domingo, setembro 12, 2010

5XFavela - o cinema do engodo

Ipojuca Pontes

Se o badalado Cacá Diegues (como considerava Luiz Sérgio Person, autor do clássico “São Paulo S/A”) é, sem sombra de dúvida, um “cineasta sem um só fotograma de talento”, cuja filmografia percorre vasta escala de filmes ruins ou artificiais - o mesmo não se pode dizer dos seus incontáveis méritos enquanto especialista na renhida arte de sacar dinheiro público para produzir cinema.
Neste particular, Cacá Diegues pode ser considerado uma verdadeira preciosidade: há pelo menos quatro décadas vem armando suas produções cinematográficas em cima do Erário nacional com a desenvoltura – e precisão - de um cronômetro suíço.
É verdade que para levar adiante tão ingente desempenho o reconhecido cacique do cinema tupiniquim conta sempre com recursos perdulários doados a fundo perdido pelas chamadas “autoridades competentes”, a começar pelas benesses distribuídas pelos militares do contragolpe de 1964, os verdadeiros deflagradores do processo.
Mas o fato, conforme anotado, ainda que relevante, por ser basilar, não obscurece a sua competência, pois na esfera de saber criar esquemas para auferir milionários recursos oficiais na produção de filmes descartáveis, Cacá Diegues se apresenta como autêntico expert, sendo mesmo de se lamentar que o engenho e arte despendidos para sacar dinheiros dos cofres públicos nunca cheguem aos seus filmes irrelevantes.
Com efeito, sua última bolação, depois do esplendoroso fracasso de “O Maior amor do mundo” (um caso à parte na história dos seus fracassos, envolvendo mais de R$ 10 milhões) é o reiterativo “5xFavela, agora por nós mesmos”, feito sob medida para navegar na onda populista que consagra a tenebrosa Era Lula, da qual o dispendioso cinema produzido por Diegues é eloqüente beneficiário.
O filme, em si, para além do previsível, representa muito pouco. O marketing a ser explorado, desta feita, reside na sacada marota de que agora é o habitante da favela quem realiza o filme e tece a própria história – tendo, naturalmente, embora de forma dissimulada, a ótica panglossiana do produtor por trás de sua confecção.
No intervalo dos letreiros em grafite, outra bolação antiga, levantam-se cinco historietas que tentam registrar o já mítico cotidiano da favela (chamada de “comunidade” pelo sofisticado vocabulário “politicamente correto”). No conjunto, em sua confecção engajada, elas misturam os ingredientes do chamado realismo socialista - a idealização da moral proletária vista pela ótica esquematizada do cinema stalinista e orquestrada pela figura deletéria do comissário Jdanov – com os componentes da fórmula do filme de episódios (quase sempre cômicos) industrializada pelo cinema italiano dos anos 60/70 do século passado, fundamentada no truísmo satírico do drama social.
Como sempre ocorre no cinema de indução, “Fonte de renda”, o episódio de abertura da fita, foi armado para provar que o favelado, por injunções de ordem econômica, pode trilhar o caminho do crime - mas, em sabendo o que é certo, pode também se recuperar.
Eis o seu plot: numa situação limite, o favelado Maycon trabalha numa padaria, mas, para poder pagar os estudos, torna-se repassador da droga. No curto relato, tudo se resolve da melhor maneira possível: o herói comunitário é salvo pela moralidade de um padrinho, policial aposentado (composto pelo “poseur” Hugo Carvana) que, para demover o afilhado da senda do crime, resolve estapeá-lo, numa das cenas mais artificiais já criadas pelo cinema pátrio, talvez desde o plano em que Jece Valadão, fazendo papel de bandido de morro, dá um abraço num líder sindical que lhe rouba a mulher, no primário – e sempre exaltado - “Rio, 40 Graus”, do até hoje jdanovista Nelson Pereira dos Santos.
Nos demais episódios, elaborados no mesmo tom de artificialidade, o roubo de um frango, a execução de um casal por policial amigo, a história de amor entre adolescentes à reboque de uma pipa e a anedota do reparo de poste de luz por um eletricista acuado numa noite de Natal, formam o trivial variado que exclui o real enfrentamento de temas marcantes da favela carioca, tais como a religiosidade popular (macumba e a prática evangélica), o jogo do bicho, a esfera marginal do samba e a questão da droga – esta, abordada muito superficialmente no citado episódio de abertura.
(Aqui, um pequeno retrospecto: para Carlos Estevam – antigo dirigente do Centro Popular de Cultura da comunista UNE, produtora do primeiro “Cinco vezes favela”, fabricado em 1962 com a grana do governo Jango - o trabalho dos “rapazes do CPC” (futuros integrantes do Cinema Novo) resultou numa experiência cinematográfica “debochável”, querendo dizer com isso que a visão “antropológica” do filme, para fins de “transformação da realidade”, era digna do escárnio das massas. O dirigente do CPC da UNE achava mais revolucionário, para fins de “conscientização social”, filmes como “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte, do que, por exemplo, o inexpressivo “Escola de Samba Alegria de Viver”, do próprio Cacá Diegues – no que estava repleto de razão).
O problema com a arte do realismo socialista é que se pauta, antes de tudo, por ser uma peça de doutrinação ideológica, especialmente no que diz respeito à idealização das classes sociais. Nela, tudo é intencional, premeditado, a começar pela visão maniqueísta em que o proletário aparece sempre como um sujeito especial e o burguês, em contraposição, como um ser eternamente fraco, explorador, hipócrita e nocivo. Tal deformação, corrente na arte engajada que enxerga o mundo pela ótica de “luta de classes”, se manifesta plenamente nesta reedição de “5XFavela, agora por nós mesmos”, obra na qual o favelado é visto, mesmo quando criminoso, como uma injustiçada vítima da sociedade.
O cinema brasileiro transformou-se hoje num instrumento do Estado dominado por esquerdistas contumazes que objetivam fazer do país uma “República popular”, ao modo da China ou de Cuba. Com seus filmes de ocasião, em geral selecionados por comissões politizadas, que os credenciam para auferir vastas somas de recursos do governo e das estatais, pretendem impor à consciência nacional a idéia de que só através da ação do Estado - socialista, forte e empreendedor - o país poderia chegar, enquanto nação, ao esplendor político, econômico e social - um idéia, de resto, absolutamente falsa e mentirosa.
Pois é justamente no limiar do Estado Forte concebido pelo camarada Lula (e seus asseclas de partido) que o Brasil tornou-se um dos países mais violentos do mundo, a viver uma guerra civil declarada que contabiliza mais de 50 mil mortes por ano, a segregar a população pobre em guetos de miséria e terror – a mesma população que os cineastas tupiniquins, no seu “cinema de resgate”, se empenham em mistificar com a avidez de um monstro pantagruélico.

Voltaremos ao assunto.

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