segunda-feira, setembro 13, 2010

EU NÃO VIVERIA MUITO, SE FIZESSE CARREIRA DE ATOR

W. J. Solha

No curta-metragem A Canga, dirigido por Marcus Vilar, há uma cena em que, ao esforço físico que despendo pra manter a navalha do arado fincada no chão que lavro - o cultivador puxado pelos meus dois filhos jungidos, auxiliados pela velha e pela nora grávida, nas cordas - soma-se a tensão de saber que uma rebelião está prestes a estourar na família, o que leva minha mão direita pro escapulário e começo a rezar a oração do corpo fechado:

- Salvo entro, salvo estou. Salvo, salvo, salvo sempre estarei. E com o Credo-em-Cruz me fecho, amém!

- Corta!

Soltei o arado, senti que vacilava pra trás, Marcus e o Walter Carvalho me seguraram. Ao final da repetição da cena, a mesma coisa.

Essa evasão de energia vem se repetindo nas interpretações mais intensas, em outros filmes, sem que disso resulte nada superior ao que outros atores fazem sem aparente desgaste. Em Eu Sou o Servo foi cortada uma cena em que eu era fuzilado, embora, ao final dela, eu tenha tido uma imprevista crise de choro, seguida de violenta dor de cabeça. Em Lua Cambará também não resultou em grande coisa minha agonia no leito de morte, no qual quase pifo de verdade. Dira Paes, que fazia o papel de minha filha, percebeu que eu não estava bem, chamou o diretor, senti que Rosemberg Cariry me puxava pelas mãos, vi que não me sustentaria em pé, agarrei-me a tudo que encontrei à minha volta, pra não despencar, a enfermeira que cuidava de um bebê a ser utilizado na cena seguinte tirou minha pressão e concluiu:

- Você é hipertenso.

Agora, nas filmagens de O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, eu conversava com o Sr. Josias Saraiva Monteiro, dono do apartamento de cobertura de Boa Viagem, que no filme era “meu”, enquanto a equipe técnica preparava luzes e câmera para a seqüência decisiva, que ocorreria na sala de visitas, e ele me contou como fora o AVC que o forçara a usar muletas. Quando lhe disse que também era hipertenso, pegou o tensiômetro que havia em cima de seu birô e fez a convocatória:

- Vamos ver como está sua pressão.

- Não, não – eu disse - Deve estar lá em cima, pois a cena que vou viver é da pesada, e prefiro não saber.

- Estire o braço.

Vinte por dez.

- Então não há problema – ponderei. – O perigo é quando os índices se aproximam um do outro, como aconteceu no Ceará.

Mas ele chamou a esposa, Dona Helena, que foi à produção do filme, o que teve como conseqüência que alguém se deslocou até onde eu estava hospedado, trouxe de lá minha caixa de remédio intocada, tomei um comprimido, tempo exato para que me chamassem para a filmagem.

Kleber explicou que dividira a seqüência em duas: a do diálogo, lento e terrível - eu numa poltrona, Irandhir Santos e Sebastião Formiga à minha frente, num só banco -, e que culminaria quando eu e os antagonistas nos puséssemos em pé. Na segunda parte, os dois me atacariam juntos e... Caramba: Kleber – além de grande diretor - é um estupendo dialoguista. Pra interpretar essa obra-prima de reviravolta, Irandhir fazia um assombroso aquecimento, como o de um miúra que funga e escarva o chão antes do ataque e, aqui acolá, ele dava um grito. Foi aí que fiz a besteira de encará-lo, olhar feio para ele, com o que sua ira foi à estratosfera.

- Atenção, silêncio (pediu a assistente de direção, Clara Linhart, ao que Irandhir ainda deu uns três berros), luz, câmera... Ação!

A conversa em cena começa calma, o clima vai se adensando, surgem revelações sombrias que se tornam chocantes, que passam a ser contundentes, tremo de impacto e de ódio e de medo, percebo que estou perdido, ergo-me, os dois homens se levantam e... Corta!, desabo na poltrona, exausto. Aí Kleber entra no ambiente, diz que quer outra versão com outro ritmo, começo nova concentração, Formiga mais uma vez me olha com cara estranha, Irandhir volta a ter novo transe de rancor, prestes a soltar seus demônios, fecho os olhos, procuro não me deixar levar pela loucura do “inimigo” e, atenção, silêncio por favor ( Irandhir repete mais berros), silêncio... por... favor!

- Luz, câmera, Ação!

De repente, eu, novamente, não sei nada sobre o que me aguarda, falo, falo, falo, de repente ouço informações assustadoras dos dois homens à minha frente, controlo os nervos, controlo, controlo, até que me apavoro, ponho-me em pé e – Corta! – desabo, novamente, na poltrona.
Kleber, então, diz que a cena ficou ótima e que agora teremos de repetir tudo para que a câmera – até então voltada para mim - capte ações e reações do Irandhir, depois do Formiga (meu deus!).

Aí, disfarçadamente, chega-se para mim e me sussurra:

– Quer um dedo e meio de uísque?
Levanto os olhos, murmuro:

- Está brincando...

- Sério...

- Então quero, sim. Claro.

A dose me chega escamoteada num copo de plástico. On the rocks.
E aí tome nova sessão espírita do Irandhir (ele riu muito quando eu lhe disse isso, no dia seguinte), tome sound and fury, mais sound and fury – coisa, mesmo, pra William Shakespeare – E atenção, silêncio, silêncio... por favor! Luz, câmera... Ação!!!

E tudo mais uma vez termina, caio na poltrona, tudo mais uma vez termina, caio na poltrona, tudo mais uma vez termina, caio na poltrona... exausto.

Hamlet se pergunta, ao ver a performance de um de seus atores num drama clássico:

- O que Hécuba é dele, ou ele de Hécuba, para que ele chore por ela desse jeito?

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