sexta-feira, dezembro 17, 2010

A Festa das Neves




Hugo Caldas




Nos idos de mil e novecentos e preto & branco, a Festa das Neves era a mais importante celebração profana em homenagem a Nossa Senhora das Neves, Santa Padroeira da Paraíba. No meio da rua, em frente ao prédio da Maçonaria, um enorme pavilhão de madeira, à guisa de restaurante aonde os abonados do burgo eram servidos por moçoilas da mais alta sociedade travestidas de garçonetes. Para a gandaia, os menos afortunados, existia depois do pavilhão, já chegando em frente à Catedral, a bagaceira, com a barraca de Rosa onde se tinha bebidinhas e comidinhas de se comer fechando os olhinhos. No pavilhão tinha ainda um eficiente serviço de "telegramas" que incitavam a nossa imaginação pois raramente se sabia quem estava mandando.

Era um acontecimento memorável. Esperávamos o ano inteiro. Quando adolescentes, quase meninos íamos à tarde andar nos brinquedos do "Parque de Diversões" especialmente a Roda Gigante. Certa vez o Carlinhos Cordeiro e o Mago Gilvan Meira Lima jogaram lá de cima uma porção de pequenos pára-quedas. Foi um sucesso. Aliás, teria esse inocente brinquedo a ver com a Segunda Guerra? Acho que sim. Lembro bem deles.

Um pouquinho mais crescidos, íamos de terno novo, feito especialmente nas alfaiatarias Grisi, Sorrentino ou João Caldas e partíamos para a paquera. A paquera, aliás, era a coisa mais fantástica deste mundo, as meninas em grupos de três ou quatro, braços dados, rodando na calçada e os marmanjos invariavelmente encostados nas paredes, a apreciar o desfile com o coração aos pulos. Às vezes algum engraçadinho deixava disfarçadamente cair umas pimentas malaguetas no chão do passeio e em questão de minutos tudo ficava absolutamente intransitável. Bons tempos de alegria inocente. A minha Tia Nevinha morava em um pensionato da Rua Nova e eu ia para o quarto dela encontrar a namorada. Enquanto Nevinha na janela apreciava a festa, nós fazíamos a nossa festinha particular, no maior chamego. Tempo realmente muito bom!

Tinha também uma amplificadora, "De alguém para você" onde a gente sacaneava os amigos dedicando de vez em quando:

"Assim como as flôres abrem as suas pétalas para receber o orvalho da manhã, abra também o seu coração para ouvir esta linda mensagem que alguém que muito lhe ama lhe oferece."

E tome versinho de pé quebrado, e canção na voz de Augusto Calheiros. "Não sei porque razão tu tens ciuuumes..."

A jovem intelectualidade da época tomava parte ativa na festa onde jornais irreverentes, existiam três ou quatro, eram impressos e distrbuidos todos os dias. Muito me envaidece hoje, saber que Augusto dos Anjos "o Paraibano do Século" começou em um jornal da festa das Neves. "O Tabefe" foi o nosso jornal que por causa de uma suprema quixotada teve vida efêmera, curtíssima, sendo empastelado logo na segunda edição. Ordem expressa do governo. O motivo? Ah, eu ainda lembro:

Estampamos na primeira página a "Frase do Dia"

- "Que importa que a tábua lasque o que eu quero é bater prego" - Governador Flavio Ribeiro Coutinho.

- Outra: "Certos matrimônios deveriam ser denominados - patrimônios”. Referência a um possível Golpe do Baú dado por figurão da cidade:

Foi o mesmo que cutucar a onça com vara curta. Fazíamos "O Tabefe", o locutor que vos fala, Carlinhos Cordeiro e Antoninho Caçador (por onde anda?). Bons tempos em que fomos levados muito a contragosto até a presença do delegado de plantão a fim de levarmos uma enorme e imerecida descompostura.

Passo a bola um pouco para o Carlinhos Cordeiro:

"O Tabefe" na verdade recebeu uma queixa na polícia, por causa da piada "matrimônio/patrimônio". Mandaram "a viuvinha" (o carro preto da polícia) lá em casa com uma intimação, e tivemos de ir à DIC. Mas ainda saiu mais um número. Fomos ameaçados de porrada pelo Badu Norat, por causa de uma piada que ele achou ofensiva. E o pior é que o cara era forte paca e não tinha o mínimo senso de humor!"

Outras seções também faziam o maior sucesso, especialmente, o "Coisas que incomodam":

O bigodinho de Juarez Muriçoca
O nariz de Yalmita prato raso
A traseira de Juberlita (o ônibus)
A voz de Teones Barbosa
E suprema irreverência para a época...

