segunda-feira, março 16, 2009

No paraíso da transgressão


Caros: Achei que seria obrigação deste Blog republicar texto tão verdadeiro quanto este. Mesmo sem a devida autorização da autora. H.C.

Lya Luft

"Vivemos feito bandos de ratos aflitos, recorrendo à droga, à bebida, ao delírio, à alienação e à indiferença, para aguentar uma realidade cada dia mais confusa"

A gente se acostuma a criticar os jovens por eles serem pouco educados, os homens por serem arrogantes, as mulheres por serem chatas, os governos por serem omissos ou incompetentes, quando não mal-intencionados. Políticos sendo acusados de corrupção é tão trivial que as exceções se vão tornando ícones, ralas esperanças nossas. Onde estão os homens honrados, os cidadãos ilustres e respeitados, que buscam o bem da pátria e do povo, independentemente de cargos, poder e vantagens?

Transgredir no mau sentido é natural entre nós. Ladrões e assassinos, mesmo estupradores, recebem penas ridículas ou aguardam o julgamento em liberdade; se condenados, conseguem indultos absurdos ou saem em ocasiões como o Natal, e boa parte deles naturalmente não volta. Crianças continuarão a ser estupradas, inocentes mortos, velhinhos roubados, mulheres trancadas em suas casas, porque a justiça é cega, porque as leis são insensatas e, quando prestam, raramente se cumprem.

Nesta nossa terra, muitos cidadãos destacados, líderes, são conhecidos como canalhas e desonestos, mas, ainda que réus confessos ou comprovados, inevitavelmente se safam. Continuam recebendo polpudos dinheiros. Depois de algum tempo na sombra, feito eminências pardas, voltam a ocupar importantes cargos de onde nos comandam.

Assassinos nem são presos. Se presos, são soltos para o famoso "aguardar o julgamento em liberdade". Centenas e centenas de vidas cortadas de maneira brutal e o assassino, a não ser que acossado pela culpa moral, se tiver moral, logo voltará ao seu dia-a-dia, numa boa. Se invadir a casa de meu vizinho, fizer seus empregados de reféns, der pauladas na sua mulher ou na sua velha mãe e escrever nas paredes com excremento humano frases ameaçadoras, imagino que eu vá para a cadeia. Os bandos de pseudoagricultores (a maioria não sabe lidar na terra) fazem tudo isso e muito mais, e nada lhes acontece: no seu caso, bizarramente, não se aplica a lei.

Se sobram muitas vagas nos exames vestibulares, em alguns casos simplesmente se fazem novas provas, provinhas mais fáceis. Leio (se me engano já me desculpo, nem tudo o que se lê é verdadeiro) que, como são poucos os aprovados nos exames da OAB, porque os estudantes saem despreparados demais das faculdades de direito que pululam pelo país, o exame se tornou mais simples: há que aprovar mais gente. Quantidade, não qualidade. Governantes, os bons e esforçados, viram objeto de ódio de adversários cujo interesse não é o bem da comunidade, estado ou país, mas o insulto, o desrespeito, a violência moral do pior nível. Aliás, nesses casos o nível não importa, o que importa é destruir.

Eis o paraíso dos transgressores: a lei é a da selva, a honradez foi para o brejo, a decência tem de ser procurada como fez há séculos um filósofo grego: ao lhe indagarem por que andava pela cidade com uma lanterna acesa em dia claro, declarou: "Procuro um homem honesto". O que devemos dizer nós? Temos pouca liderança positiva, raríssimo abrigo e norte, referências pífias, pobre conforto e estímulo zero, quase nenhuma orientação.

A juventude é quem mais sofre, pois não sabe em que direção olhar, em que empreitadas empregar sua força e sua esperança, em quem acreditar nesse tumulto de ideias desencontradas. Vivemos feito bandos de ratos aflitos, recorrendo à droga, à bebida, ao delírio, à alienação e à indiferença, para aguentar uma realidade cada dia mais confusa: de um lado, os sensatos recomendando prudência e cautela; de outro, os irresponsáveis garantindo que não há nada de mais com a gigantesca crise atual, que não tem raízes financeiras, mas morais: a ganância, a mentira, a roubalheira, a omissão e a falta de vergonha.

E a tudo isso, abafando nossa indignação, prestamos a homenagem do nosso desinteresse e fazemos a continência da nossa resignação. Meus pêsames, senhores. Espero que na hora de fechar a porta haja um homem honrado, para que se apague a luz de verdade, não com grandes palavras e reles mentiras.

Lya Fett Luft é uma romancista, poetisa e tradutora brasileira. É também professora universitária e colunista da revista semanal Veja.

Fonte:http://arquivoetc. blogspot. com/2009/ 03/lya-luft- no-paraiso- da-transgressao. html

Um comentário:

Anônimo disse...

Hugo,
A professora Lya faz um retrato fiel de um país maravilhoso, que no entanto, é desastrado desde a fundação.
Dá dó!
Heberti