terça-feira, janeiro 08, 2008
Matrioska
Carlos Cordeiro de Mello
Deixei a fase perquiritiva. Agora estou na fase fruitiva.
Quando vim morar aqui, já lá vão dez anos, pensei em abandonar-me à morte por inanição, como Gogol. Puro dramalhão. Minha ex-mulher, e sobretudo meu comborço, gostaram da mudança. Livraram-se assim de duas inconveniências: minhas passadas desesperadas pela rua e minhas ameaças de vingança. Meu ex-filho limitou-se a avisar: “vai ser difícil visitá-lo naquele fim de mundo”. Essa indiferença foi que me magoou. Nosso último diálogo foi há três anos.
- Alô, filho? Sou eu.
- Ôi. Tudo bem?
- Tudo bem. E com você?
- Tudo ótimo.
- E então, que está fazendo? Já se formou?
- Há mais de um ano.
- E que tal? Arranjou trabalho?
- Não exerço a profissão. Trabalho com recursos humanos.
- Ah, é? E está gostando?
- É bom.
- ................
- Está bem. Me liga um dia desses.
- Você também, quando puder. Ou quiser.
- Deus o abençoe, filho.
- Tchau.
Não me pediu o telefone. Aliás, se quisesse falar comigo, bastava solicitar o número à telefônica. Depois disso, telefonei três vezes para ele, mas nunca retornou minhas ligações. Traição da mulher, descaso do filho. Por quê? Essa pergunta – para a qual nunca tive a resposta – atormentou-me durante muito tempo. Foi a sofrida fase perquiritiva. Mas justamente o muito tempo que levou acabou sendo seu próprio remédio. Nada resiste ao passar do tempo.
Esse cotovelo de mundo, afastado de tudo, é o lugar ideal para mim. Não tem quase nenhum dos confortos do meio urbano. Uma farmácia, um mercadinho, um salão de cabeleireiro, alguns botequins, mais nada. Sem agência de banco ou de correio, nem médico ou posto de saúde. Um degredo, abençoado degredo. Foi aqui que pude comprar essa casa, ter meu quintalejo, um pequeno jardim. Um quarto é o de dormir, o outro é uma espécie de escritório e oficina, nele me distraio lendo, escrevinhando essas bobagens ou consertando velhos relógios. Tudo serve para passar o tempo. Aqui ninguém me visita.
A empregada é discreta e rápida. Tentei puxar conversa, ela explicou que o marido é ciumento, por isso tem de voltar para casa cedo. Se ele soubesse que trabalha para um homem sozinho, talvez nem deixasse. Fez essas confidências em tom sério, enquanto eu observava horrorizado suas grossas varizes. Vem duas vezes por semana, cozinha, lava, passa, varre a casa, espana os móveis. Eu como pouco, sujo pouco, não chega a ser muito trabalho.
Às vezes vou à igreja. Não tenho religião, nem mesmo sei se creio em Deus. Mas é bom ouvir os hinos, a pregação, cumprimentar o pastor. É uma igreja batista, mais conforme comigo. Tentei a igreja católica, achei a missa longa, as pessoas tristes. Há outra igreja evangélica, mais humilde, porém barulhenta, os crentes cantam e rezam aos berros, como se Deus fosse surdo. Vou ficando com os batistas, não todo domingo, para não pensarem que quero ser um deles.
Aquele que vai passando ali é o Ricardo, meu único amigo na cidade. Graças a ele, entrei na fase fruitiva. No começo, apenas nos cumprimentávamos. Um dia, estava na farmácia quando ele entrou. Saudou o vendedor e pediu remédio para dor de cabeça. Não era para ele, mas para a esposa. Pegou o envelope, pagou e saiu mas, ao atravessar a porta, deixou a cartela cair. O vendedor nem se mexeu, mas eu apanhei o pacotinho e fui atrás dele. Consegui alcançá-lo logo, ele agradeceu muito. Explicou que a esposa é sadia, mas às vezes tem dor de cabeça. Talvez do excesso de sol, pois gosta de cuidar do jardim. Confesso que tive inveja dessa felicidade.
Fomos conversando até sua casa, ou o que sobrou dela. O incêndio foi violento e repentino. Uma explosão do bujão de gás, a esposa carbonizada em poucos minutos, ele do lado de fora sem nada poder fazer. Felizmente tudo já passou. Uns dias depois do encontro na farmácia, cruzei com ele na saída do mercadinho. Levava um saco de terra adubada. Disse-me que ela resolvera plantar rosas. Comentei que as mulheres gostam muito de rosas e ele entendeu que eu falara da minha. Combinou trocarmos mudas, as preferidas da mulher dele pelas preferidas da minha. Aceitei.
Passei uma semana de cama, com uma gripe forte. Quando saí à rua, cruzei com meu amigo, que perguntou onde eu andara. Contei que tinha estado em Caxambu, com minha mulher. Ele aprovou o programa, estava justamente pensando em fazer o mesmo. Pediu-me indicação de hotel, de pontos turísticos. Forneci tudo, ele anotou em um papel e saiu agradecido.
Agora, toda vez que nos encontramos, conversamos um bocado. O assunto preferido é sempre as nossas mulheres. Ele me falou como a sua gosta de cozinhar. Aos domingos, sempre que o tempo está bom, almoçam no jardim. Confidenciei que a minha prefere jantar à luz de velas. Achou a idéia perfeita, vai propor o mesmo. Aliás, vai fazer-lhe uma surpresa: ele mesmo prepara a mesa, põe os castiçais, quando ela vier estará tudo pronto. Sugeri que pusesse umas rosas no centro da mesa, como eu faço, e ele gostou dessa idéia também.
Assim vou vivendo minha fase fruitiva. Estou muito bem com minha esposa, graças a Deus. Como não temos filhos, vivemos um para o outro. Estamos fazendo um jardim só de rosas, vermelhas, brancas, amarelas, um canteiro para cada cor. Ela é muito caprichosa, quer as roseiras bem podadas, a terra afofada. Já estamos fazendo planos para uma nova viagem, dessa vez a alguma cidade do litoral. Temos longas conversas toda noite, até bem tarde. Aos domingos, depois do culto, se o tempo está bonito, almoçamos no jardim. Fazemos uma longa sesta, depois uma caminhada pelo bairro. E à noite, jantamos sempre à luz de velas.
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2 comentários:
Belo texto, amigo Cordeiro. Você está escrevendo cada vez melhor. O Hugo também. Sua escrita é fina com ironia inteligente.
Abraço os dois.
Celso
Olá Cordeiro! Esta fase foi boa, pelo visto. Agora espero a história seguinte, a das obras! rsrsrsrsrsrsrs Abs!
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