Após a morte do meu avô, Dona Dondinha a minha avó, saiu em viagem para a cidade de Campos, no Rio de Janeiro, viagem da qual jamais retornou. A casa da Rua Capitão José Pessoa tornou-se grande demais, as coisas começaram a apertar e como os aluguéis na praia eram bem mais em conta fomos morar em Tambaú. Ora, ninguém morava na praia naqueles tempos. Se veraneava. Havia todo um ritual para se passar três mêses na praia. Saíamos pela rua em prolongadas despedidas ao tempo em que a minha mãe oferecia a casa praieira para um dia de usufrutos das benesses do mar. Fomos todos de mala e cuia, meu pai e minha mãe, eu, meu irmão Guilherme, de dois anos de idade, e o irmão caçula, Manfredo, recém-nascido, morar em Tambaú, na Rua do Nego bem em frente à casa de Maria Caçador, tia de um amigo, Antoninho Caçador, sobrinho de Leão Caçador. Família brava, não?
Côco de Praia
"Maria acorda João
Que os alemão vem lá fora
Os alemão são paquete
Só anda fora de hora..."
Esse era um côco de praia de que tenho a mais vívida lembrança. Era cantado por um grupo de filhos e filhas, parentes e aderentes dos pescadores da caiçara.
Tambaú em 1947, Segunda Guerra Mundial recém-terminada "os alemão" ainda eram os bichos-papões, assunto obrigatório e recorrente das rodas de conversa nas noites de Tambaú. Histórias de aparecimento de submarinos na praia, altas horas. Noites memoráveis para o garoto que ia descobrindo as coisas do mundo. Descobrindo por exemplo a caiçara dos pescadores, lugar de muitas histórias e aventuras, ponto de partida das inúmeras viagens ao alto mar sem a minha mãe saber. Na caiçara se construiam jangadas e se remendavam as redes. Lá, se tirava uma bela soneca após o almoço na brisa generosa vinda do Atlântico. Certa manhã ensolarada saimos de jangada e após chegarmos ao alto mar, céu azul sem uma nuvem sequer, o mestre avistou alguma coisa na água e achou por bem voltarmos imediatamente à praia. "Vai cair chuva pesada", disse ele. Ante a minha incredulidade acrescentou: "se voltarmos agora o temporal vai nos alcançar na beira mar". Não deu outra. O céu de repente virou cinzento e até hoje não entendi uma chuva tão pesada após àquele belíssimo céu azul de almirante. Dizia-se que o mestre tinha uma estrela em que ele colocava em cima a ponta do mastro da jangada e, vela solta. Era dessa maneira que ele navegava seguro, de volta, quando a pescaria era feita à noite, na maior escuridão.
O Ponto do Bonde.
A chegada do último bonde trazendo os retardatários às dez da noite, era um verdadeiro acontecimento. Tudo muito aceso em contraste com as localidades ao redor que eram o maior breu. Todo mundo à guisa de armas andava com uma bengalinha de bambu igual a do Carlitos e um flash-light. O meu pai sempre voltava nesse bonde. Após a saída dos passageiros e retirada dos pacotes e encomendas, às vezes compras da feira, os bancos eram revirados para frente, o bonde retornava à cidade. Eu ficava vendo-o desaparecer lá longe, todo iluminado. Me dava uma imensa vontade de fazer aquela viagem de volta. A importância do bonde era tal que Guilherme, meu irmão pequeno de uns três anos, ainda sem falar direito, vivia perguntando à empregada, na sua língua desajeitada que só eu conseguia traduzir: "Ridne Ré, Rái Poin Boin"? Tradução: "Maria José, vai para o ponto do bonde?"
A Barca
Nos festejos natalinos a providência era assistir com respeito e admiração à Nau Catarineta, um Auto de Natal da Idade Média, representação que data do Século XV e relata uma viagem de aventuras atravessando o Atlântico, que durou exatamente sete anos e um dia.
