Carlos Mello
Durante meu curso de Direito, nos raros momentos em que cogitei de exercer a profissão, pensava sempre na área criminal. Andava seduzido pelos filmes americanos, como a obra-prima do Sidney Lumet, Doze homens e uma sentença; e pelos filmes do André Cayate, em que sempre se provava que a razão comum pode muitas vezes ser injusta. Via-me assim ora como advogado de defesa, buscando argumentos e provas para defender a inocência do meu cliente – sim, porque imaginava sempre que meus clientes seriam pessoas inocentes. Ora atuando na promotoria, descobrindo com uma argúcia de detetive as provas que ajudariam a pôr na cadeia os criminosos. Todas essas quimeras minguaram e acabei o curso exatamente como entrei – sem nada saber da ciência jurídica. Deram-me um diploma que, no dizer de Machado, pela boca do Brás Cubas, “me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro.”
Não tenho, portanto, a mínima condição técnica para discutir assuntos jurídicos. Nem disposição para isso, porque afligem-me o jargão profissional, cheio de palavras rebarbativas, a pletora das citações latinas e os meandros ardilosos da argumentação, com a qual se procura, às vezes, provar as coisas mais improváveis. Além disso, é evidente que a lei, sobretudo a lei penal, vale somente para os pequenos. Já dizia o sábio Balzac, de certa forma repetindo Rabelais, que “as leis são teias de aranha pelas quais as moscas grandes passam e as pequenas ficam presas”. Mesmo assim, é inegável que aqui e acolá se acaba fazendo justiça e metendo na chave tubarões de grande porte. Salvatore que o diga.
Mas há um ponto que não há argumento que me faça digerir. Empaca no esôfago. Minha razão repele, minha natureza se abespinha. E esse ponto é o empenho apaixonado que certos advogados assumem por clientes que são réus confessos de crimes hediondos, e que eles toda hora tentam reapresentar à sociedade como modelos de virtudes cristãs. Por exemplo, para uma moça que tramou e acompanhou a execução dos próprios pais, e que, a meu ver, deveria, por tal hediondez, apodrecer na cadeia, pede-se agora o relaxamento da pena e até uma indenização “por danos morais”. Caramba, isso é que é acrobacia moral! Da mesma forma, um assassino covarde, que executa a namorada com dois tiros pelas costas, e ainda desfere um terceiro disparo na cabeça da vítima, nunca chegou a ser preso. Seus advogados, inegavelmente competentes, e que conhecem os meandros e os furos da lei, vão empurrando com a barriga e obtendo mil protelações. O criminoso, passados já muitos anos, continua vivendo, muito bem, obrigado, em sua mansão, como o mais inocente e correto dos homens.
Já sei. Dirão que os advogados estão no seu papel, e que não são culpados de a legislação penal brasileira ser tão falha e dar tanta margem de manobra para manter os celerados longe das grades. Realmente, a culpa cabe aos legisladores, e não vamos falar dessas pessoas para não azedar nossos estômagos. Entendo perfeitamente que os advogados são pagos para isso mesmo, defender seus clientes “dentro da lei”. Mas o advogado deve ter por baixo de seus ternos e gravatas, por baixo daquelas capinhas pretas que usam nos júris mais badalados, uma coisa que toda pessoa de bem possui, e que se chama consciência. Lutem por seus clientes, recebam deles, quando são ricos, todo o dinheiro que entendem merecer. Mas, pelo amor de suas consciências, se é que as têm, não se apaixonem demais por seres humanos tão desprezíveis. Essa atitude só serve para perpetuar a injustiça. E para nos tornar ainda mais desanimados do gênero humano.
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