Diegues).”

- “Destacava-se ( na Conferência de Montevidéu) a figura patriarcal de Miguel Ángel Asturias: um velho índio guatemalteco, de pele moreno-pálida, nariz alto, grandes orelhas, vasto corpo, que ele descansava, sem qualquer pose, sentando-se na grama dos jardins.”

-“Lembro-me de um almoço na Embaixada da Iugoslávia, para que fui convidado, juntamente com o deputado Francisco Julião.”

- “Os invasores haviam desaparecido no escuro do jardim. Um rapaz gemia, no chão, a perna quebrada por um tiro. Quem o socorreu foi José Iremar Bronzeado, meu velho conhecido da Paraíba, que aliava à experiência de escoteiro a de ex-soldado do batalhão das Nações Unidas, em Suez.”

- “Isa Guerra era uma pessoa notável. Originária de Campina Grande, onde moravam seus pais, alojava-se em João Pessoa, num pensionato de freiras do velho mosteiro de São Bento. Inteligente, charmosa e comunicativa, liderava naturalmente o bloco feminino, enquanto deslumbrava os seus coleguinhas do outro sexo.” Além desse desfile de pessoas marcantes, cujos nomes cresceram, anos depois, há uma vasta sequência de paisagens no livro de Clemente Rosas: João Pessoa, Recife, Rio, São Paulo, Brasília, Curitiba, Quebec, Leningrado, Moscou...

- “Eu dispunha de apenas alguns dias antes de embarcar para Helsinque, na Finlândia, onde deveria realizar-se o VIII Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes pela Paz e Amizade entre os Povos.”

- “Além de Bucareste, estivemos na estação balneária de Mamaia, no Mar Negro, e fizemos, de ônibus, a travessia dos montes Cárpatos.”

- “O funcionário do hotelzinho, em Zurick, como eu pedira, me despertara pelo telefone, para que eu continuasse minha viagem até Praga.”
Muito bem. Esse enfronhamento em detalhes do movimento estudantil brasileiro e internacional já seria o bastante pra seduzir qualquer leitor que viveu ou não aquela época de transição. Some-se, no entanto, ao relato sempre empolgante dessa parte de nossa História, uma acuidade e controle da escrita, capazes de observações como estas, sobre algumas mulheres:

- “A delegada da Albânia fazia bem a figura da comissária do povo, rústica, encorpada, sem adornos femininos.” “A Zuleika era madurona e nada bonita, mas ostentava duas coxas roliças frequentemente exibidas sob o vestido justo e curto, no cruzar de pernas, ao longo das reuniões que mantinha conosco. Aquelas coxas, cujos lances atraiam, inelutavelmente, nossos olhos juvenis, eram a sua única amenidade.”

- “Lá pelas tantas, todo mundo cheio de vodka, apelava-se para a irreverência;
Somos socialistas, pa´arriba e pa´abajo
Y al que no le guste, que vaya pa´el carajo.
Naquele tempo, o palavrão não era corriqueiro entre as moças. Lembro-me de uma bela interprete espanhola que, nestes momentos, omitia-se do coro. Mas continuava dançando”.
E repare na humanidade desta anotação:

- “Após ter participado de vários conflitos de rua, pude observar que esses tipos afoitos que se lançam na frente dos tanques e expõem o peito às balas, entregando-se a sacrifícios nobres, mas inúteis, são, muitas vezes, indivíduos tímidos, retraídos, anônimos no dia-a-dia. Agem como se sentissem haver chegado o seu grande momento de afirmação perante os companheiros. Como se aquela fosse a sua vez e a sua hora.”

“Praia do Flamengo, 132” é um depoimento tão importante quanto vivo. Não História de historiador, mas de quem passou por tudo que nos conta com total desenvoltura e conhecimento de causa. A revelação dos bastidores da grande trama – que não cabem aqui – já valem o livro. Lançado em 1992 pela FUNDARPE – Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco – ele está merecendo – urgentemente – uma segunda edição.

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