Por Walter Hupsel . 06.04.10 - 18h22
No século 17, a Europa estava cindida por guerras religiosas, cada religião querendo se impor sobre os infiéis para que determinado país estivesse sob as graças do seu deus. Essas guerras instauraram um período de intenso derramamento de sangue e de inimizade entre defensores de teologias diferentes. Estado e religião eram quase que uma coisa só, e o primeiro se arvorava o direito de impor qual era a crença obrigatória aos súditos.
Neste contexto, num período de intensa agitação e sangue derramado, a única saída, conseguida devido à exaustão da população, foi a exclusão da fé como pauta pública e o seu deslocamento para a esfera privada do cidadão. Creia no que quiserdes, mas obedecei-vos. Estava lançada a pedra fundamental do Estado laico.
Porém, para que isso acontecesse, foi necessária que uma pequena mas importante palavra se arraigasse nos espíritos: “tolerância”, que, em poucas palavras, significa não concordar com a atitude do outro mas entendê-la como legítima e respeitar essa escolha. Obviamente a tolerância só se arraigou por motivos bem específicos, devido às condições que algumas sociedades passavam naquele momento. Aconteceu primeiro na Inglaterra e depois foi se espalhando pela Europa. Só bem tardiamente alguns países europeus, em especial os da Península Ibérica, aceitaram essa tolerância religiosa e a divisão entre poder secular e poder eclesiástico.
Em certa medida, isso provocou reflexos aqui no além-mar. Até bem pouco tempo atrás tínhamos, consagrada em leis, uma religião oficial. A umbanda e o candomblé, por exemplo, eram perseguidas pelas forças estatais. Mas por que diabos estou escrevendo sobre um fato tão longínquo, tão distante espacial e temporalmente da nossa realidade? Ora, nas colunas anteriores tratei do espinhoso e delicado tema da proibição às drogas, sob dois argumentos diferentes: um ético, defendendo a esfera de liberdade do indivíduo contra o arbítrio social e estatal, e o outro histórico, mostrando como a proibição puritana nos EUA transformou o combate às drogas numa guerra internacional.
Foi divertido – e chocante – ler os mais de 500 comentários, afinal todo o tipo de impropério estava escrito, todos os preconceitos vieram à tona, toda a raiva desabrochava naquele espaço. Uma bela amostra de uma parte da sociedade brasileira. Seja a favor ou contra os argumentos, a maior parte dos comentários desnudavam ódio: ou bem eu era “drogado”, com o cérebro “lesado”, que mereceria ter a filha estuprada por traficante (!!!) ou bem os proibicionistas eram “idiotas”. Para alguns, por defender a liberação das drogas, mereço a morte, se possível lenta e dolorosa. Mas como explicar que algumas idéias mobilizem tamanho ódio? Mais ainda: por que o diferente, o contrário merece uma punição de tamanha natureza?
Numa sociedade como a nossa, o diferente é visto como ameaça aos valores estabelecidos. Somos uns dos campeões mundiais em crimes de ódio; estamos sempre nos mais altos degraus quando falamos em racismo e em preconceito, a despeito de quererem nos fazer crer que “não existe isso no Brasil”, de propagarem que somos a democracia racial por excelência, a terra onde as três “raças” convivem magnificamente bem. Os pontos se tocam, se interpenetram. Nossos preconceitos arraigados, nossas trincheiras espirituais, nosso racismo formam uma sociedade complacente, porém não tolerante. O “porém” é que a tolerância, em algum grau ao menos, é parte fundamental da democracia, é parte integrante, é condição sine qua non de uma sociedade moderna.
Ela é, pelo menos, uma boa medida para se avaliar o grau de abertura de uma sociedade, de se analisar o quanto esta é democrática, o quanto aceita novas e diferentes formas de idéias e de atitudes. Quanto mais tolerante for uma sociedade, tendencialmente mais democrática ela é. Porém, isso nos leva a um paradoxo importante. Aqui está o ponto fundamental, motivo de reflexão das grandes mentes que estudam a sociedade e suas instituições, o grande dilema da democracia: como devemos agir com os intolerantes? O que devemos fazer com aqueles que, de uma maneira ou de outra, atentam contra nós, contra nosso estilo de vida? Em síntese: devemos tolerar os que não nos toleram?
Mais do que uma pergunta existencial é este o maior enigma da convivência em sociedade, pelo menos para uma pessoa que preza a liberdade, como este aqui. Seria contraditório que defendesse, em nome da autonomia, a liberação das drogas e ao mesmo tempo achasse que devíamos proibir os intolerantes de falar. Porém, quando a intolerância ameaça nosso próprio modo de vida, como devemos proceder? Podemos aceitar que manifestantes racistas portem placas e cartazes dizendo que os negros são de uma raça inferior? O que dizer de dizeres de ódio como “Deus odeia as bichas”? Devemos aceitar como livre manifestação quando neonazistas se organizam para divulgar e tentar implementar suas idéias?
É esta a tensão, o paradoxo da democracia: nossa tolerância pode levar à nossa extinção. Damos vozes àqueles que querem nos destruir, impor eles mesmos seus modos de vida. Até que ponto nossa tolerância não fomenta justamente os intolerantes? Há três saídas consagradas para este paradoxo democrático: o caminho estadunidense, que proíbe só as ações, não as idéias; a via europeia, que acha que certas idéias estimulam ódio e por isso devem ser proibidas, e, por último, a famosa tirania da maioria, na qual a sociedade pode decidir sobre absolutamente tudo – o que a maioria quiser é permitido ou proibido.
A última opção me parece uma não-opção, não por acaso a chamamos de tirania da maioria, é a democracia tão bruta que é uma ditadura. Algo como se a maioria da população paulistana decidisse, autonomamente, que o Palmeiras merecesse ser extinto. Esta maneira de democracia, diria quase plebiscitária, põe o indivíduo diretamente em choque com a sociedade. É a tirania mais absurda e absoluta.
A saída à lá Europa é segura, e exatamente por isso é preocupante. Num primeiro instante se proíbe a suástica, depois a foice-e-martelo… mas o que virá depois? É impossível prever. Claro que existem instituições sólidas, filtros, mas estes também existiam em Weimar, na Alemanha pré-nazista. Já a escolha dos Estados Unidos é a mais arriscada, permite divulgação e propaganda de idéias de ódio, de racismo. Entretanto é a que mais se aproxima de uma sociedade livre. Por enquanto, vem se mostrando correta, porém é complicado e perigoso deixar os grupos extremistas usarem livremente o poder do microfone.
A escolha não é fácil. Dúvidas e perigos existem em todas as opções. Como opção pessoal e intransferível, como mera predileção, por mais dolorido e arriscado que seja, prefiro a última, a saída estadunidense. Afinal de contas, não posso não posso deixar os intolerantes vencerem me transformando em um deles, não posso aceitar a complacência tão típica nossa.
O exercício é justamente este. Aceitar a diversidade de opiniões e atitudes, mesmo quando ela nos fere, nos agride simbolicamente. Mesmo quando elas desejam que a minha filha, que nem ao mundo veio ainda, seja estuprada por traficantes. Ou, como dissera Benjamin Franklin: “Aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança não merecem nem liberdade nem segurança”.
Walter Hupsel é doutorando em Ciência Política pela USP e Professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Faculdade Santa Marcelina. Nasceu em Salvador, torcedor doente do Esporte Clube Bahia e roqueiro até o fim. Walter Hupsel escreve a coluna Política on the Rocks quinzenalmente, às terças-feiras.
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