segunda-feira, junho 23, 2008

COMO MANTER NOSSAS MAIS CARAS TRADIÇÕES


Carlos Mello

Eu sei que vocês vão dizer que é tudo ranzinzice, que não se pode ser assim tão conservador e mal-humorado, sempre fazendo pouco das pessoas e eventos. E que esse assunto já está cansando. Como tenho poucos leitores e estou nesse "brogue" apenas porque o dono me deve uma grana, vou dizer pela última vez o que acho desse afã de tantos colunistas pela manutenção das nossas mais caras tradições – y compris “o maior S. João do Mundo”, fanfarronice tola, que lembra aquela outra, já gozada em prosa e verso, “Pernambuco falando para o mundo!” Sabem os amigos qual é a nossa mais cara tradição? Aquela que caracteriza o brasileiro de norte a sul e de leste a oeste, do Oiapoque ao Chuí e de Cabedelo a Cajazeiras? Imitar o que os americanos têm de pior. Já esqueceram que o sonho de consumo da maioria dos brasileiros, depois de pasmar para os brinquedos da Disney, é morar em Miami, a cidade mais sórdida dos EUA?

O tal S. João campinense demonstrou tudo isso por a + b. Vocês foram lá? Então escutem: não tem fogueira nenhuma (felizmente) mas uma contrafação imensa, iluminada de forma a simular chamas. Não há mais traje caipira – para que, se não há mais caipiras, ou por outra, se todos assumimos definitivamente a nossa caipirice? Um amigo, o agitador cultural – não encontro definição melhor para esse grande artista, que enojado com tanta pulhice, refugiou-se em seu tugúrio de Bananeiras – Guy Joseph, falou-nos certa vez de uma outra “tradição”, realizada no mês de julho, em Cabaceiras, a Festa do Bode Rei. Ali todo mundo (os ricaços do pedaço) vai de jeans, camiseta quadriculada e botas, em carrões (são jegues montados em bestas) com um som de estourar os tímpanos, exibindo sem pudor toda a sua música debilóide e toda sua empáfia sub-texana.

Estou bem longe da minha queridíssima Recife, cidade onde vivi alguns dos melhores anos de minha vida, e onde tenho alguns dos meus amigos mais queridos. Ainda sou do tempo do Carnaval de rua, da semana pré-carnavalesca, da Evocações, do Maracatu da Dona Santa e dos bonecos de barro do Vitalino. Façam você mesmo esse teste: perguntem às gerações mais novas, de 1980 para cá, o que são essas coisas. Duvido que saibam. E no entanto, são alguns dos momentos mais elevados de nossa expressão cultural autêntica. Mas que passará, num país desmemoriado, abestalhado, hipnotizado pela publicidade alienada, que tenta empurrar por nossa goela abaixo seus padrões globalizados.

É claro, nem todo mundo é assim. O país ainda não suicidou-se, felizmente. Tem muita gente fazendo coisas maravilhosas. Gente que não se envergonha de seu país, de seu povo e de sua cultura. Um pequeno exemplo, aqui do Rio: está agora em cartaz um espetáculo do Nós do Morro – grupo de moradores da favela do Vidigal –o “Machado a 3x4”, escrito, interpretado e dirigido por eles mesmos, com base no conto “O alienista”, de Machado de Assis. Até mesmo a super-exigente Bárbara Heliodora elogiou o trabalho, em que alguns jovens de classe média baixa usam a música, os gestos e falas, e sua refinada inteligência e sensibilidade, para abordar, com o bisturi machadiano, a estreita margem entre a razão e a sandice.

Um obra dessas nos redime de muita coisa ruim, desde aquele horrendo pastiche da Estátua da Liberdade, na horrenda Barra da Tijuca, bairro de novos ricos e eternos burros, até aquele indigente parque de menos de duzentos metros quadrados – já na mira do nosso “prefeito” para ser derrubado e dar lugar ao último espigão de Copacabana – e que, na inauguração (já lá vão 40 anos, meu Deus!) foi apresentado como “uma réplica da Disneylândia”. Alguém já viu um desfile das escolas de samba do Rio? É um belo espetáculo, não tem dúvida. Mas é tão brasileiro quanto o Mardi Gras de Nova Orleães, ou o carnaval de Veneza. O mais trágico de tudo isso é que a cultura popular brasileira é pujante, bela, emocionante e da mais absoluta autenticidade. O povo brasileiro sabe incorporar muito bem as contribuições que lhe chegam de fora, sabe mediá-las, aculturá-las e reinventá-las, sem perder nada de sua maravilhosa brasilidade. O problema é que, como já dizia há meio século Álvaro Lins, muita gente tem vergonha de ser brasileiro.

O que vai aqui, como fecho, não é uma queixa, nem é uma cobrança, mas um lamento. Por que essa gente tão culta, tão experiente e tão consciente que escreve nesse "brogue" – como Elpídio Navarro, Aline, Antônio Serafim, Grisi, Germano Romero, Valdez – e outros mais recentes, não parece tão preocupada com essa curra cultural que estamos sofrendo? Elpídio e Valdez, com quem tive a honra de conviver e muito aprender, nos tempos do teatro amador, na Paraíba – deram uma bela contribuição, montando textos brasileiros e estrangeiros com uma autêntica “paraibanidade”, se me permitem o termo. Muitas décadas depois, veria eu, com lágrimas nos olhos, o que para mim representou o maior espetáculo teatral de minha vida – o “Macunaíma”, do Antunes Filho – e as lágrimas vinham em parte do espetáculo, em parte da lembrança daquele aguerrido punhado de jovens que teimou em fazer teatro de primeira qualidade numa João Pessoa provinciana e acanhada. Muitos desses jovens continuam jovens, como os dois aqui citados e o dono deste "brogue." Outros se foram – Paulinho Pontes, Genildon Gomes... Que tal honrarmos esse belo passado?

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