quarta-feira, dezembro 19, 2007

RECUERDO 28 - Sopa, Costeletas e "Amazonas"


Hugo Caldas

Já faz uma pá de tempo. Década de 50. João Pessoa, ainda uma cidade dos bons e velhos tempos, sem essa cretinice de mudança de nome, bandeira e quejandos. Naquele tempo nós tínhamos o que fazer. Ninguém ficava azeitando o eixo do sol, a coçar o saco, inventando novidade. Tínhamos, por exemplo o TEP, Teatro do Estudante da Paraíba, de muito querida e saudosa memória.

O caso, eu conto:

Um belo final de tarde e começo de noite, Celso Almir, colega de Liceu e amigo de longa data (até hoje) tinha um compromisso a cumprir e não estava muito animado com a empreitada. Contou-me em poucas palavras do que se tratava:

- "Rapaz, fui convidado a fazer um teste para uma peça de teatro mas não estou muito entusiasmado. Será que eu vou me sair bem? Será que tenho talento para isso? Você não toparia ir comigo e me fazer companhia?"

- Claro, respondi também sem muita empolgação. Teatro? Que história era essa? Concordei finalmente e lá fomos nós tirar essa conversa a limpo. O local do ensaio que iria selar as nossas vidas era em uma das dependências da Maçonaria em um primeiro andar da Rua Duque de Caxias. Subimos e logo Almir se apresentou. Fez um bom teste apesar das suas interrogações.

De repente, não mais que de repente, o diretor, um tal Valter de Oliveira, do clã dos Oliveira do Recife, olhou para mim e gritou:

- "Ei você aí, magrelo, venha até aqui."

Morrendo de medo obedeci e fui até ele. Me examinou de alto a baixo e com a autoridade de um Arquimedes redivivo, (dê-me um cabo de vassoura e dele farei um ator) mandou que eu lesse uma frase qualquer de um calhamaço que estava sobre a mesa. Já que Almir havia sido aprovado para o papel de Osborne eles continuavam a procura de alguém para o papel de Mason o cozinheiro do regimento.

Explicarei:

- Tratava-se de "Fim de Jornada", sétima e mais famosa peça de R.C. Sherriff, escritor inglês, levada ao palco pela primeira vez em 1928, tendo como cenário as trincheiras de Saint-Quentin, França em 1918. A peça dá uma boa idéia do que teria sido a experiência dos oficiais da infantaria inglesa em pleno conflito de 1914-1918.

No entanto não fui aprovado no teste por conta do meu nervosismo. A cena era:

- Osborne - Que temos de bom hoje para o jantar, Mason?
- Mason - Sopa, costeletas e ananases.

Na minha excitação eu lí:

- Sopa, costeletas e "AMAZONAS"!

Foi uma risadagem geral. Fiquei morto de vergonha. Para encurtar, terminei sendo aprovado para outro papel. Um jovem e educado tenente, irmão da noiva do meu comandante. E foi assim, não mais que de repente, totalmente por acaso que entrei para o mundo encantado do teatro, envergando o uniforme do exército inglês em plena Primeira Grande Guerra Mundial. A peça só com papéis masculinos, foi escolhida dada a dificuldade em encontrar garotas para papeis femininos. Os papais não permitiam.

O elenco de "Fim de Jornada", se não me falha a memória:

Sosthenes Kerbrie
Valdez Silva
Elpidio Navarro
Ednaldo Navarro
Paulo Nóbrega (Paulinho Perneta)
Celso Almir
Ruy Eloi
e Hugo Caldas (este-locutor-que-vos-fala)
Direção - Valter de Oliveira

O diretor Valter, teve a suprema audácia de colocar como tema musical a trilha sonora de um filme americano recém exibido no Plaza, por título "Suplício de Uma Saudade,” que não tinha absolutamente nada a ver com a nossa história. Mas a música era bonita.

O TEP levou a peça para o Festival Nordestino de Teatro Amador em Recife e estreamos no Santa Isabel em agosto de 1956. No final todos morriam o que era uma lástima. No Recife quase que morríamos de verdade tendo o cenário entrado em colapso espalhando pó de serra por todo o teatro. Elpidio Navarro conta o episódio em um dos seus "Acontecidos."

A crítica especializada teceu muitos elogios ao espetáculo. Ariano Suassuna à época crítico de um jornal do Recife disse o seguinte sobre a minha atuação: "Hugo Caldas muito seguro, parece talhado para o papel." Passei noites sem dormir só pensando e saboreando o elogio. Celso Almir recebeu o prêmio de Melhor Ator Coadjuvante.

