Carlos Mello
Peço licença ao estimado e talentoso confrade José Virgolino para acrescentar essas achegas ao seu artigo. Talvez tragam mais alguma luz sobre esse rito, que nos parece confuso e bárbaro:
Primeiro, o comentário existente na minha edição da Torá, diz: “Os nossos exegetas interpretam esta cerimônia de sortear os cabritos como indicação simbólica para os dois diferentes elementos e a sua maneira distinta de encarar os problemas da vida. Um encarna, com seu estilo de viver e pela pureza de suas ações e pensamentos aquela máxima gravada em muitas sinagogas com letras douradas (...): “Tenho o Eterno sempre à minha presença”, ou seja, tudo que eu faço e pretendo fazer é orientado e guiado por uma única motivação: viver sempre dentro das prescrições da Torá, amar a Deus, o meu povo e a humanidade inteira (...) Este elemento humano, que representa pela nobreza do seu caráter a perfeição da criação Divina, é o símbolo de “para o Eterno”.
Mas existe um elemento radicalmente oposto. É aquele ser humano cuja vida é claramente profana, cujos interesses nesta vida são de um materialismo vil, uma abjeção grosseira, o tipo de ser humano cujo maior ideal é o seu próprio ego, para o qual o meio ambiente não existe, porque ele é incapaz de dar algo de si.Este tipo de homem vive na auto-ilusão de ser um elemento útil à sociedade, mas quem for capaz de deitar um olhar dentro de sua alma vazia e pobre, verificará facilmente que ele, coitadinho, não é nada mais do que um bode isolado num deserto. Pois todos nós sabemos muito bem que não existem apenas desertos geográficos, mas também – e o que é mais lamentável – desertos espirituais, intelectuais (...) Enquanto para o primeiro, o alvo é “para o Eterno”, a meta do segundo é orientada “para Azazel”.
A cerimônia de sortear os bodes, oficiada no dia mais sagrado, no lugar mais sagrado e pelo homem mais sagrado (o sumo sacerdote) é talvez a mais bela e mais significativa demonstração de que o acaso pode ser um fator decisivo quando se trata de carneiros inocentes, mas nunca em relação ao homem responsável pelos seus atos”.
Segundo, meu comentário: Parece-me que essa distinção, feita pelo ilustre rabino, se aplica a qualquer sociedade humana. Aqui, na nossa, vemos tanta gente honesta, trabalhadora, séria, que (com ou sem religião) não hesita em sacrificar-se pelo próximo; e os políticos (em sua esmagadora maioria), certos empresários e homens de negócio e muitas outras pessoas, pobres ou ricas, que vivem unicamente para satisfazer suas ambições mesquinhas. Em Israel, há homens e mulheres extraordinários, que levam uma vida humilde, de trabalho e dedicação ao seu país e ao mundo; e há os “falcões”, os direitistas, os racistas (é incrível que haja judeus racistas!), os que desejam exterminar o povo palestino e não hesitam em efetuar represálias absolutamente desproporcionais, como esta mais recente – contra um foguete lançado pelos psicopatas do hamas (que aliás não causou vítimas) disparam um ataque de represália com vários bombardeios, naturalmente matando crianças e outras pessoas indefesas. Igualam-se assim aos terroristas que os atacam e, o que é pior, aos próprios nazistas, autores do holocausto. Esses são os servos de Azazel.
Um comentário:
A profundidade, seriedade e conhecimento de causa com que o mestre Carlos Mello disserta sobre minha despretenciosa crônica, que limitou-se a ficar na superfície do fato, quase afundou meus argumentos, se não fora uma justificativa, ainda que pálida, de minha parte, em afirmar que preocupei-me com a estranheza do ritual, tendo na minha cabeça o fato material como se fosse realizado em nossos dias.
De certo modo, caminhei proposidamente para o epílogo com a frase de Vicente Mateus, entusiasmado com o jogo de palavras de uma crônica meramente jornalística, sem entrar na análise do fenômeno à luz da religiosidade e da teologia, campo em que Carlos Mello passeia com extrema competência e traz à lume circunstâncias em relação às quais não me detive para pensar.
Parabéns a Carlos Mello e, pelo menos, me consola saber que abri a oportunidade para a lição do ilustre escritor, nos ensinando o lado, mesmo polêmico, mas, repito, profundamente sério da questão.
Abraços
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