domingo, janeiro 24, 2010

Impunidade bíblica

Caim tacou a enxada na cabeça de Abel

MARCUS ARANHA

O bom senso e a lógica, coisas que deveriam habitar a cabeça de todos os homens, diz que não devemos tirar a vida de nossos semelhantes.

Mas assim não acontece. O homem é o único animal que mata de forma desmotivada. Todos os animais matam por ter fome; suprimem uma vida para manter a sua própria vida. Entre os humanos, matar o próximo é coisa antiga.

A Bíblia fala de dois filhos de Adão e Eva, Abel, pastor de ovelhas, e Caim, lavrador. E conta que Caim ofereceu ao Senhor frutos da terra que cultivou, enquanto Abel sacrificou uma das suas ovelhas. À Deus agradou a oferenda de Abel, mas não a de Caim. Depois disso, estavam os dois no campo quando Caim matou Abel.

Deduz-se que com ciúmes e por inveja, Caim tacou a enxada na cabeça de Abel, prostando-o sem vida ao solo. Cobrado pelo Senhor, Caim fez ouvidos de mercador. O Senhor poderia ter lançado um raio sobre a cabeça dele. Mas não! Como à época não existiam presídios, condenou-o a ser nômade, fugitivo e vagabundo.

Estava criada a impunidade. Caim saiu pela aí comendo umas goiabinhas e chupando umas jabuticabas, indo morar na terra de Node, do lado oriental do Éden. Lá, casou, teve filhos e morreu bem velho.

Na Bíblia há relatos de matanças e massacres horrorosos. Seres humanos matando uns aos outros, guerras entre tribos e povos. Todas as religiões, todos os códigos de Direito são unânimes em pregar e ordenar: não matarás! Mas, durante séculos essa coisa continua.

Haja vista o Holocausto. Em menos de dez anos, os nazistas assassinaram seis milhões de judeus! Mesmo com semelhante morticínio, a impunidade iniciada com Caim continuou. O tribunal de Nuremberg condenou um punhado de militares nazistas assassinos, organizações judias conseguiram apanhar mais alguns deles, e só...

Na África, tribos e etnias se digladiam há anos dizimando-se uns aos outros, numa matança sem fim. E aí estão o Afeganistão e o Iraque...

Mas, me impressiona o que acontece em nosso redor. Não estamos em guerra, mas no Brasil e nesta Paraíba pequenina, os jornais, diariamente, noticiam assassinatos aos montes. Matam jovens, adultos e velhos. Matam a tiros, facadas, foiçadas, pauladas, pedradas e sei mais lá o que, numa barbárie inacreditável.

E a impunidade sempre presente.

Pimenta das Neves, jornalista conceituado, assassinou a jovem namorada a tiros em São Paulo. Foi julgado, condenado a 17 anos de cadeia, impetrou recurso e há alguns anos espera em liberdade o resultado dele. Freqüenta rodas de intelectuais, janta em restaurantes finos bebendo vinhos caros, enfim, transita livremente como e eu você que nunca fizemos mal a ninguém.

Em fevereiro de 2007, marginais roubaram um carro no Rio de Janeiro, arrastaram e mataram uma criança de seis anos presa ao automóvel pelo cinto de segurança. Aí começou pantomima... Com códigos caducos, advogados, recursos e apelações, cada uma dessas bestas teve a pena atenuada. Falo bestas, porque entre os animais mais próximos de nós, gorilas e chipanzés, não se conhece atitudes semelhantes com as crias. Como aqui ninguém fica preso mais de seis anos, daqui a três anos estarão todos na rua.

O monstro que dizimou uma família a golpes de facão no bairro do Rangel, está preso no presídio do Roger, coçando o saco e aguardando julgamento. E depois de julgado e condenado, completado um bom período de coça-saco e já ter aprendido a fumar maconha, irá pra rua por bom comportamento.

Pois é... Conclui-se que entre nós a impunidade é bíblica.

Um comentário:

Carlos Cordeiro disse...

O brilhante articulista há de perdoar-me duas pequenas observações: 1) a impunidade total e absoluta é invenção brasileira, é coisa nossa, como a jabuticaba e o jogo do bicho. E ainda é acrescida de bons tratos nos dois ou três dias que o apenado "cumpre", em uma "cela" cinco estrelas (vide o juiz Lalau, o Maluf, o falecido Pitta etc.); 2) essa impunidade legal contempla apenas os ricos. Os pobres e remediados têm de ficar um pouco mais, mas apenas um sexto da pena. Assim, um sujeito que matar toda a familia com requintes de crueldade, pegará no máximo 30 anos, dos quais cumprirá apenas cinco (um sexto), de acordo com a progressão do benefício, monstrengo jurídico pelo qual empenhou-se tanto nosso presidente do STF. A impunidade não é bíblica, no Velho Testamento impera a pena de talião, a do "olho por olho...". Não tiremos a nossa pátria essa glória.
Carlos