Houve uma remontagem anos depois com algumas substituições no elenco. Raimundo Nonato no lugar de Celso Almir, já emigrado para o sul maravilha. Moura no lugar de Ruy Eloi que parece ter gostado da experiência da caserna pois entrou para a Polícia Militar onde terminou fazendo uma bela carreira. Pereira Nascimento no lugar de Paulinho Perneta que havia voltado à casa paterna no Rio Grande do Norte. Não lembro entretanto, quem substituiu Sosthenes Kerbrie.

Outras peças sucederam.

Exemplo foi "Pluft, o Fantasminha" para desespero e desgosto da minha mãe que não aceitava ver o seu "Clark Gable" transformado em marinheiro bobo e beberrão. Mas é isso, teatro é melhor pra quem faz do que pra quem vê. Qualquer dia estendo mais o assunto. "Fim de Jornada" foi apenas o início de uma carreira de quase 20 anos entre amador e profissional, já radicado no Recife, fazendo parte do elenco do Teatro Popular do Nordeste - TPN sob a primorosa direção de Hermilo Borba Filho.

hucaldas@gmail.com

4 comentários:

Anônimo disse...

A minha opinião é que a maior besteira que vocês fizeram foi não terem permanecido na nobre carreira de ator. Hoje seriam ricos e famosos, convidados pras festas da Globo e pra ilha de Caras. De vez em quando leio alguma coisa sobre a história do teatro na Paraíba, e embora tenha feito por ela uma passagem meteórica e rasteira, tenho vivas lembranças do TEP, do Valdez e do Elpídio (que lamentavelmente embarcaram na defesa dos Pessoa), do Bruno Nicotina, da Risoleta, do Dr. Eugênio e da D. Ofélia, sua esposa, do Arlindo Delgado - esse uma figura que nós, os estreantes, víamos timidamente, de longe, como uma espécie de figura sagrada. Mas sempre sinto falta de referências a uma outra figura, que nunca foi um grande ator, mas foi um formidável agitador cultural, talvez o único que tivemos naqueles anos. Falo do Genildon Gomes. Quantas vezes, aqui no Rio, conversei com Paulo Pontes sobre ele, gabando a audácia maravilhosa que o fez inventar e manter sozinho um festival de teatro que lotou o Santa Rosa por sua semanas inteiras, com a inscrição de vários grupos, entre eles um teatro do Seminário (que encenou, se não me engano, "O Crime na Catedral", com a direção do Valdez, dentro da igreja, além de grupos de outras cidades do interior. Lembro ainda das faixas que ele mesmo mandou fazer e pregar na praça Aristides Lobo, entre elas uma que dizia: "UM POVO QUE NÃO AMA E NÃO DEFENDE SEU TEATRO, OU ESTÁ MORTO OU ESTÁ AGONIZANTE - Garcia Lorca". Esse festival foi um verdadeiro milagre, e é uma pena que não houvesse muitos outros Genildons para dar seqüência a essa onda. Logo depois deixei JP e perdi contato com o Genildon, que vim rever no Rio muitos anos depois, mas já sem aquela chama sagrada que a cidade dos Pessoa conseguira apagar. Abrs Carlos Mello

Anônimo disse...

Saborosa sua crônica. É um trabalho, no meu entender, de grande valor. Primeiro porque resgata de dentro do autor pedaços da sua história. Segundo porque é um relato que resguarda, registra e preserva a memória de um determinado momento. Parabéns, Hugo. Um abraço Djanira

Celso Japiassu disse...

Amigo Hugo:

Impressionante a tua memória. O texto recupera parte do nosso passado e me faz pensar no que já te disse: a gente vai ficando velho, a memória antiga ressurge inteira mas ficamos na dúvida do que fizemos no dia de ontem.
Parabens pelo texto. Como sempre, revela o talento do belo cronista que faz este blog.

Abraços,
Celso Almir

Mary disse...

É sempre muito bom ouvir as suas lembranças dos anos dourados na Paraíba. Mas este registro da sua entrada no Teatro de Estudante da Paraíba revela o grande contador de histórias que você é Hugão. Recordar é viver! Faço o comentário hoje envolvida pela emoção de passar este domingo da "mama" juntos com direito a almoço, cocada e bolo majestoso com café.
Te amo.