"Assobe em cima gajeiro
Meu gajeirinho leal
Vê se tu avista a Espanha,
Oh, tolina
Areia de Portugal
Eu não avisto a Espanha
Nem areia de Portugal
Avisto sete espadas nuas
Oh, tolina,
Todas querendo te matar"
Meu gajeirinho leal
Vê se tu avista a Espanha,
Oh, tolina
Areia de Portugal
Eu não avisto a Espanha
Nem areia de Portugal
Avisto sete espadas nuas
Oh, tolina,
Todas querendo te matar"
Foi numa dessas representações da Barca que vim a conhecer "Minha Trinca." Era assim que chamavam o namorado de uma empregada lá de casa. Na verdade ele era tio e namorado ao mesmo tempo. Estravagante, porém verdade. Vivia eternamente embriagado. Certa noite de récitas ele causou o maior reboliço porque cismou que um outro bêbado estava olhando demais para a "trinca" dele. Eu achava tudo isso muito esquisito, porém a Barca era um espetáculo belíssimo. Anos mais tarde, já morando na Mauricéia e fazendo parte do Movimento Superoito da década de 70 eu filmei essa mesma Barca. Guardo até hoje o documentário da Barca do Mestre Ambrósio e sua Tripulação.
Um mar de Tranqüilidades
Engraçado, ninguém tinha medo de nada. Também, nada de mal acontecia. Não havia referência à tubarões ou outro perigo qualquer. Era fato corriqueiro, bem comum mesmo, divisar lá distante da praia, quase na linha do horizonte, um minúsculo ponto branco. Era a touca branca de Veloso, um sujeito que nadava de um lado para o outro, na maior tranqüilidade. O único "perigo" existente era a aparição em terra firme, de uma dupla no mínimo exótica. Um touro holandês de nome "Carnaval" e um outro, zebu marrom escuro, por nome de "Tambaú". Andavam à cata de comida sempre juntos e eu, garoto, corria às léguas quando inadvertidamente me deparava com eles. Vivia eternamente de pés descalços na areia preta o que favorecia o aparecimento de bichos-de-pé que a minha mãe extirpava usando um alfinete propriamente desinfetado. A casa não dispunha de água encanada e tínhamos um poço no quintal que mediante o acionamento de uma bomba manual a necessidade era prontamente suprida. Essa era uma tarefa árdua que eu não apreciava muito, mas tinha que fazer. Ordens do meu pai.
Piloto
Foi durante os três anos passados em Tambaú que a família ganhou mais um membro. Apareceu pela casa um simpático cachorro vira-latas, puro sangue. Piloto era o seu nome. Logo caímos de amores por ele. Desde então Piloto se tornou a minha companhia inseparável. Ele viveu conosco até a sua morte uns dez anos depois, quando morávamos no Miramar. Cachorro intelectual, apreciador da boa música. Adorava se enfiar embaixo da radiola para ouvir as suas prediletas: "No Jardim de um Mosteiro" e o Lado B, "Em um Mercado Persa" bem como, as valsas de Strauss. Uma desditosa manhã o meu pai o descobriu morto exatamente embaixo da radiola.
Conceito de Felicidade
Vida mais livre e mais feliz do que essa ninguém pode imaginar hoje em dia. Saía de casa às 8 da manhã e voltava para almoçar, pé no mundo novamente para retornar noite escura. Vivia literalmente à beira do Atlântico ou dentro dele. Ir à pé, Piloto sempre ao meu lado, até ao Cabo Branco, apanhar pedaços de giz colorido que se desprendiam da falésia. Fazia esse trajeto várias vezes ao dia. Ida e volta. Hoje se as pessoas se espantam quando não sinto a menor animação para ir à praia eu explico que a minha quota há muito foi preenchida. Eu era um garoto feliz e, ao contrário do Ataulfo Alves, tinha a mais perfeita noção dessa felicidade. Até mesmo quando o meu pai me fazia bombear água para abastecer a casa.
18 comentários:
Belas recordações, Hugo.
E o texto com a qualidade de sempre.