Na barraca de Rosa impera a sujeira. "Ela nem copo lava!" ... assim eram as coisas.

E tinha também O Dia dos Estudantes, onde tudo era exigido de graça.

Belos tempos de alegria inocente, em que valiam os códigos de honra e ninguém era capaz de uma sacanagem maior, mesmo contra o maior desafeto. Saudades de um tempo cheio de vida e emoção. As meninas eram lindíssimas e a gente se apaixonava à toa, várias vezes ao dia.

Osman Godoy, cineasta paraibano também habitante da Mauricéia Desvairada, faz a pergunta transcendental: "Será que a Festa ainda existe?"

Ele mesmo responde:

"Seguramente sem aquele romantismo que a névoa do tempo se encarrega exacerbar."

4 comentários:

Osman Godoy disse...

Caro Hugo
Você não sabe quanto me fez relembrar aqueles tempos de cinema P&B como vc diz. Seguramente nos cruzamos no vai e vem pelas calçadas daquela avenida em frente à catedral.
Até a algum tempo eu guardava um daqueles jornais da Festa, com alusões ácidas ou cômicas de personagens como o Prof Pacote e sua irmã Dulce Pacote, entre outras figuras folcloricas de João Pessoa. Lembro-me de uma charge cujo título era: Prof Pacote ensinando violino a Augusto Simões. O Pacote era meu amigo e gozava de fama de sabe tudo. Ele era professor de Inglês no Liceu. Vc deve tê-lo conhecido. No Liceu havia também a professora Argentina,parece que de português. Estudei apenas um ano no LIceu.
Mas voltando à Festa...e o dia dos estudantes , onde tudo era exigido de graça?
Será que a Festa ainda existe? Seguramente sem aquele romantismo que a névoa do tempo se encarrega exarcerbar.
abrs Osman

Carlos Mello disse...

Hugão,
esse tema "Festa das Neves" merece um longo artigo. Quuando a gente ainda era aborrecente, ia de tarde, andar nos brinquedos. Eu o o Mago Gilvan subimos na roda gigante com mini paraquedas nos bolsos e atiramos lá de cima. Uma festa! Depois de crescidos, todo ano a gente fazia um terno novo, "para a procissão" (na verdade, para a paquera, que era a coisa mais fantástica, as meninas rodando na calçada e os marmanjos paquerando, com o coração aos pulos. Tinha também uma amplificadora, onde a gente sacaneava todo mundo. E finalmente o pavilhão, onde o quente eram os "telegramas", sobretudo porque a gente nunca sabia quem estava mandando. Tempos maravilhosos, de alegria inocente, em que valiam os códigos de honra e ninguém era capaz de uma crocodilagem, mesmo contra o pior inimigo. E depois do pavilhão, ainda tinha a bagaceira, com a barraca de Rosa. O Tabefe na verdade recebeu uma queixa na polícia, por causa da piada "matrimônio/patrimônio". Mandaram "a viuvinha" (o carro preto da polícia) lá em casa com uma intimação, e tivemos de ir à DIC. Mas ainda saiu mais um número. Fomos ameaçados de porrada pelo Badu Norá, por causa de uma piada que ele achou ofensiva. E o pior é que o cara era forte paca e não tinha o mínimo senso de humor! Saudades de um tempo cheio de vida e de emoção. As meninas eram lindíssimas e a gente se apaixonava à toa. Todo mundo "roía" e tomava porre. Mais, oú sont les neiges d'antan? Carlos

Ipojuca Pontes disse...

Caro Hugo, gostei muito da memorialistica da Festa da Neves. Ótimo, ótimo e ótimo. Você - como de resto, Augusto dos Anjos - começou em jornal da festa das Neves - logo fechado pelo Dr. Flavio.
A proposito, lembra de outro jornal que publicou um artigo sobre as moças da sociedade local, intitulado "Borboletas e Mariposas"?
O seu autor, um estudante de direito chamado Armando Frazão, teve de se mudar da terrinha. Veio para o Rio. Abraço
Ipojuca

Antonio Caldas disse...

Primo Hugo
Li sueus comentários sobre a FESTA DAS NEVES de nossa Capital, relembrada muito bem pelo primo. Fiquei com saudades dos velhos tempos, pois morei na Rua Nova durante 30 anos e todas as noites estava com minha turma na BAGACEIRA.
Faço votos de muita saúde para você e familia durante o NOVO ANO.
Com um abraço do primo e amigo, Antonio Caldas.