quarta-feira, março 17, 2010
APOIS TÁ CERTO
Carlos Mello
“Apois tá certo”, como dizia Seu Zé do Gato (velhos do meu tempo, há aí alguém que se lembre deste personagem de um antigo programa humorístico da TV recifense? Duvido). Ficamos combinados assim: o Papa publica uma homilia pedindo mil desculpas pelo escândalo da pedofilia na Irlanda. Fica todo mundo com peninha de Sua Santidade e acabou. Deus e meus amigos mais chegados sabem que eu nada tenho contra a Igreja Católica. Mas se há uma coisa que irrita é essa posição que os papas tomam a propósito de eventos graves e dolorosos, de genocídios a desmandos de ditaduras, de bombardeio de aldeias camponesas indefesas, como no Vietnã, às terríveis guerras raciais na África e na ex-Iugoslávia. A gente tem a sensação de que ele vem assim, todo de branco, com aquela toquinha na cabeça, e diz com olhar severo: “Que é isso, meninos! Que coisa mais feia! Papai do Céu não gosta!”
Esse escândalo da Irlanda é apenas mais um da longa série de estupros e abusos sexuais praticados por padres em todo o mundo. Nos EUA, como tudo cheira a grana, as famílias das vítimas pediram indenização e afundaram os cofres das dioceses onde houve o crime. No resto do mundo, não sei. Mas sei que tem gente – vou logo dizer o nome, é o auto-ungido filósofo Olavo de Carvalho – que vê nessas queixas um ataque satânico contra a Igreja Católica. Argumenta ele que pedofilia sempre houve, que era até considerado chique pelos aristocratas europeus, que há um livro do Gide sobre o tema etc., etc. Ora sebo, ninguém quer atacar a Igreja, nem o Papa, nem nada. Mas tratar um assunto grave desses com tapinhas nas costas, dando como punição máxima a transferência do criminoso para outra paróquia, onde certamente fará novas vítimas, é um pecado e uma brincadeira de mau gosto.
Recentemente, aí mesmo em Pernambuco, vimos o rigor moral do Bispo, excomungando a mãe de uma criança grávida e os médicos, que tiveram de apelar para o aborto, a fim de salvar a vida da pobre garota. Ou seja, para os amigos, repreensões de tia velha; para os outros, a lei canônica, implacável, dura como o coração desse bispote. (Será o mesmo que está querendo transformar a área verde da Tamarineira na casa de doidos que é um shopping?) Pergunto eu aos muitos e respeitáveis católicos que lêem esse blog: está certo isso? Dois pesos e duas medidas para julgar? Se não está certo, por que há tão pouca gente falando? De onde vem esse medo medular? Memória genética do Santo Ofício e das fogueiras da Inquisição?
Claro, não basta condenar. Nem muito menos se pode nem deve tirar desses fatos escabrosos uma condenação sobre todo o clero, onde há muitíssimas pessoas respeitáveis, verdadeiros servos de Deus, dedicados à caridade e ao ensino do Evangelho. Mas talvez essa fosse uma ocasião de ouro para que a comunidade católica discutisse um tema-tabu: o celibato eclesiástico. Essa continência forçada, lançada sobre um jovem seminarista, em um mundo onde os padres nem sequer usam mais batina e vivem, como Jesus, misturados ao povo, é um risco muito grande. Ou, para usar palavras bíblicas, é confiar demais na força do braço humano, frágil como asa de borboleta. Todo mundo sabe que antigamente muitos padres, coitados, forçados a essa aberração, acabavam tendo suas mulheres meio às escondidas – daí as expressões pejorativas de “burra de padre” e “filho de padre”, contrabalançadas pelo eufemismo “afilhado carnal”, que os próprios padres, a boca pequena, davam aos seus rebentos. O clássico romance de Eça de Queirós, O crime do Padre Amaro, é um libelo claro que já vai indo para o terceiro século de vida, contra essa absurda proibição, que subsiste, pela inércia ou teimosia do clero, em pleno terceiro milênio.
Aposto como muitos católicos ficarão irritados com meus comentários. Perguntarão quem sou eu para opinar sobre isso, que autoridade tenho e, se não sou católico, que tenho eu que me meter no que não é de minha conta. Responderei a esses caolhos o seguinte: autoridade, qualquer um tem, desde que não tenha cometido crimes nem esteja faltando com devido respeito à fé católica. Não estamos mais na época do Sylabum nem do caturra Índex Librorum Prohibitorum – onde aliás esteve o aludido romance do Eça e muitos outros, dele e de outros mestres da literatura. O celibato deve ser discutido sim, por católicos e não católicos, na medida em que, ao que tudo indica, é a matriz geradora da incontinência eclesiástica contra essas pobres vítimas. Claro, há pedofilia por toda parte, e deve ser combatido com o máximo rigor – e não com essa legislação perversa do Brasil. Mas por isso mesmo é que a Igreja deve procurar expurgá-la do seu meio – o lugar onde justamente ela não podia acontecer. Não será essa a “abominação da desolação” de que fala a Bíblia?
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