Hugo, lindas recordações. Me transportaram à minha infância feliz, na casa de meu Padrinho e também em uma casa que meu Pai alugou em Tambaú. O Côco de Praia também lembro muito. Exatamente esse. Cantei e me sacudi muito ao seu ritmo, na Praia Formosa, em Cabedelo,já na adolescência.Todos os seus Recuerdos são maravilhosos e, como sempre, muito bem escritos. Lucia Rosas
Beleza, Hugo. Lendo seu texto - vivendo aqui, em João Pessoa - lembrei-me da emoção que tive ao ver, numa mostra chamada Século de Ouro da Paisagem Holandesa, em Madri, uma tela de Frans Post - "Saída do Rio Sanhauá", assim, em português. Solha
HUGO
Perfeita cronica dos tempos idos que me fez recordar. Não morei em Tambaú , apenas veraneei numa casa do meu tio Adalberto (Viana Pesão)que recebia periodicamente a visita do prof Pacote. O tal Veloso que desafiava os mares ia muito lá em casa.Embora não me lembre do coco , assisti a Nau Catarineta.Outra lembrança que guardo é sobre um cemiterio que havia num dos trechos da praia . Tremia de medo quando tinha que atravessa-lo sozinho. E as castanheiras enormes que ficavam perto do ponto do bonde! Elas resistiram muitos anos , talvez até ainda estejam por lá.
Atras da nossa casa de veraneio havia uma mata com muitos cajus...e havia os tejus e saguis . Lembrei-me da vegetação que encontrava na areia haviam carapateiras, urtigas, um arbusto que tinha uma bolas verdes com leite corrosivo e uns pes de azeitoninha amarela muito perfumada .Uma dia meu pai entrou na mata e voltou muito triste pois revelou qua havia morto um macaquinho com um tiro de pistola.
Meu Deus!
Carissimo Hugo
Saindo da redação de "O Cinema Segundo Ipojuca", exausto de frases e palavras, me deparo com suas comoventes anotações sobre a infância familiar em Tambaú. Bela memória!
Andei muito nesse bonde com minha mãe, Dona Lais, Paulo e o João Batista (irmão que morreu afogado nas águas do Sanhauá), ai pelos idos de 1949, com direito a farofa e asa de galinha,
E o cheiro dos sargaços?
Até hoje me persegue!
Parabéns e abração!
Ipojuca
Caro Osman
Obrigado pelo comentário simpático. Esse arbusto de bolas verdes e leite corrosivo... não consigo lembrar o nome. Como também das azeitoninhas amarelas. Não lembro também do cemitério nem onde ficava. Me foge à lembrança se havia uma igreja em Tambaú... As castanheiras não seriam as gameleiras? Ainda estão em pé. Coitado do saguin. Abraço. Hugo
Linda história, pai. Da até vontade de ter um cachorro e de chamá-lo Piloto!
Huguinho
Querido Hugo vc me fez recordar tb passagens de minha infancia em nossa querida e bela Tambau.
Abraços Berenice.
Caro Hugo
Belissimas lembranças da infancia em Tambau.... Minha infancia até 8 anos de idade ocorreu em Souza. No final da 2a guerra a região cheia de militares americanso e alguns deles num carro de combate derrubarram uma arvore na rua principal onde nós moravamos... o fiscal da prefeitura avaliou o prejuizo e o gringo pagou na hora... Como o fiscal não timha troco o gringo disse.. Não tem problema...eu vou derrubar mais outras.... Té mais ver. Luna
Belas lembranças, mas não a nada melhor do que lembrar de sua infâcia, sendo ela repleta de alegrias e descobertas adoravéis.
Eu tabém tenho muitas saudades de minha infância.
Teve uma parte do textoque você disse, que sua cota de praia acabou poque você viveu muito na praia, agora eu lhe pergunto e seu filho porque não gosta? kkkkkkkkk
Hugão
Faltou voce contar que o casal Américo e Dalva eram grandes anfitrões e as visitas eram constantes na sua casa.
Lembro quando D. Dalvinha conversava muito no terraço lá de casa contando as passagens da sua vida...não sei se foi na casa em Tambau que eles afastavam os móveis da sala para os amigos dançarem e se divertirem ao som da vitrola. Ela dizia que Memeco era "pé de valsa".
Recordar é viver.
Bjs,eu
De Tambaú achei poético. Só que eu achava que também era "membro" da família. Mas o cachorro Piloto merece mais atenção... aliás, ele morreu na 55. Manfredo
Ta vendo o que dá um lapso de 10 anos? Em 1947 eu tinha 10 anos, Guilherme 02, e você era um recém-nascido. Mas não justifica. Vou dar um jeito nisso. Abraço. Hugo
Olá Hugo! Procurando registros de Tambaú de antigamente me deparei com o seu blog e eu e meu marido lemos as suas memórias com muita saudade (ele) daqueles dias que vc tão bem relembra.
