quinta-feira, outubro 09, 2008

O ÚLTIMO DIA DO ANO EM FIESOLE


Celso Japiassu

Fiesole é uma cidadezinha simpática que avista Florença do alto da montanha. Domina todo o grande vale florentino e mais as coxias que vão além e se perdem no horizonte da sua aristocrática vizinha. Trezentos metros acima no nível do mar lhe garantem no inverno um clima mais frio e mais seco, com pouca neve e com dias claros de céu às vezes azul. É uma combinação que conduz invariavelmente à tentação da boa comida e, mais ainda, a generosas taças do vinho toscano, onde a qualidade e o preço mostram-se no melhor do seu equilíbrio, o que vem a significar alta qualidade por um preço que nem o mais fanático dos sovinas seria capaz de reclamar.

Em Fiesole, ou melhor, no Hotel Villa Fiesole, na noite de 31 de dezembro para 1 de janeiro de 2002, alcancei um pequeno récorde - bater 10 pratos numa única ceia, e mais comeria, não fosse para tão grande ardor tão curta a noite.

Um lugar para a noite de ano novo

Antiga vila etrusca dominada pelos romanos e pelo menos uma vez destruida pela cobiça e pelos exércitos dos nobres florentinos, Fiesole apareceu no meu caminho por recomendação de Inocêncio Perez, artista e diretor de arte argentino-brasileiro-italiano, quando ele me disse, em fins de dezembro de 2001, que Veneza estava lotada. E mais: alem de lotada, quase submersa pelas águas que de tempos em tempos expulsam os turistas e ameaçam a própria existência da cidade.

Florença pareceu ser a alternativa lógica. Mas todos os hotéis também estavam lotados. Foi quando Fiesole surgiu. Inocêncio é um artista gráfico acostumado a encontrar soluções para problemas intrincados, menos para a crise argentina, que estava no seu pior momento e para a qual ele não via solução.

Passamos dois dias em Voghera, nas cercanias de Milão. Cacho Perez, como é conhecido, me levou a conhecer a cozinha do lugar e a entender as razões que o fizeram deixar a America do Sul e voar para a Italia. Tanto a cozinha dos apeninos quanto os motivos de Cacho, nenhum deles merece retoques.

Partí de Voghera na companhia de Brigitte, que me faz companhia por terra, mar e ar, na busca não sabemos bem de que, mas certamente de algo que nos conduza a momentos que valham a pena ser lembrados. O destino era Fiesole e uma noite de ano novo estrelada pelo "Cenone".

"Cena" você pode traduzir por ceia. Cenone vem a ser, portanto, uma ceia grande. Mas não imaginávamos que fosse tanto.

Florença e a ceia

Um dia na agitada Florença, nas vésperas do ano novo. Turistas de toda parte na Piazza della Signoria, flashes, grupos, vendedores e compradores, japoneses, filas para visitar o museu, filas para entrar no Duomo, e mais japoneses.

O ônibus número 7 faz a linha Fiesole-Florença-Fiesole. Tinha descido vazio quando embarcamos para passar o dia em Florença e subia lotado para nos deixar de volta na porta do hotel, onde já estavamos inscritos para o "cenone".

Às nove da noite em ponto, somos chamados com urgência porque estavam nos esperando para começar a grande ceia, que só teria início com todos os convidados presentes. Na companhia de uns 40 florentinos, em grupos ou casais, alem de um alemão solitário que comeu lendo "Der Spiegel" e se retirou antes da hora, demos início a um curso de dez pratos que iria terminar à meia-noite em ponto, com uma taça de prosecco. No exato momento de brindar o novo ano e assistir à queima de fogos que se iniciaria lá embaixo, na distante Florença, iluminada pelas explosões faiscantes, chuvas de luzes, lírios de fogo, estrelinhas candentes, rosas incendiadas.

O cardápio

O "cenone", com o nome oficial de "Il Menú di Capodanno 2001", começou desprentensiosamente com um pratinho de "Amore Louche", biscoitinhos apropriados para o espumante aperitivo e logo em seguida foi servido o anti-pasti, levíssima mousse de presunto ao lado de um vol-au-vent de camarões. O primeiro prato, um risotto ao queijo groviera, trouxe ao paladar os sabores do Piemonte e veio acompanhado por um vinho frisante toscano que ampliou o espectro do gosto acentuado do prato.

O Crespelle alla Fiorentina veio para recordar que estávamos no país toscano e que algo de especial seus criativos chefs tinham para oferecer ao ano novo.

A tradição italiana diz que, para ter sorte no ano que começa, é preciso servir cotechino com lentilha no jantar da última noite e assim foi feito no "cenone" de Fiesole: um cotechino fresco e saboroso veio depositado sobre um leito de lentilhas para dar a todos boa sorte no ano que dali a pouco iria começar.

Imaginavamos que a ceia havia finalmente chegado ao fim quando nos vimos em frente a uma bisteca à florentina, que merecera três meses antes um concerto em homenagem ao seu retorno com a presença de Sting, Elton John e Mike Jagger, na Marina de Carrrara. Para tristeza dos florentinos e, como se vê, também dos "rock stars" ingleses, a bisteca havia sido banida das mesas italianas pela ameaça da vaca louca. Batatas assadas e espinafre na manteiga lhe faziam companhia.

Numa demonstração do talento organizacional dos italianos, algo em que os estrangeiros não costumam acreditar, quando faltavam exatamente cinco minutos para a meia noite, serviu-se um panettone e mais uma taça de prosecco a todos os convivas. Ouviram-se os primeiros fogos. Lá longe, Florença saudava o ano novo em salvas de fogos e girandas espalhadas pela cidade inteira.

Naquela sala em Fiesole, pessoas estranhas umas às outras cumprimentavam-se desejando-se mùtuamente felicidade no ano que começava. Mas também comemoravam o fim de 2001, sobre o qual Eugenio Scalfari escrevera, no jornal La Republicca, naquela mesma manhã: "questo anno terribilis che sta per andarsene col suo fardello di sangue, di pianto, di aggravata miseria, di incertezze economiche e di piu intense paure esistenziali" - este ano terrível que está para ir embora com seu fardo de sangue, de pranto, de agravada miséria, de incerteza econômica e do mais intenso medo existencial.

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