Vc fala em Veloso e quero lhe dizer que se vc tivesse ficado por lá nos anos de 51 a 53 teria visto ao longe, no mar, duas tocas brancas, a segunda era de meu marido. Eu não tive a oportunidade de viver aqueles dias em Tambaú, mesmo porque nessa época eu tinha apenas 5 anos rsrsrsrs...mas é como se estivesse estado por lá de tanto que ouço e alimento as lembranças de meu marido Francisco. Estou tentando reunir, para ele, e já tenho algumas, fotos de João Pessoa daquela época e uma foto que nos daria imensa alegria seria a da Igrejinha de Santo Antônio de Tambaú, na Rua Olinda. Temos fotos da praia, do Bar Elite, das casas com alpendre... será que vc tem ou sabe de alguém que tenha alguma foto que possa ampliar a nossa pequena coleção? Uma outra lembrança muito forte que ele tem é de um pensionato ou colégio que na época do verão organizava uma quermese da qual ele se lembra muito bem. Parece-nos, pelo que já pesquisamos, que ficava onde hoje está o centro turístico de Tambaú bem em frente ao Hotel Tambaú. Vc lembra desse prédio? sabe qual era a congregação religiosa? E seus irmãos têm alguma lembrança do que eu estou lhe consultando?
Atenção Ana Arnaud
Botei os cachorros no mato em busca de informações. Logo lhe passarei à medida que me forem chegando. Para isso necessito do seu endereço eletrônico (e-mail).
Grato pelo comentário e esperemos. Hugo
Hugo, agradeço a sua atenção. Meu endereço: anamariaarnaud@hotmail.com
Parabéns pelo conteúdo de seu blog, estamos lendo aos poucos e gostando muito. Abraços
Amigo Hugo:
Tudo que a vossa leitora falou e perguntou, eu vivenciei em torno de 1952. Eu tinha 9 anos de idade. Tenho tudo na memória, mas fotos naquele tempo eram coisas raríssimas!
Morávamos em frente à igreja de Santo Antonio na Av. Olinda (a casa da esquina continua em pé, do mesmo jeitinho daquele ano). Jogávamos algumas peladas na tal escola a que ela se refere, onde hoje é o centro turístico. Pulávamos o muro e a bola rolava na área do jardim (que era só areia) da escola. Eu fiquei com a impressão, até hoje, de que era um "grupo escolar", mas posso estar enganado.
Há uns primos do meu pai (Petrarca Grisi) que fizeram parte da história de Tambaú dos anos de 1950. Foram os irmãos, já falecidos, Alberto Grisi e Aldroville Grisi; este último, conhecido como Vivi, foi o fundador da cooperativa dos pescadores de Tambaú (a famosa Cooperativa). Ambos moravam na rua por trás do Elite Bar, desde aqueles tempos. A viúva de Alberto, Luzimar, ainda lá vive, porém em idade muito avançada e em condição de saúde precária. Seus filhos, Dr. Aldrovando Grisi (médico) e Luana Grisi (advogada) talvez tenham registros desses locais.
Conheci o Veloso. Eu tinha conhecimento de que ele fazia essas aventuras em alto mar, como também o fez o Vivi. Mas somente agora estou sabendo quem era o outro nadador.
Espero que essas informações possam ser úteis à quem te fez a consulta. Boa sorte a ela, neste importante resgate histórico.
Abraço,
Breno Grisi
Breno, maravilhoso!!! O Nunes está aqui impressionado com suas lembranças que vêm se juntar às dele. Se em 1952 vcs moravam na casa da esquina, com certeza são contemporãneos da mansão dos Hatefield's. Então, considerado todo o progresso daquela região, o Nunes pensa que a casa deles era exatamente a da esquina da rua Olinda, quase em frente à Igrejinha. Temos até fotos dela tiradas há alguns anos atrás, antes do muro alto que hoje ostenta. Mas ele está um pouco confuso com essa localização. Se o Hugo permitir, colocarei outras lembranças. Abraços
Postar um comentário